26.11.07

O que se é




No dia em que a tristeza foi embora, fui acometido de outra maior ainda. Nos acostumamos a ser o que somos, ainda que ser ou não ser pertença a um mundo distante léguas de minha tímida crônica.

Não é assim, leitor? A gente é bobo, deixa de ser bobo, fica triste. A gente é alegre, perde a alegria, bem, aí é óbvio (existirão mais coisas entre a alegria e a tristeza do que meu vão devaneio é capaz de imaginar?). A gente deixa de ser pobre, a tristeza se impõe: ser rico se parece com uma dívida, sabe-se lá com quem, mais pesada do que a acumulada na mercearia da esquina.

Por que eu dizia tudo isso mesmo? Ah, sim! Nem era pela tristeza, apesar de ser um tico por ela. Era pelo fato de ser bobo. Sou bobo, bobinho da silva.

No meu caso, essa bobeira não está no meu DNA, nem é alguma herança "freudiana" passada de pai para filho como um rio correndo para o mar ou, ao contrário, como um mar recusando o rio. Fiquei bobo para não dar bandeira justamente com minha tristeza. Não fosse assim, ninguém me suportaria. Amarro bode diante de minhas inúmeras impossibilidades, mas também por causa da crueldade existente nesse país de crianças abandonadas e de adultos que as abandonam.

Rio à toa. Faço piada de tudo. Para não sucumbir, o escárnio. Sejamos bobos. É uma senhora saída.

Para ser bobo, basta ter inteligência. Não digo dessa congênita, matéria-prima dos gênios. Falo dessa outra que se acha largada na rua, no humor do carioca, por exemplo. É mais uma questão de rapidez, de atenção. Pois bem, quem cumpre essa premissa está a um passo de se tornar bobo. Quem não, não se desespere, talvez nada do que anime a minha tristeza avive a sua. Talvez você seja um bobo nato. (Não há nada de mau nisso, acho mesmo o máximo; invejo quem o seja.)

Ser bobo é uma opção. De foro íntimo, portanto. Raciocino assim: ou isso ou ficar carrancudo pelos cantos. Sei lá, carrancudo hoje, infeliz amanhã, suicida não mais do que de repente. Não mergulho em rio dessa natureza. Enquanto houver sexo, pão e circo (se for do seu agrado: sexo, drogas e rock'n'roll), vou vivendo, vivendo eu vou. Pode ser que um dia me veja lambido por cachorro, largado numa sarjeta qualquer, ouvindo dos transeuntes comentários do tipo: "Vai ser bobo lá na China". Feliz não estarei, mas, quem sabe, de tanto insistir, serei mesmo bobo, exclusivamente bobo, não só na casca, mas nela, na clara e na gema. Amém.

(PS. "La Reproduction Interdite" é de Magritte)

20.10.07

Cachorro


À Celina, que adotou o Tilo.
À Nilza, pelo Nicolau (o boxer).


Bem sei que não se deve cobrar muita coerência de nós, pobres humanos. Todavia soa estranho dizer que o cachorro é o melhor amigo do homem e chamar de cachorro o pior dos homens. Com que “lado” do cão ficamos?

Tive, em menino, um cachorro independente, vagabundo da melhor estirpe. Esteve em minha casa por uns bons dez anos e nunca tomou banho. Se ouvia a palavra água, fugia. Sua fuga tanto podia ser correr para o fundo do quintal, escondendo-se entre árvores, como sair portão afora e voltar noutro dia, às vezes noutra semana. Resultado da luta insana que os cães travam por conta de uma fêmea no cio, regressava esfalfado. O Zorro nunca foi levado para cruzar; ele que se virasse. Pelo jeito, se virou, ou, por outra, espero que tenha conseguido alguma coisa além das marcas de luta.




Sendo assim, não me acostumo com a idéia de cachorro vivendo dentro de apartamento ou mesmo de casa. Não me atraem aqueles que comem da melhor ração, que são levados ao veterinário para cortar os pêlos e fazer check-up. Parece estranho, por exemplo, minha irmã arranjar cobertor para um boxer que dormia do lado de fora da casa de minha mãe. Em não lhe dando coberta, morreria de frio? O Zorro não morreu, disso não morreu.

