25.2.07

César Aira e o Espaço da Arte


César Áira. Escritor argentino. Contemporâneo. A Nova Fronteira acaba de lançar dois títulos dele: As Noites de Flores e Um Acontecimento na Vida do Pintor-Viajante.


Não fiz pesquisa exaustiva sobre o escritor, mas, não resta dúvida, é um dos mais badalados da literatura atual de seu país. Aira não se contenta com o espaço da ficção, escreve também ensaios, o que se presume ser uma busca de compreensão do mundo de forma estruturada, talvez até canônica. No meu modo de ver, a literatura é o espaço da procura, do encontro casual. As narrativas não servem a nada, como disse há pouco, conforme li em reportagem em “O Globo”, o poeta Paulo Henriques Brito a respeito da poesia.


Isso não quer dizer que não revelem. A ficção é mão que rasga o véu da forma mais incerimoniosa possível. Mas não o faz para revelar o que está sob o véu, mas simplesmente para dizer que há algo sob o véu. Assim fazendo, dá à luz a nudez de nossa condição humana. Às vezes de forma rápida, pois é preciso recobrir tudo para reiniciar o pique-esconde. O próximo corpo gritará outros segredos.


Em “As Noites de Flores”, Aira parece transitar entre a inutilidade da ficção e a obsessão reveladora do ensaio. Em grande parte da novela, ao acompanhar seus personagens “centrais”, o autor salpica o texto de verdadeiras digressões sobre a contemporaneidade. O contraste entre o velho e o novo, as limitações e transformações impostas pela crise econômica, o espaço real e o espaço mais do que real estabelecido pela televisão — tudo isso posto enquanto o narrador acompanha um casal aposentado que, para garantir seu sustento, entrega pizzas pelo bairro de Flores. Entrega, aliás, a pé, causando uma estranheza desestabilizadora, mas também restauradora, no ramo em que dominam jovens e motos.


Levando a narrativa num feixe de leveza, o início poderia indicar o caminho da crônica. Não, Aira foge disso e, fazendo um bom jogo textual, vai depositando, de pouco em pouco, elementos de mistério (o seqüestro de um jovem; a figura de outro cujos 14 anos não o impedem de conhecer todos os segredos do GPS, mas o impedem de garantir se determinado colega é um homem ou uma mulher), típicos do suspense que se espera de um bom livro.


O autor dá uma rasteira no leitor na segunda parte do livro. Se boa literatura se faz a partir da coerência, ou mais do que ela, do fazer sentido dentro daquele mundo que se construiu, não se vai encontrar isso em “As Noites de Flores”. Ao contrário: de repente vamos sendo apresentados a inúmeras e sucessivas quebras. Um personagem é cego, mas não o era em momento nenhum até que se disse que é. Não há sutilezas que poderiam escamotear essa cegueira. Não, ela aparece sem mais nem menos. Um personagem é homem, mas era mulher até que se disse que é homem. Novamente, nenhuma filigrana foi espalhada ao longo do texto para indicar isso. Há um escritor sem livros, que se torna o portador da verdade que, afinal, não só o juiz do livro, mas todo leitor, busca. Mas, tal verdade, o escritor encontrou em um livro de um roteirista de reality show, um outro metade uma coisa, metade outra coisa.


A segunda parte parece um segundo livro. Na primeira, os anjos agem. Na segunda, os monstros. No entanto, os segundos saíram dos primeiros. A segunda parte saiu da primeira. Ouso dizer que Aira, usando seu faro de ensaísta, de homem preocupado com a concepção da arte no mundo moderno, quis e fez um livro ruim. Um livro que não aceita a “regra” do bom livro, subverte-a, dá-lhe um nó. Se, com isso, o autor fez um bom livro ruim ou não, leitor, vá lá você conferir.
De certo, certo mesmo, é a obsessão que o autor tem por contextualizar a arte de modo geral.


Em “Um Acontecimento na Vida do Pintor-Viajante”, Aira conta a passagem de Rugendas, aquele que pintou a vida colonial do Brasil e de outros países sul-americanos, pela Argentina. Ao que tudo indica, tal passagem foi de pouca importância, mas Aira desfaz a verdade histórica e coloca Rugendas não só fazendo seu trabalho de sempre, como mudando o rumo de sua vida nessa ida à Argentina. O escritor argentino, nesse livro, usa, digamos assim, da “boa prática” novelesca, narrando, sem rupturas, uma história forte e contagiante. Rugendas se faz acompanhar, nessa viagem, por um aprendiz, que, na pena de Aira, não é dos mais talentosos. O choque entre a genialidade de um e a mediocridade do outro é a brecha para a discussão sobre arte. Novamente, assim como em “As Noites em Flores”, Aira nos pergunta: há, hoje, espaço para a criatividade? Há criatividade?


Aira, como resposta, corre risco com sua literatura. E o risco é o maior parceiro de um artista.

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