13.12.08

Circunlóquio em torno do vazio

Para pneu ou bola vazios, bomba de ar.


O som de Tim Maia reduz a pó vazios salões de festa.


Saco vazio não pára em pé, mas de saco cheio igualmente se vai ao chão.


Com trabalho, é possível nutrir o bolso. Infelizmente, com roubo também.

Deixar vazia uma rua vazia ajuda o sono dos moradores, portanto, os seus sonhos; e sonhos são como o aroma da flor: mesmo sem ocupar espaço, não passam despercebidos.

Canja bem leve serve como primeiro socorro a estômago vazio, no caso de fome verdadeira. Numa simples vontade de comer, bolacha Maria com manteiga resolve e, na falta dessa iguaria, barrinha de cereais.


Não há agenda vazia enquanto existirem cinema e chope.

Consultar a caderneta de telefone é o primeiro passo para ocupar o meio-vazio da cama de casal.

Falta de voto cura discurso vazio.

Não hesite em virar-se em direção à mesa vizinha quando estiver sozinho.

Beijo de língua em pessoa vazia é o melhor antídoto contra o vazio dessa pessoa.

É bom lembrar que uma mente vazia pode estar espiritualmente cheia. Quando não for o caso, aconselha-se ocupá-la com um par de bobagens.





Contra tardes vazias, noites intensas.

A bebida adequada cai como luva em copo vazio. Adequado é, quase sempre, o suco de laranja. Entre quase sempre e sempre, o vinho. E água o tempo todo, ou quando for preciso.

Vigilância é uma espécie de bomba de ar contra vazios de poder.

A memória é capaz de ocupar a casa desabitada da família.

Carrinho de mercado é ameaça à despensa vazia.

No inverno compreende-se piscina sem água.

Folha ou tela em branco são suplício certo para escritores. Também para pintores.

No primeiro pingo, a chuva lota todos os táxis da cidade.


Não sei o que dizer do vazio existencial.

23.11.08

Como ludibriar a abstinência ou carta aberta de um fã

Moacyr Luz, sambista da melhor estirpe, os atores Otávio Augusto e Antônio Pedro, além do acadêmico-de-rede, João Ubaldo Ribeiro, estão meio molongós. Proibidos de beber, imagino que proibidos também de triscar torresminho, feijão-tropeiro, leite gordo. Fígado não é mole, ou, por outra, quando começa a ficar mole é um deus-nos-acuda.

Todos vocês, meus camaradas, são mais velhos do que eu (até o Moacyr, esse menino, é), portanto não devem dar ouvido a fedelhos, ainda mais um desconhecido. De todo modo, vejam bem, em abstinência sou macaco velho, pois lá se vão dezesseis dos meus quarenta e sete anos sem dar uma bicadinha sequer.

Por que parei de beber? Hepatite C. (Alô, moçada, cuidado com a hepatite C.) Não estou aqui para dar alerta de saúde pública, e sim para tentar ajudá-los nesse início barra pesada. Pois não é fácil, bem lembro. Procurei terapeuta. Sonhei durante muito tempo que bebia dúzias de cervejolas; como bom mineiro, acompanhadas de cachacinha. A vida ficara meio sem graça, pois, ainda que não pudesse ser chamado de alcoólatra, tentava encaixar a birita em tudo que fazia. Cinema? Com chope depois. Sexo? Chope antes, durante não, mas depois, sim. Ler? Acompanhado de uma branquinha, coisa assim pouca, só para liberar a cabeça, nada de abuso.

Eis que o figueiredo me colocou em sinuca de bico: ou trancava-me em casa ou acostumava-me com a idéia e continuava a levar a vida normalmente. Preferi a segunda alternativa, é da minha natureza estar entre amigos. Acontece que meus amigos, claro (claro?), são bons de copo. Ir ao encontro deles é estar em ambiente de muita bebida. No início, bebi refrigerante exageradamente. Dá uma coca aí. Uma fanta. Desce um guaraná. No final da noite, estavam lá cinco, seis, em noites intensas, oito garrafas dessas doçuras gaseificadas. Descobri que ressaca dá em qualquer um, basta dormir pouco. Oito cocas e pouco sono é ressaca na certa.