(Me perco em desvios, fico por aí falando de meus pecados e esquecendo ao que vim).

Noutro momento, já contei da morte de minha mãe. Pois bem, fiquei responsável por ajeitar a papelada exigida pelas instâncias burocráticas da vida. Entretanto, além disso, teríamos, meus irmãos e eu, de fechar a casa dela, longe do Rio, na cidade em que nenhum de nós vive mais. Nela, além dos móveis, restavam dois cachorros: o tal boxer e um poodle — este, não parece difícil imaginar, acostumado a dormir ao pé da cama da dona.




Não conto da depressão dos animais no momento do luto, mas ainda estávamos todos na casa quando comecei a notar que o poodle, o Tilo, percebeu que seu destino estava em minhas mãos. Todo aquele comportamento reservado à minha mãe foi-se transferindo aos poucos para mim. Com um agravante: triste, passou a só comer na minha presença e, se eu não estava, punha-se a latir e chorar perturbando a vizinhança. Certa noite, me acordou para mostrar que havia feito suas necessidades na cozinha. Veja só a ironia: logo eu, pouco amistoso com esse tipo de cão, lidando com tamanha herança.

Uma vizinha adotou o Tilo e o boxer, bem, este foi obrigado a fazer uma operação contra um câncer que acabaria por matá-lo passado pouco tempo. Quando saíram os cães, fiquei quatro dias sem nenhuma companhia na casa vazia. Vazia daquela espécie única em que ficam as casas depois da morte da pessoa que viveu nelas uma vida inteira. As coisas crescem, é como o registro das lembranças trazidas da infância: tudo parece grande; tudo, tudinho.

Vivi então na própria pele a dubiedade de o cachorro ser o melhor amigo do homem e alguns homens, verdadeiros cachorros. No caso, fui o homem amado por um cão e, de novo homem, um cachorro que se desfez desse mesmo cão.


16.8.07

Atacado Absoluto

Nos acostumamos com a máxima de que tudo é relativo, e é. Não sei se a teoria exige que exista, de qualquer forma, um absoluto. Na religião, como me disse há pouco um amigo que perdeu um filho, não se deve cobrar a existência de Deus, pois, de fato, Ele não existe, Ele é.

Outro absoluto é a morte, da qual falo hoje. No dia 10 de julho, ela visitou minha casa e levou minha mãe. Não tardou 48 horas, voltou para buscar o dentista da minha infância, primo de meu pai. Não satisfeita, esperou o relógio cumprir mais 24 horas e derrubou outro primo mais distante. Eu já dizia que ela atuava no atacado, uma comerciante de quantidades, quando morreu o Bolinha, um sujeito pertencente ao meu círculo afetivo, que durante anos, lá no interior de Minas, fez um excelente sanduíche de carne.

Então veio a tragédia de São Paulo. Nem a morte nas mãos do Saramago agiu com tanta objetividade e frieza. Aliás, para dizer a verdade, a morte nas letras do Saramago foi personagem de um romance menor (“Intermitências da Morte”, Companhia das Letras) do homem que deu vida humana a Jesus Cristo em seu belíssimo “Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Mas deixemos a crítica de lado e voltemos à morte. Ninguém volta à morte, bem sei, porém acho que vocês entendem o que quero dizer.

Sem exagero, a tragédia de São Paulo tornou todas as demais mortes coisas menores. Vivos, transitamos no mundo da relatividade. A morte de minha mãe é, em mim, uma dor que, como a deixada por meu pai, amainará hoje para voltar amanhã. Não latejando, mesmo assim será dor, conheço dessa matéria. Porém mamãe viveu quase 84 anos, foi feliz com meu pai, teve quatro filhos que se formaram e nenhum de nós é malandro, escroque ou mau irmão. Enfim, mamãe viveu uma vida e deixou frutos dignos do seu amor. Logo, choro sua morte, mas me conformo, assim como me conformo com a dos outros amigos que se foram logo a seguir.

