10.3.24

Maria Escolástica

 às crianças da Palestina


Dos filmes que têm circulado, inclusive candidatos ao Oscar, “Dias perfeitos”, de Wim Wenders, com o incrível ator japonês Köji Yakusho, foi o que me tocou mais profundamente. O enredo do diretor alemão e de Takuma Takasaki se passa no Japão, com atores japoneses, equipe japonesa e falado em japonês. É quase mudo, além de ser de poucos movimentos, ao contrário do que eram as fitas de Charles Chaplin ou Buster Keaton. A música é uma personagem, a voz do silencioso Hirayama, o limpador de banheiro público em Tóquio. Tenho assistido a algumas produções ótimas, como “Pobres criaturas”, “Anatomia de uma queda”, ou a não tão ótima “Saltburn”, e o de Wenders se diferencia delas por nos convidar a buscar um cantinho, tirar os sapatos e tomar um café no mundo interior. Os outros, ruidosos na sua maioria, são de embates, de personagens que se afirmam quando lutam contra um lá fora hostil. Hirayama não quer nada disso, ainda que não seja nem tolo nem alienado. Aos poucos, temos algumas pistas de sua vida e podemos levantar hipóteses sobre por que está ali, levando aquela vida simples, rotineira, sem grandes contrariedades.

Toda noite, Hirayama sonha imagens meio tremidas, cheias de sombras. Todos os dias, fotografa as sombras formadas por uma imensa árvore (a questão das sombras se explica, desde que o espectador espere o final dos créditos). E a esse respeito, houve uma coincidência. Um ou dois dias antes de ir ao cinema, acompanhei a live “A fim de poesia” que a poeta Noélia Ribeiro faz, desde o início da pandemia, no Instagram. Na temporada mais recente, ela mudou a dinâmica. Agora, em vez de convidar poetas e promover um sarau no qual eles leem seus poemas, ela e Fátima Ribeiro escolhem poesias e as leem. Naquela ocasião, Fátima leu um poema do meu “O sol pelo basculante” (editora Urutau), que reproduzo a seguir.

 

O homem íntegro

                                                                        a Eustáquio Grilo

 

Não sou desses homens que têm dois lados

o A em contraposição ao B

o beco às terças, a avenida aos domingos

o comezinho de costas para o incomum

a alma contra o corpo.

 

Mesmo assim ou por isso mesmo

amo desconfiado

trabalho desconfiado

vivo desconfiado

— há, na integridade, uma sombra.

 

Tenho, como todos,

peito e dorso

bunda e coco

ombro e sexo

joelho e calcanhar.

 

Dentro e fora, o único rosto

em feriados e dias úteis, um só esforço

na mesma bica, o sedento e o saciado.

 

Tomo como certa a hora de

cortar o cabelo. E como medo

inconfesso que me aparem a sombra.

 

 

Meu poema – aqui não há uma questão de valor ou coisa similar – faz fronteira com “Dias perfeitos”. Não é uma afirmação narcísica, mas a percepção de pontos de diálogos. Hirayama se encaixa bem no homem íntegro do poema.

Seja como for, e seja lá o que isso tudo é, Wenders berra a favor da simplicidade – em entrevista, ele disse: “Dias perfeitos é o mais próximo que já cheguei de fazer uma declaração sobre a paz” – e me remete a uma vida que já tive: a de jovem do interior de Minas. Lá viveu minha prima Maria Escolástica. Era sobrinha de meu pai, mas não diferiam muito em idade. Dona de uma casa movimentada – aos filhos e, depois, noras, genros e netos, agregavam-se sobrinhos, primos, vizinhos –, ela tinha uma máxima recorrente: tudo é bobagem.

Hirayama, ao dar acolhimento à sobrinha que foge da casa dos pais, leva-a para ver o rio, e ela lhe pergunta se o rio vai dar no mar. Sim. Ela pede para irem até lá. Ele responde que da próxima vez irão. A menina indaga quando é a próxima vez. E ele: a próxima vez é a próxima vez. Ela insiste. Ele mantém a resposta frouxa e acrescenta, agora é agora. Ambos saem pedalando e improvisando uma melodia para “a próxima vez é a próxima vez, agora é agora”. Uma cena linda, num filme de muitas cenas lindas. Bem, mas eles poderiam sair cantando “tudo é bobagem”. Minha saudosa prima Maria Escolástica está na gênese do filme de Wenders.