Passado um tempo, surgiu uma muleta: a cerveja sem álcool. As vantagens dessa bebida sobre o refrigerante: seu copo fica parecido com o dos amigos e a bebida é menos doce, dá para beber quinze em noites de loucura desmesurada. A desvantagem: quando bebia cocas e afins, meus amigos achavam um absurdo eu pagar a conta. Com a cerveja sem álcool, não tem disso, custa tão (ou mais) caro quanto um chope, e a turma não perdoa, cobra.

Vocês dirão: “Tudo bem, e o pileque, cadê o pileque?” Esse é um assunto mais delicado.

Nem guaraná nem cerveja sem álcool são capazes de embriagar um sujeito comum. Comum? Olha só, não sou comum, os senhores muito menos. Quem compôe samba como o Luz, quem atua como o Otávio Augusto (que se parece muito com meu irmão) ou o Antônio Pedro (Bar Esperança, saravá, seu Antônio) e quem escreve como o Ubaldo não são pessoas comuns nem aqui nem na China. Muito menos na China.

Se não falo com gente comum, posso confessar que dá para ficar de pileque. De duas maneiras. A primeira exige fé, e funciona: basta segurar o xixi. Sim, tome um monte de cerveja zero por cento álcool e só vá ao banheiro quando a bexiga estiver explodindo. Minha tese é que, agindo assim, a amônia circula pelo corpo e chega ao cérebro. Insisto: dá barato, se feito com fé.

A segunda maneira é científica. Lá pelas tantas, seus amigos, que continuam bebendo, ficarão doidos e chutarão a razão lá pro raio que os parta. O que acontece nesse momento? Eles falam e os senhores não os entendem. Não entender o que os outros falam não é coisa de bêbado? No meu caso, quando chega essa hora, decreto-me pra lá de Marrakesh, caio fora, pego um táxi (lei seca é lei seca, não vamos vacilar) e corro para o conforto do meu lar.



Enfim, senhores, a coisa não é tão feia quanto parece. Como no filme “Minha vida de cachorro” (Mitt liv som hund, Lasse Hallström, 1985), pior foi a vida da cachorra Laika, sozinha deambulando no espaço sem fim. A gente está longe disso, e com os pés no chão.

27.10.08

Um conto de "Estão todos aqui"

O conto abaixo abre meu segundo livro ("Estão todos aqui, Bom Texto Editora). Ele está também disponível aqui.
Boa leitura.

O que vai dentro da caixa

Gabriel pensava no rosto de Melissa coberto de serenidade, dele apagada a dor num sopro. O fato de que poderia não ser aceito no velório, de provavelmente haver tumulto, enfrentamentos, nada disso contava agora, ou ainda. Melissa, na sua derradeira imobilidade, seria a beleza sem conteúdo, sem sentimento; seria apenas.

Em dias de tamanha violência, ninguém vela seus mortos depois de uma certa hora. Gabriel torcia por encontrar o velório vazio. Teria tempo para contemplar, sem pressa e pela última vez, o rosto de Melissa. Olhar sem ser olhado. Ser olhada sem olhar. No contato entre a vida dele e a morte dela, haveria chance de que todas as feridas antes abertas se transformassem em coisas banais, esquecíveis. O vivo, ao olhar o morto, se entregaria como nunca, nem antes nem depois. O morto, já entregue este, ao ser olhado, aceitaria a entrega do outro.

Na aparência tranqüila de Melissa, repousaria sua última mensagem, um não se importe, cara, fomos humanos, apenas humanos. Seria demais esperar que a dor tivesse vergado aquela mulher a ponto de transformar seu ódio em resignada piedade; assim, Gabriel preparava-se para carregar vida afora esse fardo feito condenação.

O avião aterrissou no Santos Dumont pontualmente às oito. No saguão do aeroporto, lembrou-se de sacar algum para pagar o táxi e cobrir as outras despesas. Achou melhor comer ali mesmo, antes de enfrentar a maratona. Deveria ligar para o Paulo para, de antemão, pedir sua ajuda? Tomou um café puro com dois pães de queijo. Entrou na livraria, folheou algumas revistas.