Difícil é suportar a morte dos que desciam em São Paulo, indo, quem sabe, visitar um amigo, fazer um exame, pegar outro avião para visitar familiares, gente que daria prosseguimento à vida. Decerto morreram por alguma causa que se explicará muito bem (falha humana, falha mecânica, defeito na pista, seja lá o que for), mas que não apagará as questões políticas que estão atreladas à matéria da aviação no Brasil desde o acidente entre o avião da Gol e o Legacy. Torçamos para que se chegue à conclusão técnica e se tomem as providências necessárias para que isso não se repita.





Este julho de 2007 foi mês em que a morte atuou no atacado. Saiu das esquinas, onde estende sua mesinha de camelô e, montada num caminhão de último tipo, desses com letreiro chamativo, foi arrastando as pessoas de roldão. Não há o que discutir com ela; nem com Deus. É preciso, sim, discutirmos entre nós, valorizarmos nossas vidas e nosso convívio comum. Com urgência.


Enquanto isso, vou aprendendo a ser órfão de pai e de mãe, nesse mundão sem fim, cada dia mais apertado.

30.7.07

Morei na Gávea






Sim, morei sim.






Não era perto do Baixo, ao contrário, era bem lá pra cima, depois da PUC e do Teresiano. A casa sem pai nem mãe, onde um mineiro (eu) e um boliviano residíamos, era porto para todo tipo de embarcação. Amigos, antes disso e depois daquilo, ancoravam por lá; outros, abraçados às suas mulheres, desabrigados por alguma enchente tropical, ali se aboletavam com mala e cuia e só não levavam cachorro porque não tinham. Um outro sistematicamente chegava, sentava-se no sofá da sala, ligava a televisão e dali não arredava por nada. Se calhasse de a noite esquentar por conta de algum excesso — sabe como é, aparecem meninas que ninguém conhece, abre-se uma cachaça pura de alambique do interior de Minas ou do Ceará, experimenta-se um fuminho de rolo que papagaio não bica —, nem assim esse amigo desgrudava da televisão, vendo qualquer coisa que passasse nos canais abertos (e únicos, pois não havia canal a cabo, talvez nem antena parabólica). Enfim, mais do que em casa, morava na comunidade dos universitários que começam a farejar a vida sem o controle rígido dos pais. Fizemos besteiras e aprendemos muito. Sobrevivemos, quer dizer, alguns morreram, não pelas pequenas doideiras ou por algum malefício adquirido ali; morreram porque, estando vivos, morremos sempre.




A Gávea para mim não é exatamente um bairro, esse metro quadrado de pedra que começa numa praça, termina numa favela, tem montanha de um lado e o mar um pouco distante, mas, sim, um espaço incrustado na memória. Justamente na memória do homem que sou hoje, feito, em parte, do jovem que fui então. É, portanto, uma bruma, um debuxo, um fio tênue, ainda que resistente, diria mesmo perene.




Talvez por isso, onde estou carrego o bairro comigo. Levei-o para Botafogo, onde vivo. Levei-o à Bolívia, aos Estados Unidos, à Finlândia, enfim, às terras estranhas e estrangeiras que as circunstâncias me fizeram conhecer. Levei-o para compartilhar com meus amigos de botecos em Minas e em conversas fiadas nas noites frias de São Paulo.


Para Bandeira e Cabral, Pernambuco. Para Drummond, Minas. Para Trevisan, Curitiba. Para Marques Rebelo, a capital da Guanabara. Para García Márquez, Macondo. Real ou fictício, precisamos de um chão, assim como precisamos de pai e mãe (reais ou fictícios). O meu chão, que é Minas, também é a Gávea.





Tô Voltando

Ando rateando como os viciados de modo geral. No meu caso, todavia, vou na contramão. Digo: volto ao blog amanhã, mas não volto, não escrevo. Meu vício é a abstinência.
De todo modo, reproduzo a seguir uma crônica que escrevi para o Jornal Folha Gávea e Leblon, publicação mensal de circulação gratuita. Como devo escrever por algum tempo no jornal, pelo menos uma vez por mês volto aqui para rechear meu blog, coitadinho.

