30.11.06

O homem mais velho do mundo

Adão, apesar de pecador, ou por isso mesmo, viveu 930 anos. Outros bíblicos também ultrapassaram a barreira da velhice, alcançando outro estágio da vida, que não chegaremos a conhecer. Assuntos de religião são muito controversos, prefiro evitá-los. De qualquer modo, Adão foi menos que um homem, sendo, de fato, um modelo de homem ou um homem-modelo, não sei bem. Sua longevidade é uma metáfora para as dores e prazeres do ser humano, as de ontem, de hoje e de amanhã, explorada no veio de um rio ideológico.


Portanto, o homem mais velho do mundo não sai da bíblia, tem de ser alguém de carne e osso. Minha avó, por exemplo, é candidata. Viveu 96 anos, dos quais os últimos 20 na escuridão da cegueira. Ela não teve os recursos da modernidade, todas as drogas que nos perpetuam mais e mais, sequer saneamento, luz elétrica e água tratada (teve, sim, nos seus últimos 15 anos de vida). Fez 18 partos, traduzidos em 22 filhos, 8 deles natimortos ou mortos na primeira infância. Em suma, um milagre.


Todos os filhos de minha avó viveram menos do que ela. Apenas uma das filhas pode ultrapassá-la, ainda que esteja vivendo completamente alheada da vida, a despeito de enxergar bem. Inventa namorados. Vê pessoas onde não há pessoas. Paquera sobrinhos. Toma sol levada por sua ajudante. Come como uma menina sem intenção de ser top-model. E é magra, magérrima.







Nem minha avó, nem sua filha são os homens mais velhos do mundo. Ao colocar o título do texto pensei em colocar “O ser humano mais velho do mundo”, seria mais correto. Depois, me censurei: politicamente correto demais! Na língua portuguesa, homem é o macho e é a raça. Então, vamos de homem, mesmo que se acabe por escrever a frase anterior: minha avó não foi o homem mais velho do mundo. Logo Dona Tomásia, ceguinha e feminina como ela só.



Já estou eu perdendo o rumo. Toma tenência, escritor!


Esperava a hora de pegar o remédio para meu filho. Daí a pouco cruza por mim um sujeito vestindo uma dessas máscaras típicas de quem está fazendo tratamento e precisa de proteção contra a vida invisível escondida no ar. Fura a fila com todo o direito. Quando volta, uma senhora, dois corpos à minha frente, chama-o. Se conhecem. Começam a conversar. Ele conta sua história bem triste (transplantado de rim, padecendo de efeitos colaterais sobre o coração e, aparentemente sem ligação com a doença original, sofrendo de um começo de surdez). Um homem, entre mim e a senhora que conversa com o transplantado, faz um comentário do tipo: nossa, tão jovem! E ouve como resposta:


— Não, senhor, sou o homem mais velho do mundo. Estou condenado à morte desde os meus 10 anos de idade.


Ele não tem mais de 35 anos. É possível que tenha menos de 30.

14.11.06

Maquinação do Senhor Noll



Instigante sempre foi. Falo da obra de João Gilberto Noll, que agora ganha mais um livro, “A máquina de ser” (Nova Fronteira), reunindo uma série de pequenos contos. Se, em número, o grosso de seu trabalho são os romances, os contos costumam chamar bastante a atenção, não sendo raro encontrar aqueles que os consideram como a melhor parte da criação do escritor gaúcho. Também dizem isso em relação a Clarice Lispector. Não quero entrar no mérito da questão, mas acho que esse é o tipo de debate estéril. Noll e Lispector escrevem bem às pampas e o pior deles tira o fôlego de qualquer um (fazer perder ou não fazer perder o fôlego é a melhor maneira de medir a qualidade da literatura).


Debates à parte, concentro-me nessa tal máquina de ser do Senhor Noll. O título abre dois caminhos claros para associações rápidas: a contemporaneidade (máquina) e a filosofia ou a perenidade (ser). E é bem no interstício entre essas duas forças que Noll, habitualmente e não só neste livro, trafega. Poucos são os autores capazes de cutucar com vara curta a ferocidade de nosso dia-a-dia, no qual, não por acaso, o corpo furioso se apresenta como espaço sintético de todo o resto.


Nos contos da “Máquina”, o corpo é a estrela, também o breu, o que pouco importa, desde que céu e inferno sejam entendidos como foco urgente e principal de Noll. E são. Não só neste livro, em todo o Noll, em contos e romances, de cabo a rabo, dos pés à cabeça, o corpo serve de palco a suas fabulações.


Entre este livro e os romances, há uma diferença fundamental: Noll trancafiou seus personagens no ambiente de suas casas, como o fizera em sua estréia em contos, “O Cego e a Dançarina”. Não vamos encontrar mais o sujeito que permanentemente está mudando de ares, indo de Copacabana para Santo Cristo e, num átimo, rumando para o Leblon, quem sabe descansando no Rocha ou se perdendo num país inexistente; voando de Londres para Porto Alegre, vagueando, antes, pela Lagoa da Conceição. Os personagens do Senhor Noll sempre precisaram de campos abertos e de longas caminhadas, riscando uma metáfora de liberdade na prisão pessoal, intrínseca, não há como não bisar, corpórea.


Eis que, na “Máquina”, o ir-e-vir se reduz a um quase nada, tudo está ali intramuros. Mesmo quando um helicóptero aparece para levar o pouco que resta de um tal personagem para o mais distante possível, para a geografia sem fronteiras do céu, não logrará sucesso. Sim, sim, se o céu é o paraíso religioso, a afirmação anterior não se sustenta, mas se não é, e para Noll não é, o resultado final será um aglomerado de carne e ossos esboroado no chão, instante em que perderá pelos pólos a liquidez das idéias e ganhará, tarde demais, a dimensão do imensurável.


O ilimitado, a partir do novo livro, perde o significado até então concebido a ele, o de metáfora da recusa do que está posto pelas regras da convivência. A mesma recusa continua quando o espaço se reduz ao mínimo possível. Em Noll, nunca houve sinal de agorafobia, nem há, em sua última tacada, sinal de claustrofobia. Em campo aberto, em quarto fechado, o corpo corre sozinho os riscos inerentes à condição humana.