Precisava de um instante, de pegar fôlego antes de ir para a cidade de fato, a que se apresentava concreta fora dos limites do aeroporto. Sentou-se num banco qualquer, abriu o jornal e foi direto aos anúncios necrológicos. A família entristecida agradecia e anunciava. Os amigos — o nome dele não constava na lista, óbvio, mas doído —, os amigos anunciavam.

O celular tocou.

— Sim?

— Você?

Tremeu. O jornal, dobrado sobre sua perna, caiu no chão. Não estava em seus planos receber um telefonema, qualquer telefonema, aquele em particular.

— Eu.

— Você já sabe, não é?

— Sim. Sei.

— Você está no Rio? Vai vê-la?

— Que idéia!

— Vamos juntos?

Gabriel desligou o telefone como se isso fosse suficiente para livrá-lo do imprevisto. Levantou-se e foi ao banheiro. Não teve o que mijar. Lavou as mãos. Voltou ao balcão da lanchonete e pediu uma dose de uísque. Enfiou o dedo nas pedras de gelo e ficou, por um longo instante, mexendo-as. Não, ali não era o lugar para chorar. Não chorou. Bebeu com vagar o primeiro gole.

Novamente o celular.

— Olha, o enterro é amanhã, às dez. Venha para o Rio. Você está no Rio?

— Por que estaria, hem?

— Não lhe faltariam motivos.

— Por favor.

— Tome suas providências e venha. Precisamos ir juntos.

Não esperaria um novo telefonema parado ali, sem coragem para fazer o que havia proposto a si mesmo.

No carro, o Aterro ia sendo vencido a uma boa velocidade, e num piscar de olhos Gabriel estaria no São João Batista. Um novo telefonema — se houvesse, se ele, como lhe ocorrera agora, simplesmente não desligasse o aparelho — já o encontraria diante de Melissa, vivendo as emoções que sua mente não conseguia antever.

Veio-lhe à memória, quando o táxi ia pegar a Barata Ribeiro, a caixa, o dia exato em que ele e Melissa enfiaram as coisas na caixa e fizeram a promessa de mantê-la, em qualquer circunstância, como uma espécie de documento de amor. Gabriel pediu ao taxista para ir pela praia, havia se lembrado de ter de passar na casa de um amigo. Na altura da Bolívar, desceu do carro e foi caminhando no sentido de Ipanema. Caminhava como se não soubesse para onde, mas nunca estivera tão seguro de seu rumo.

Gesticulou ao porteiro e foi logo reconhecido.

— O senhor sabe, não é?

— Sim, Zé. Pediram para eu passar aqui e pegar uns documentos. As chaves estão com você, certo?

A casa não estava muito diferente. Os quadros eram os mesmos. De novo, uma cortiça com fotos; nenhuma dele, algumas tiradas por ele. Sobre o fogão, uma panela vazia e limpa. Lençóis pendurados no varal. Na geladeira, medicamentos e algumas poucas coisas, perecíveis, em estado adiantado de apodrecimento. Um suporte desses de pendurar soro estava ao lado da cama e, no lixo, seringas usadas, algodões sujos. Pelo jeito, saíram às pressas — e não voltaram. A cama não era a deles. Gabriel abriu o guarda-roupa para procurar a caixa. Encontrou-a debaixo de umas poucas camisetas, velhas, lisas, encardidas. Melissa só dormia de camiseta e calcinha, no frio ou no calor, no cio ou nas distâncias; com ele e provavelmente com os outros; no pleno gozo da saúde, mas não na doença, quando decerto a mãe se fizera dona da vida da filha e deitara sobre ela um punhado de regras, a começar pelo uso de camisolas de algodão para receber a visita dos médicos e a dos amigos.

Abriu a caixa. Vazia.

“Não, Gabriel”, disse a si mesmo, “você não acreditou que ela pudesse manter uma bobagem dessa por toda a vida!”

“Você faria o mesmo, Gabriel.”

“Gabriel, Melissa não era uma adolescente!”