7.3.07

Carta de Saudação

Desculpe o jeito, mas sou informal em tudo. Já me disseram que isso vai me custar caro, que o mundo real, o do trabalho (aliás, escasso toda a vida nos dias de hoje), exige formalidade. Que não vou ascender, serei apenas esse sujeitinho simpático e solícito, nunca chefe, doutor, essas qualificações filhas do formalismo. Sou assim, e meus quarenta e cinco anos me levam a desconfiar que perduro nessa até rachar, ou melhor, morrer (além de informal, ser cheio de metáforas é demais para o propósito dessa singela carta de saudação).


Posto isso... Ô, Bush, chega mais, toma um café.
Cara, fico olhando de longe, você na TV, eu estatelado no sofá, cansado do vaivém cotidiano, e me pego pensando: macacos me mordam, esse sujeito é o bicho chupando manga. (Fui dominado pelas metáforas. Agora paciência.) Você não tá nem aí para o efeito estufa. Você quer mais é meter tiro nesse povaréu muçulmano. Também naquele de olhinhos fechados, não só os coreanos — bem sei, os seus, Bush, olhinhos de igual modo meio fechados não me enganam —também os chineses. Sua pança engole uma China se (os chineses e o resto do mundo) vacilarem. Com PIB grande, crescente ou não, e tudo. Tome cuidado com o muro: mamãe disse que embrulha o estômago comer pedra. Não, claro, ela não disse para mim, avisava a um pobre coitado faminto que se interessava por um tijolo largado na rua. Mamãe é terrível, excessivamente sensata, até com esfomeados ela se mete a ser a sensatez em pessoa. Nisso vocês se parecem.

Esta carta, escrevo-a para lhe dar as boas-vindas. São Paulo é o Brasil. Se você ficar só aí nas bandas da Avenida Paulista, vai pensar que falamos inglês, que somos um exército de reserva convocável para acabar logo com essa bobagem de Cháves na vizinha Venezuela (além de achar que o trânsito da cidade é uma beleza). Agora, dê uns passinhos pra lá e outros pra cá, leves, dançantes, ora, ora, o cu do mundo também está encravado na metrópole brasileira. Por mais que minha mãe tente, mesmo na rica São Paulo, a nau dos insensatos insiste em beliscar um tijolinho, em mascar piche. Talvez você não se assuste por conta de lá nos States encontrar gente como essa, que parece existir apenas para manchar nossa reputação. Tudo leva a crer que a escolha por São Paulo foi acertadíssima, é a nossa metade mais aproximada da América. (Você não se orgulha de América ter se tornado sinônimo de Estados Unidos da América? Nós aqui, não faço rodeios, temos uma certa implicância com isso, não sei bem a razão, mas achamos também que somos da América. Imagine que os professores nos ensinam isso no colégio. E confirmam na universidade).

Talvez você, Bush filho, já tenha ouvido falar do Rio de Janeiro. Seria o lugar ideal para vir. Seu antecedente, aquele democrata chegado a estagiárias, veio aqui e caiu na farra; no samba, compreende? No entanto, desaconselho a visita por estarmos atualmente em guerra. Não contra muçulmanos. Nem contra judeus. Nem contra bárbaros de qualquer espécie. Lutamos contra os monstros que cultivamos em 500 anos de história e que, veja a loucura, resolveram fugir da jaula e, mais do que isso, colocar os que estamos fora dentro. Para dar uma espiada na beleza carioca, peça a seu avião para dar um rasante pela cidade. Pode descer atirando, existirão aqueles que o aplaudirão. Nem lhe digo para tomar cuidado, mas tome, com a criançada que, indiferente aos caos, dá suas estilingadas e solta pipa com cerol. Agora, não perca a esportiva à toa, carioca é fogo, chegado a dar apelido de primeira, no improviso. Não estranharia se referissem a você como Bush de Canhão. Essa turma não se emenda.