25.2.24

O perrengue da comunicação

 


Quando eu disser a vocês o que tenho a dizer, vocês me dirão – É isso o que tem a nos dizer? E eu direi – O que vocês queriam que eu dissesse?

Eu disse, ela disse — Repete. Eu repeti, ela repetiu – Repete. Eu repeti, ela repetiu – Repete. Eu repeti, ela disse – Você não se cansa?

A mãe perguntou ao filho se estava entendido. Ele disse que sim, só não entendeu exatamente o que deveria ser entendido. A mãe então concluiu – Ok, estamos entendidos.

Ele me pediu um minuto. Pegou um papel, fez um desenho. Era uma cena chocante, um monstro engolia uma pessoa pela cabeça. Eu ainda me perdia nos detalhes da gravura, e ele já me perguntava se, vendo e não ouvindo, tudo se esclarecera. Eu respondi – Bem, o desenho tem problema de perspectiva.

Quando ela começava a se despir, ele disse – Espera. Ela ficou estática. Ele não disse mais nada. Ela continua lá.

Do nada, ela diz – As árvores trocam mensagens umas com as outras. Eu pergunto – E daí? Ela responde – Daí que o desentendimento é maior do que imaginamos.

Ouvir, ouvi, mas ouvir é pouco.

O palestrante perguntou – Alguém? Eu levantei o dedo. Ele nem deixou eu me ajeitar direito na cadeira – E então? Eu respondi – Concordo. Ele se surpreendeu – Com o quê? Escandi as palavras – Com o que o senhor não disse.

O prefeito mudou o nome da rua. Todas as cartas endereçadas a ela foram parar numa rua homônima em outra cidade. As pessoas que as receberam abriram, leram e responderam uma a uma. Assim, aceitaram o convite para um date, o pedido de perdão, mas, num caso, o falso destinatário reclamou – Alguma coisa deve estar errada, o aluguel está em dia, o IPTU é que ainda não deu pra pagar. Não parou aí – E não me chamo Raimundo, Perivaldo é meu nome.

A professora pediu a atenção de todos – De todos. Começou então a falar de forma automática o discurso de começo de ano. Os alunos se distraíram em surdina. Quer dizer, Luisinha não, ela estava tão atenta que caiu no choro quando a professora disse que não eram dela aquelas palavras.

Discreto é o suspiro, no entanto é sempre bem entendido.

Tiramos a palavra na sorte. Fiquei pensando o que fazer com a minha. Enfim, decidi ficar calado, com o olhar de quem acompanha um voo de pernilongo.

Na voz miúda, dizem que a guerra foi perdida quando o comandante ordenou que atirasse a primeira pedra aquele que não sofreu por amor.

Bateu à porta da casa da namorada. Nada. Bateu de novo. Nada. Mais uma vez. Nada. A namorada, ao lado, não sabia o que fazer.

Ela deu um sonoro não ao pedido de casamento. O rapaz, assustado, mas célere, buscou uma saída – Esquece o casamento, vamos tomar um sorvete. Ela respondeu – Uma coisa dessas só faço depois de casada. E completou – Você tem uma bicicleta?

Depois de ler o jornal de cabo a rabo, a garota levantou-se e foi à cozinha. Lá encontrou a cozinheira. Elas se olharam, se olharam e mais uma vez se olharam. A garota saiu de lá certa de que o jornal jamais olharia para ela e a cozinheira. Jornal gosta é de distâncias.

Esse negócio de beijar na boca de olhos fechados tem deixado muita gente a ver navios.

Achou muita graça ter ganhado o prêmio de quem menos entendia piadas.

Escrevi muitos livros, compus músicas mil, pintei quadros a valer, pena que sempre estivesse dormindo.

Com a casa vazia, o rapaz anunciou – De agora em diante, falarei o que me der na telha. Gotejou então duas ou três ideias que as paredes, caso tivessem ouvido, o teriam tampado.

Eu queria dizer a vocês, mas vocês não me entenderiam. Então não digo. Será que vocês me entendem?


10.2.24

Um falcão de volta ao céu


Lá na rede social,

passa boi, passa boiada

às vezes a gente acredita,

noutras, pensa, “é marmelada” 


Nos primórdios do mundo virtual, o e-mail parecia uma coisa mágica, mas, com a chegada das redes sociais, um tempo depois, ele passou a quase nada. Estávamos diante de uma inovação que mudaria de vez – para pior e para melhor – nossas vidas.