Desceu à rua. Seguiu até a Nossa Senhora de Copacabana e entrou no pé-sujo da esquina. Talvez deixasse transparecer seu desapontamento, o certo é que o homem do bar perguntou-lhe se havia algum problema, se precisava de alguma coisa. Pediu uma bebida e foi tudo. A cerveja nem estava lá essas coisas, mas caiu-lhe bem.
A todo instante, Gabriel enfiava a mão no bolso da calça para certificar-se de que as chaves da casa de Melissa estavam ali, de que ali também estava a chave da caixa, da caixa vazia. Se contasse ao Paulo como se sentia ultrajado naquela hora, se contasse à voz no telefone, ririam dele — logo você?

Nem chegara a tomar toda a cerveja e já comandava um trago mais forte. O homem deu-lhe uma dose de pinga, bebida vorazmente. Um outro freguês, do outro lado do balcão, puxou um brinde. Gabriel chorou copiosamente.

A ordem do boteco não foi perturbada nem ninguém correu em socorro de Gabriel. Tampouco lhe fingiram indiferença, as peças permaneceram onde estavam: o atendente deitando um trago aqui, abrindo uma cerveja lá; o freguês dado a comemorações recolhido a um silêncio acompanhado de gestos voltados a Gabriel: vivas e mais vivas!
De volta ao apartamento, abriu novamente o armário e a caixa. Abriu também as gavetas e sacou tudo de lá de dentro: roupas, papéis, fotos, sapatos, bugigangas. Em algum lugar estaria.

O celular:

— O que você quer?

— Venha para o Rio. Vamos juntos ao cemitério. Você está no Rio?

— Tudo o que nos aconteceu já não foi suficiente? De certo modo, não matamos Melissa? Precisamos de um segundo erro?

— Ao contrário, seu merda.

Ficaram mudos. Em seguida, tudo o mais caiu em silêncio, ou, de outro modo, mesmo que tudo gritasse, Gabriel não ouviria; mesmo que tudo se mexesse, Gabriel não veria; mesmo que tudo se esclarecesse, Gabriel não notaria. Desligou mais uma vez o celular, tirou da bolsa o carregador de bateria e colocou o aparelho para carregar.
Não reconhecia as roupas largadas no chão. Talvez isso desse a dimensão do tempo transcorrido. Largo tempo que não amainou aquele sofrimento intenso e aprisionador. Gabriel fechou os olhos como se procurasse dentro de si o elo perdido. Encontrou borrões. Ora o rosto de Melissa, ora os pés, um quebra-cabeça gigante cujas peças andariam espalhadas aí pelos cantos — mastigadas dentro dele.

O interfone tocou. Gabriel atendeu-o como se fosse natural fazê-lo.

— Seu Gabriel?

— Diga, Zé.

— Sabe o que é? Não era só um documento que o senhor ia pegar?

— Não se preocupe, eu já estou indo embora.

— Seu Gabriel, assim o senhor arruma confusão para o meu lado.

— Não demoro muito mais, não.

Gabriel concluiu que estava agindo como uma criança, o porteiro tinha razão. Não conseguira ir ao cemitério. Não dera um basta à voz no telefone. Não ficara quieto no seu cárcere, triste, mas conformado, em nunca mais ver Melissa.

Antes de juntar suas coisas e sair, tirou uma das fotos da cortiça e guardou-a em sua bolsa.

Paulo custou a atender o interfone. Levou mais tempo para perceber, primeiro, e acreditar, depois, que era Gabriel quem chamava.

Os dois fitaram-se longamente antes de Paulo convidá-lo a sentar-se. O silêncio continuou entremeando alguns oferecimentos feitos por Paulo e aceitos por Gabriel: café, água, biscoitos, cerveja.

— Você já foi lá?

— Sim. Não pense em ir, cara. Nem pense.

— O que você acha que estou fazendo aqui?

— Esqueça.

— E a minha dor?

— Quem vai acreditar na sua dor?

— Ninguém precisa acreditar, basta que me deixem ver Melissa.

— Conta outra, Gabriel.

— Até você, Paulo?

— Eu? O que é que tem eu?

— Quero ver Melissa.

— Ela esticou as canelas, não existe mais.

— Quero vê-la.

Paulo convidou-o para ficar e dormir. Era melhor deixar para resolver as coisas logo cedo, descansados pensariam melhor. Gabriel agradeceu, mentiu estar hospedado em um hotel. Amanhã se falariam ou se encontrariam no enterro.

— Não vá, Gabriel.