Bem, Bushinho, a carta é singela, até mesmo um pouco doidinha, escrita fora do riscado da razão, mas o objetivo dela é, além de lhe dar as boas-vindas, alertando-o para nossas características particulares, que nós mesmos chamamos de tupiniquim, também lhe dizer que vejo em você a encarnação daqueles personagens de desenho animado e seriado de heróis, todos made in USA. Falo daqueles que riem muito, e como riem! Uma risada forte, que diz tudo. Já sacou? Não? Pô, Bush, Bushinho, tô falando dos caras do mal. Daqueles que querem acabar com o mundo. Você é igualzinho. Nem precisa do risadão, basta fechar seus olhinhos e corar a bochecha.
Em algum momento da vida, comecei a acreditar que isso de bem e mal é uma simplificação; maniqueísmo, como dizem. Mas, ilustre visitante, se você não é o mal, o que seria?

Bem-vindo.

PS. Por favor, filho do Bush, Bush igual, não me vá ter uma recaída com o álcool brasileiro.

25.2.07

César Aira e o Espaço da Arte


César Áira. Escritor argentino. Contemporâneo. A Nova Fronteira acaba de lançar dois títulos dele: As Noites de Flores e Um Acontecimento na Vida do Pintor-Viajante.


Não fiz pesquisa exaustiva sobre o escritor, mas, não resta dúvida, é um dos mais badalados da literatura atual de seu país. Aira não se contenta com o espaço da ficção, escreve também ensaios, o que se presume ser uma busca de compreensão do mundo de forma estruturada, talvez até canônica. No meu modo de ver, a literatura é o espaço da procura, do encontro casual. As narrativas não servem a nada, como disse há pouco, conforme li em reportagem em “O Globo”, o poeta Paulo Henriques Brito a respeito da poesia.


Isso não quer dizer que não revelem. A ficção é mão que rasga o véu da forma mais incerimoniosa possível. Mas não o faz para revelar o que está sob o véu, mas simplesmente para dizer que há algo sob o véu. Assim fazendo, dá à luz a nudez de nossa condição humana. Às vezes de forma rápida, pois é preciso recobrir tudo para reiniciar o pique-esconde. O próximo corpo gritará outros segredos.


Em “As Noites de Flores”, Aira parece transitar entre a inutilidade da ficção e a obsessão reveladora do ensaio. Em grande parte da novela, ao acompanhar seus personagens “centrais”, o autor salpica o texto de verdadeiras digressões sobre a contemporaneidade. O contraste entre o velho e o novo, as limitações e transformações impostas pela crise econômica, o espaço real e o espaço mais do que real estabelecido pela televisão — tudo isso posto enquanto o narrador acompanha um casal aposentado que, para garantir seu sustento, entrega pizzas pelo bairro de Flores. Entrega, aliás, a pé, causando uma estranheza desestabilizadora, mas também restauradora, no ramo em que dominam jovens e motos.


Levando a narrativa num feixe de leveza, o início poderia indicar o caminho da crônica. Não, Aira foge disso e, fazendo um bom jogo textual, vai depositando, de pouco em pouco, elementos de mistério (o seqüestro de um jovem; a figura de outro cujos 14 anos não o impedem de conhecer todos os segredos do GPS, mas o impedem de garantir se determinado colega é um homem ou uma mulher), típicos do suspense que se espera de um bom livro.


O autor dá uma rasteira no leitor na segunda parte do livro. Se boa literatura se faz a partir da coerência, ou mais do que ela, do fazer sentido dentro daquele mundo que se construiu, não se vai encontrar isso em “As Noites de Flores”. Ao contrário: de repente vamos sendo apresentados a inúmeras e sucessivas quebras. Um personagem é cego, mas não o era em momento nenhum até que se disse que é. Não há sutilezas que poderiam escamotear essa cegueira. Não, ela aparece sem mais nem menos. Um personagem é homem, mas era mulher até que se disse que é homem. Novamente, nenhuma filigrana foi espalhada ao longo do texto para indicar isso. Há um escritor sem livros, que se torna o portador da verdade que, afinal, não só o juiz do livro, mas todo leitor, busca. Mas, tal verdade, o escritor encontrou em um livro de um roteirista de reality show, um outro metade uma coisa, metade outra coisa.