As coisas ruins só fazem crescer: excesso de propaganda, suspeita constante de vazamento de nossos dados, ditadura do algoritmo, vista grossa dos donos das poderosas redes aos descalabros que circulam livremente por elas, verdadeira bomba capaz de destruir os alicerces da vida social em harmonia, a própria democracia. Tudo isso num ambiente – como outros tantos no capitalismo tão pouco concorrencial – de alta concentração: quatro ou cinco redes nos prendem a todos.

Dorrit Harazim, jornalista que dá gosto de ler, em recente coluna falava sobre as possíveis cem mil vítimas palestinas (não há contagem, apenas inferência) na guerra entre Israel e Palestina. (Não vou comentar esse conflito, que, a meu ver, está longe de ser uma simples resposta de Israel a um ataque terrorista.) Na conclusão de seu artigo, Harazim cita uma carta de John Steinbeck a Pascal Covici escrita no início da Segunda Guerra. Depois de o autor de        “As Vinhas da Ira” afirmar que a espécie humana não aprende as lições que toma (“a experiência de 10 mil anos não deixou qualquer marca sobre os instintos do milhão de anos anteriores”), ele conclui: “Não digo que o mal vence – jamais vencerá –, digo apenas que ele não morre...”. Essa percepção cabe bem para ilustrar o perigo que ronda as redes sociais.

Sejamos justos: existem as coisas boas. Já pensou a pandemia sem as lives, sem a consulta médica ou a terapia à distância? Melhor nem pensar ou pensar que, além disso, essas redes ainda permitem que façamos amigos a léguas de nossa casa e que reencontremos alguns deixados pelo caminho. No filme “Vidas passadas” (da sul-coreana Celine Song), por exemplo, dois amigos, namoradinhos na passagem da infância para a adolescência, conseguem, graças a uma rede social, se reencontrar doze anos depois de a menina, Na Young, ter se mudado para o Canadá. É um filme bonito, introspectivo – e que toca com delicadeza a questão da imigração –, no qual o mundo virtual só está ali de forma coadjuvante como deveria ser.

Nas redes, arredio como sou a grandes embates, quando não estou divulgando meus textos ou fazendo chacota da vida, me distraio com receitas culinárias ou macetes para disfarçar uma fenda na parede ou dar vida a plantas moribundas. Logo eu que quase não cozinho, não cuido de plantas e não tenho o menor pendor para pintar paredes, consertar ferro elétrico, enfim, para lidar com afazeres tão domésticos. Diante de minha confissão, não estranharia se me censurassem pelo tempo gasto com inutilidades e vissem em meu entretenimento um tico de tristeza doentia, uma queda pela escuridão. Se é assim, diante do breu e obediente a Thiago de Mello, eu canto.

Além desses vídeos sem-noção, curto outros simples, que – se não saíram da cabeça de uma Inteligência Artificial, hipótese a não ser descartada –, me enchem de esperança. São delicados os que mostram um urso panda brincando na neve e a dificuldade de uma elefanta ou de uma onça para atravessarem seus filhotes numa rodovia – tem sempre um que volta. Um vídeo me toca em particular: três pessoas, cientistas, imagino, chegam ao topo de uma montanha e tiram de uma caixa uma ave enorme, um falcão, se não estou enganado. Esse animal fica andando de um lado para o outro, estudando a paisagem, reconhecendo a casa, decidindo o melhor momento de voltar ao seu habitat. Ele vai para cá, vai para lá, vai e volta de novo até tomar coragem e despencar no céu. Vibro pela ave de voo tão seguro, mas igualmente pela atitude daquelas três pessoas cujos rostos não são mostrados. Elas devem ter resgatado o animal fragilizado e o levado a um centro de tratamento, onde ele foi recuperado. Aos poucos, treinaram a ave, a estimularam em voos controlados e, depois de muita observação, concluíram que era o momento de devolvê-la à liberdade.


29.1.24

Janeiro visto de um cesto de gávea

Nos devaneios a que me entrego vez ou outra e quase sempre, concluo, por exemplo, que não deveríamos nos assustar com a inteligência artificial, haja vista que a literatura é o resultado de uma certa IA. Assim como faz a máquina, para escrever um poeminha, é preciso ler outros tantos, misturar uns com outros, respeitar ou não a métrica, à moda de uns, as formas clássicas, à moda de outros. Um erudito talvez leia mil livros, a IA, alguns milhões, senão todos. No entanto, o primeiro vai ao banheiro, a segunda não. Nosso diferencial – e nossa vantagem – portanto, meus amigos, está no fato de irmos ao banheiro. O dia em que a máquina pedir um tempinho para fazer xixi, adeus humanidade.