Saiu do prédio de Paulo, tomou a Tonelero em direção ao Leme. Cruzava as ruas, e Copacabana fazia-se viva na memória. A delegacia da Paula Freitas certa vez. A Polonesa tantas vezes, com e sem Melissa. O colégio das freiras e o entra-e-sai de garotas e mães de garotas. As putas, em todos os lugares.

Entrou no Cervantes para comer um filé com abacaxi. Tomou dois chopes. Já estava com um pé na rua quando voltou para um terceiro e um quarto chopes. A manhã não tardaria.

Gabriel pegou o celular e ligou.

— Poxa, cara, onde você está afinal?

— No Cervantes.

— Não saia daí.

— Não venha, por favor.

— Vamos juntos. Eu, você, Melissa também, por que não?, merecemos essa chance.

— Melissa está morta, não fale dela.

— Nós precisamos ir lá. Você precisa. Eu preciso.

— Você? Por que você? Se não querem que eu vá, o que dizer de você?

— Temos de ir juntos, Gabriel.

— Se você tem, que vá sozinha. Já tenho problemas demais.

— Eu preciso lhe dizer uma coisa.

— Não me diga.

— Melissa...

— Não quero saber.

Gabriel ocupou um quarto simples de hotel. Pediu para ser chamado às nove.

Um pouco antes das dez, entrava no São João Batista. Alguns familiares de Melissa desciam as escadas para deixar o cemitério. Não se falaram. Foi Paulo quem lhe explicou as razões de o enterro ter sido antecipado. Foi também Paulo quem pediu para Gabriel ir até a sala onde fora velado o corpo de Melissa.

Lá dentro encontrou Maria. Nas mãos, uma caixa de madeira em tudo igual à outra.

— Melissa pediu para virmos os três: você, eu e a merda desta caixa. Ontem, por mais que eu tentasse lhe dizer, você não queria ouvir. Não cumpri uma promessa. Você perdeu sua última chance.

Gabriel não agradeceu nem se desculpou. Sequer olhou para Maria com alguma intenção ou curiosidade. Segurou a caixa e foi para perto da janela. Maria sumiu.

Poderia abrir a caixa e ver. Mas aquele punhado de trecos largado dentro dela, a bem da verdade, não teria significado algum. O pedreiro ainda estaria deitando os últimos tijolos no túmulo de Melissa, a derradeira caixa que o tempo cuidaria de esvaziar de sentido. Gabriel imaginou o desgaste do homem sob o calor daquele sol; meneou a cabeça em desaprovação a essa técnica antiga de guardar um amontoado de ossos; um amontoado de ossos, só isso.

Melissa, Maria e ele; para todos, um triângulo amoroso desses dados a ter um final cruel; para Gabriel, apenas a travessia entre o chão e o abismo. No primeiro, pisara triste; no segundo, caíra igualmente triste. Triste continuava sua vida na terceira margem do rio, no exílio voluntário encontrado em São Paulo. Viera ao Rio para não ver Melissa, para resistir a Maria, para não perder de vista o canalha que ele era e com o qual se aprazia.

Se é que era essa a verdade.

18.10.08

Antologia Viagra

Meu primo, naquela altura, velho e maltratado pelos excessos cometidos vida afora, andava macambúzio, mais do que preocupando os familiares. Seu filho quis saber o que se passava, o que poderiam fazer por ele, o que afinal o pai queria. “Quero nhanhá”, respondeu. O gesto que acompanhou a expressão não deixou dúvida, o pai, mais pra lá do que prá cá, queria o fogo íntimo de uma fêmea. O filho ficou aturdido, mas consultou a irmã, médica, e essa aconselhou-o a dar o comprimidinho azul ao velho, obviamente arranjando-lhe a companhia.

Foi tomar o remédio para meu primo quase partir dessa para a melhor. Ficou todo torto, a boca espumava, teve como que um ataque epilético. O filho tornou-se ainda mais zeloso tão logo o pai se recuperou. Recuperação em termos, pois a tristeza deitou-se a seu lado e não saiu mais dali. O filho, sempre filho, portanto devedor de respeito à autoridade maior do pai, ainda que este não passasse de um corpo a um fio de sumir, fez de novo as mesmas perguntas anteriores. O velho não titubeou: “quero nhanhá”. Não lhe foi dada a pílula pela segunda vez, e, pelos motivos que o levaram ao estado em que vinha metido havia muito, meu primo não tardou a morrer. Morreu sem a derradeira.

