28.3.06

Enfim, um poema

Hoje, direto e reto, sem muita conversa fiada, coloco aqui nessa minha gaveta aberta ao mundo um punhado de versos (quem sabe se ainda em elaboração?). Devo dizer que o escrevi a partir da leitura de uns poemas do grande vagabundo norte-americano, Bukowski.

Saravá, poeta!


Canções Americanas
(Ao Cristiano dos Santos, que me emprestou o livro)

I
Não estou chorando, Kowski,
Vem do casco da cebola com que tempero a carne da carne de plástico —
Da vaca somática —
Ajuntando erva-daninha ao diabo da pimenta
Pra tascar fogo
Oh, Kowski!
Onde está o céu?
Cadê cadê cadê cadeira dura, bunda mole,
Quede quede o quarador de roupa e as colchas de mamãe
E as coxas da sua mãe, Kowski, pequeno marginal do pinto roto?

II
Baixa mulher das tetas que são demais pra minha boca
Sexista dia sim dia não dia sim dia e noite e noite e dívida
Tu carrega no bucho o porra nenhuma o abortumbrado
Filho meu dele de tudo quanto é um que te viu aberta
Em Paris da puta que nos pariu
— Parada.

III
A seiva de hoje é o duplo de cola e gelo
E gordura e sal e fica quieto e não se mexa
E não se mexa e trabalhe o dia a noite toda e mais um trago
E cheire e deite para não dormir para não sonhar para não
Para educada e cordialmente afirmar e reafirmar a próxima invasão, a de mil,
Na base da mão invisível
Com a ajuda da cartucheira de hoje afeita a disparos ininterruptos
Apontada para o artista da fome que sobe para o palco da morte
Num salto só do anonimato à estatística.

IV
Seu way of life
Seu Wayne e his wife
Carros carrões e grandes produções e a boca e a fome
De um russo exibindo a nudez das suas pudicícias
Enquanto a nova guerra (apodrecendo) arromba o glamour da vitória
Cuspindo à tona o suculento sangue do sangue do sangue bom do sangue de todos
Vocês e nós
Nós… apertados… apartados.

V
Furacões eunucos chamam a sua atenção para o seu tão próprio
Irreconhecido quintal. Seus olhos sempre
Esquadrinhando o além da cerca: o mundo, o mundo pouco visto mas imaginado
E fabulado
Para o qual
Sem se deter
Você avança de derrubada em derribada desenfreada
Sem freio freio nenhum.

VI
Marchas.
Estradas.
Algodão.
(Muita dor, de lascar.)
Jaz a alma
Petrifica-se a alegria
Come-se pelas bordas, queimando os beiços,
O último cigarro de bango
A última dose de a-que-incha
Para desbagulhar entrededos a tortura e a tontura
E morgar no colo do coito do coito do coito da violência
Selada nas coxas — e cruel.

VII
Onde estão seus tamborins?
Batendo na mesma tecla
Dos excessos do seu silêncio
Que mareia a miséria cujo endereço
São seus becos sem saída
E suas raízes fissuradas.
Mas também
Ludibriando o rigor da escala
Com tanta paixão e fome e fúria e medo e vergonha e demência
Se assemelham ao que não são: a um assobio descuidado
Nas filas dos seus supermercados de sua previdência social de sua acolhedora morte.

VIII
O carnaval submerso de New Orleans
O vício tabagista das fábricas
A mistura de diesel ao sangue
O batismo cifrado das sementes de trigo
A obesidade dos esgotos:
Ao Lucro, as batatas (de parafina).

IX
O suor de Luther King
O suor (frio) de Parker
Duas gotas da mesma dor
Duas dores da mesma cor
Dois gritos gestados no umbigo das contradições
Que cheiram a flor que cheiram a peido
Que não fedem nem cheiram
Até ... até o pum fatal da pólvora e o tum final do coração ao injetar mais sem poder.

X
Kowski, a descoberta de seus iguais
(Iguais na sede; iguais na perspicácia; iguais)
Cobre os pés, também os meus, quando o cobertor é curto
Abraça quando tudo desmorona
Empurra quando já é cansaço demais.
Mas, Kowski, seu punheteiro,
Conterrâneos, seus desiguais,
Preferem um certo frio,
Cair de vez
e
Morrer
de
Cansaço.



21.3.06

Não sei ao certo

Durante a minha infância, ouvi, e muito, esse papo de que homem não chora. Não lembro de ter saído da boca de meu pai, mas familiares diziam, outros pais diziam, professores também. Sou do tempo em que todos diziam.

Nunca eu mesmo disse, nem a mim, nem a amigos, sobrinhos ou filhos. No entanto, o fato é que poucas vezes chorei.

Lembro de todas elas.

Quando minha avó materna morreu. Um certo dia depois da morte de meu pai. Quando foi a vez do Marião. Sempre a morte. O choro da orfandade é a exceção permitida: lembro de assistir atônito ao pai: homem forte, rasgando-se na frente de todos diante da morte do filho.

Nunca no cinema. Nunca lendo um livro. Nem ao ver uma imagem de terror. Não choro diante da pobreza vergonhosa habitante de nossas ruas, ainda que sofra por ela; covardemente.

Sou da secura de minha mãe.

Ainda que.


Ao ouvir a gravação ao vivo de “Travessia”, feita por Elis Regina (em disco lançado depois de sua morte, a partir de umas fitas que receberam um banho de tecnologia), já não comungo intimamente com o racional dos parágrafos anteriores. Algo se desmancha, se transforma em outra coisa tão eu quanto, mas meu diferente.

Posso muito bem ver Elis levantando os braços, fechando os olhos, naquele instante em que a melodia sofre sua inflexão, para cantar o estribilho (“solto a voz nas estradas...”). Neste momento e todas as vezes, Elis cruza a fronteira, passa para o lado do sublime. A guitarra de Natan Marques toca solo assemelhado a um lamento metálico, levando a voz de Elis. Para onde?

Não sei ao certo... É provável que para um ponto de muitos pontos, onde minha química, minha biologia, meus nervos e minhas fricções elétricas sucumbem à magia da condição humana, que nasce ali entre tudo isso para ser uma força muito maior do que a soma de seus elementos.

Enfim, espaço onde a dor é e pronto.