A segunda parte parece um segundo livro. Na primeira, os anjos agem. Na segunda, os monstros. No entanto, os segundos saíram dos primeiros. A segunda parte saiu da primeira. Ouso dizer que Aira, usando seu faro de ensaísta, de homem preocupado com a concepção da arte no mundo moderno, quis e fez um livro ruim. Um livro que não aceita a “regra” do bom livro, subverte-a, dá-lhe um nó. Se, com isso, o autor fez um bom livro ruim ou não, leitor, vá lá você conferir.
De certo, certo mesmo, é a obsessão que o autor tem por contextualizar a arte de modo geral.


Em “Um Acontecimento na Vida do Pintor-Viajante”, Aira conta a passagem de Rugendas, aquele que pintou a vida colonial do Brasil e de outros países sul-americanos, pela Argentina. Ao que tudo indica, tal passagem foi de pouca importância, mas Aira desfaz a verdade histórica e coloca Rugendas não só fazendo seu trabalho de sempre, como mudando o rumo de sua vida nessa ida à Argentina. O escritor argentino, nesse livro, usa, digamos assim, da “boa prática” novelesca, narrando, sem rupturas, uma história forte e contagiante. Rugendas se faz acompanhar, nessa viagem, por um aprendiz, que, na pena de Aira, não é dos mais talentosos. O choque entre a genialidade de um e a mediocridade do outro é a brecha para a discussão sobre arte. Novamente, assim como em “As Noites em Flores”, Aira nos pergunta: há, hoje, espaço para a criatividade? Há criatividade?


Aira, como resposta, corre risco com sua literatura. E o risco é o maior parceiro de um artista.

3.2.07

Um barranco para descansar


O escritor, ô sono, dá uma grande espreguiçada no meio da tarde de sexta-feira, dia de Iemanjá.

Depois de alguns dias de leitura feita sob o solavanco dos ônibus urbanos, na cidade do Rio de Janeiro, o escritor terminou “O Vôo da Madrugada”, de Sérgio Sant’anna. Mestre esse Sant’anna, a conta gotas vai levando a gente no bico. Nesse livro inventou (escritor não inventa, descobre) um tal Gorila, tarado virtual, pouco tarado e muito virtual, sujeitinho frágil, uma casca de ovo. Fez filho e mãe transarem, sem um pingo de pornografia, deixando escorrer o incômodo de coisa dessa natureza; e deu vida a imagens estáticas, vistas em fotos e pinturas. Tenho na ponta da língua mil comentários sobre “O Vôo”, ainda que o melhor meio de fazê-lo seja conversar seriamente cá com meus botões. Explico, explico. Um cadinho na temática, outro na forma, nossa literatura, minha e dele (talvez também a sua, como saber?) tem muita coisa em comum. Mas quem há de se interessar por isso além de mim, escritor em busca de afirmação?

Essa maldita preguiça, de onde vem? Dormi tarde ontem. Pode ser por isso, mas teve, agorinha, o almoço de arroz com camarão e polvo. Sim, sim, a leseira que se segue a um bom cardápio acomete a maioria dos humanos, não nos deixando esquecer do pecado da gula. Uma prova cabal da existência desse Deus inventor de pecados capitais. Como será o inferno?

Não, meus parcos leitores, vocês não merecem tal humor de porca enferrujada, rangendo dia e noite, noite e dia. Nem eu mesmo mereço tamanha chiadeira. O sol. A lua. O amor. O prazer. Bem sei de tudo isso, mas, ô sono, ô olho pesado.

Chega, chega. O que vocês estão fazendo? Digo, além de ler isso aqui. Nada, nadinha?
Então anotem. Ouçam minha quase conterrânea (que só conheço de disco), a Consuelo de Paula (http://www.consuelodepaula.com.br). Leiam o Bernardo Carvalho (http://www.clickescritores.com.br/bernardoc00.html). Beijem seus filhos (não há página na Internet). Assistam ao “Ensaio de Orquestra”, do Fellini (http://www.imdb.com/name/nm0000019/). Compre ingresso, se estiver no Rio, para ver “Gaivota - Tema Para Um Conto Curto” no Poeira.

Esse cardápio mínimo, bem comido e digerido, pode levá-lo, meu caro leitor, a uma preguiça assim interminável, mas você estará, esteja certo, um pouco menos suscetível de passar pela vida cheio de disposição, mas vazio.