Em viagem de negócio, um amigo encontrou um conhecido, devasso sem igual. Trocaram conversa e ficaram de ver-se no outro dia. Nesse intervalo, meu amigo se meteu numa aventura sexual inesperada. Não se saiu bem. No outro dia, ao contar sua desventura ao “devasso”, este riu e estendeu-lhe uma azulzinha. O tempo de vexame havia sido deixado para trás.

Meu amigo experimentou. Um sucesso. Em suas próprias palavras: “um homem de mais de quarenta anos com disposição de garoto de dezoito”. Enfim, o grande sonho masculino tornara-se realidade. Porém, como meu amigo ama sua esposa, pensou então em dar a ela esse novo homem de presente. Agiu às escondidas. Tomou sua pílula. Ao deitar-se, a esposa estava bonita que era uma coisa, só que não quis nada. Com ou sem cabeça de homem de quarenta e tantos anos, ele teve de agir como os garotos de dezoito, ou de treze até. Vexame. Não é que o danado não se emendou? Passado um tempo, nova pilula, e outro não.



O ator Jack Nicholson, certa vez, disse a um jornal que, se fosse casado, tomaria a pílula três vezes por semana, pois não deixaria nunca de cumprir seu papel sexual em casa. Já o pessoal do Casseta, rindo-se, não do Viagra, mas do Levita, que, segundo consta, garante o usuário por setenta e duas horas, sugeriu que, nas setenta em que o sujeito não estivesse mais “nhanhando”, tratasse de ajudar a tapar as frinchas existentes nas paredes das usinas hidrelétricas, por onde a água escapa.

Argumento para ficcionista: O sujeito anda equilibrando-se em fio de náilon e sem sombrinha. Para soar verossímel, imaginemos um sujeito em crise de meia-idade. Algo está pedindo a ele para ir além e pisar do outro lado da cerca, soltando a mão da razão. Sua primeira atitude melhor serveria a momentos de desfecho: compra uma caixa da pílula azul. Estará pronto para quando surgir a oportunidade. Com o troço na carteira, sai de casa hoje. Sai amanhã. Sai depois de amanhã. E sai, sai, enlouquecidamente ele sai. Nunca calha de acontecer o tal encontro fortuito. O remédio perde a validade, e com isso o homem perde sabe-se lá o quê de si.

16.10.08

Sempre a crise





Vamos pensando sobre a crise. Dessa vez, encontrei em José Paulo Paes, poeta, uma preocupação de 1973. Das duas uma: ou o poeta vislumbrou o dia de hoje; ou as coisas se repetem (como farsa?). Fico quieto, fala Paes.



Seu Metaléxico


(José Paulo Paes, Meia Palavra, 1973)



economiopia
desenvolvimentir
utopiada
consumidoidos
patriotários
suicidadãos


Fiquem com a carinha do poeta lá em cima. E até breve.



10.10.08

Igualdade

A crise é feia.

Para nós, que sabemos da de 29 por relatos de avôs e livros, é um treco quase incompreensível (como é que pode?). Ainda que, ao sabor do momento, existam muitos textos por aí que explicam como e por que o sistema funcionou (vem funcionando) assim - veja exemplos em http://www.opinativas.wordpress.com.

Uma coisa é certa, porém: para quem está, e sempre esteve, meio na pindaíba, ou seja, o sem poupança, aquele que paga suas contas mais ou menos em dia e busca socorro em parentes em melhor situação, a crise aproxima as pessoas. É verdade que os muito ricos se protegem, perdem um tantinho que nem chega a fazer cócegas, mas muitos perdem e perdem feio. E quem perde, e perde feio, acaba chegando perto de quem sempre teve muito pouco.

Para quem sonhou com a igualdade como resultado final de um processo de melhoramento de todos, essa forma contrária de alcançá-la é quase risível.

Fico pensando: será que o mundo, na realidade, vai seguir o modelo cubano, aquele em que todos têm o básico do básico do básico, nada mais do que o básico? Quase risível.