Há algo de muito errado com nossos figurinistas, pelo menos os de novela. Em Paraíso Tropical – novela de 2007 que se passa no Rio de Janeiro, tendo Copacabana como o centro do mundo –, é sempre verão. Há o núcleo dos que jogam futevôlei e o dos jovens que frequentam a praia após as aulas. Há as meninas de programa em roupa minúscula fazendo ponto ao longo da orla. Enfim, é como é essa cidade-inferno. No folhetim, todavia, fora da praia, os homens se agasalham – de terno, no escritório, de casaquinho desses que as mães aconselham os filhos e as filhas a levarem caso o tempo mude, nos outros ambientes –, enquanto as mulheres não ou quase nunca não. Uma amiga lançou a ideia de que as mulheres com menos roupa obedeceriam ao velho machismo. Pode ser, mas eu vejo como um problema de verossimilhança (ou marketing da indústria do vestuário). Numa mesma cena, os homens – que já estiveram em marte – estão no inverno, e as mulheres – que transitaram por vênus –, no verão. Acordai, figurinistas.

Quando cheguei à Folha Seca, livraria no centro do Rio que completou no dia 20 de janeiro vinte e seis anos, encontrei seu dono, o Digão, carregando cadeira, ajeitando o piano e as caixas de som. Para quem não sabe: no dia de São Sebastião, o padroeiro da cidade, a Folha Seca promove uma festa de rua maravilhosa. Grandes músicos vão para lá e dão altas canjas. A vedete é um piano de cauda, que vai passando de mão em mão. A gente ouve em sequência chorinho, samba-jazz, bossa nova e o velho e bom samba. Pois bem, encontrei o Digão pegando no pesado e comentei que o havia conhecido quando ele era livreiro da Dazibao. Dei-lhe uma espetada: livreiro, não, um repositor de livro. Ele então me disse que aqueles eram tempos bons, agora, dono do negócio, carregava cargas mais pesadas. Dito isso, foi levar cadeiras para a turma do samba. A vida de um empreendedor cultural não é fácil.

A passagem de dezembro para janeiro foi, em termos de saúde, um pouco complicada. Nada sério, só aquelas chatices que surpreendem nosso corpo dando-nos um alerta de nossa mortalidade (será que devo almejar a Academia de Letras?). Primeiro foi um evento – realmente não sei como me referir a isso – de herpes-zoster. Apareceu no olho direito. Dei sorte, não tive dor, o que parece raro nesses casos. No primeiro dia útil do ano, fui ao escritório, o que só faço de quando em quando, pois trabalho à distância. No ônibus, um senhor caiu. Me levantei para ajudá-lo: me agachei, dei-lhe a mão, ele se apoiou em mim e se levantou. Quem por pouco não se levantou fui eu. Enquanto o ajudava, uma pinçada na coluna quase me nocauteou. Um anti-inflamatório e uns analgésicos aliviaram a crise nos dias seguintes. A Solange, que trabalhou em casa por trinta anos, quando soube do caso e de sua consequência lombar, me mandou um conselho: “Ó, vencida a barreira dos sessenta anos, ao presenciar um acidente assim, o máximo que devemos fazer é exclamar: Ah, coitado!”

Li mais devagar neste janeiro à beira dos sessenta graus. De todo jeito, coisas boas. Algumas estão aí à disposição dos leitores (“A casa da mãe dos homens”,  Telha, de Ione Mattos, e “As filhas moravam com ele”, Caos e Letras, de André Giusti), outras têm de ser garimpadas em sebos (“A língua da serpente”, Lê, de Jeter Neves) e, por último, um inédito. Sobre este não anuncio o título nem o autor, mas aguço a curiosidade de vocês: é um livro que, numa escrita leve e sem pompas, não parece muito diferente, mas é.

Estar num cesto de gávea pressupõe estar num barco à vela, a caminho de uma Índia qualquer, encarregado de avistar terra logo adiante. Não estou em barco nenhum. A imagem serve para dizer que estou sobre as águas da cidade submersa pela chuva. Sob os desígnios do deus marítimo e menino, o El Niño, com o auxílio luxuoso de anos de crescimento urbano desordenado e incompetência misturada com má-fé (ou pior) do poder público, as águas sobem pelas ruas e derrubam as casas dos morros. A chuva não tem piedade de ninguém, ou, um pouco a Caetano e Gil e sendo mais exato, ninguém, não, dos que são “quase pretos, ou quase brancos, quase pretos de tão pobres”.