19.9.08

O mundinho das palavras

A palavra Proxeneta, ao admirar-se no espelho, vê cair-lhe muito bem o ch, pois julga que daria vida à sua testa absconsa.

Houve um momento em que representantes de todas as classes gramaticais iniciados por A e por M, letras com que se crê começar a maioria das palavras, se reuniram para comunicar ao Demorar que, ultimamente, ao dizê-lo não se falava apenas tardar, atrasar, custar. Demorar passou a ser uma despretensiosa, e de múltiplos significados, interjeição. Ratos de dicionário disseram que havia registros de Demorar na acepção de morar. E Morar pousara, noutros tempos, com o mesmo ar de interjeição. Os bichos-grilos insistiam: morô? As tribos, por seu lado, repetem: demorô! Demorar riu da novidade, não mais do que notícia requentada.

Gramsci, a soma de letras e não o homem, nunca foi presa ou escreveu livros, quanto mais livros estando presa. Todavia, se o destino aprisioná-la num caderno quadriculado, desses matemáticos, escreverá, como Neruda, os versos mais lindos de alguma noite assinando-se como “Apedeuta Magrisc”.

Saudade dispensa dicionários. Apesar de tamanha distinção, em suas reflexões, ela vê em si saúde, sal escrito errado, duas e, ainda, seda. Essa multiplicidade não lhe confere nenhuma qualidade superior, pois entende-se pequena por abrigar tantas palavras, quando já não bastasse ser um sentimento monoglota.

O adjetivo Lento, nos seus dias de ansiedade, é capaz de rasgar a nado e afoito um parágrafo literário e comprido, deixando-o despido de pontos e vírgulas, não exatamente nessa ordem.

Latido é mudo, e morde.

Na virada do século, promoveu-se concurso de beleza entre as palavras. Ninguém se lembra de quem o venceu, mas a derrotada virou assunto de muitas rodas. Abavô perdeu, não por duas polegadas a mais nos quadris, mas porque nunca e em lugar nenhum foi conhecido algum pai de tataravô, o que fez com que os jurados concluíssem que beleza dessa natureza não era exatamente beleza. A polêmica durou muito tempo e resultou, ao lado de rixas perpétuas, numa amizade sólida e solidária entre a concorrente derrotada e a Arte.

Veado é uma palavra heterossexual com tendências a monogamia. Luminescência, por sua vez, foi a primeira a jogar fora os porta-seios e a declarar-se publicamente parceira de outro substantivo feminino. Entre os masculinos, Fosfato e Anacoluto encontraram-se na época da rebeldia, da afirmação. O segundo morreu de doença sexualmente transmissível. Fosfato, esse criou a primeira ONG voltada às questões vocabulares homossexuais.

De tanto ouvir a piada, Arroz acredita ser a maior palavra da língua portuguesa.

Plural bebe muito.

Singular ensaia peça de Lípare, uma de suas tragédias, há não se sabe quantos anos. Não é um monólogo, mas ela faz questão de interpretar todos os papéis. Ultraje desconfia que esse projeto seja como a colcha de Penélope.

Nem todas as palavras são felizes.

Por sorte, os Verbos não rezam a Bíblia, assim desconhecem que se dá a eles o primarismo da existência. São humildes. A Associação dos Adjetivos Positivos, cujo presidente, por imposição do regulamento, é Pelancudo, fez circular entre as páginas centrais dos principais dicionários (alguns se recusaram) a coscuvilhice segundo a qual a pletórica humildade dos Verbos não condiz com suas atitudes, que se poderia dividir, numa visão otimista, em cinqüenta por cento visando ao bem, cinquenta ao mal.

Alienada de contendas políticas, Amar separou-se. Não é a primeira vez. Comenta-se, no cochicho das conversas de bares, de salões de beleza, de bate-papos no transporte público, que Amar é volúvel, ou tornou-se volúvel nestes tempos em que os dicionários não são mais de papel.

10.8.08

100 anos da morte de Machado de Assis

Pois bem, comemora-se esse ano o centenário da morte do grande Machado de Assis. Minha homenagem foi feita há 13 anos, quando, em 1995, lancei "Contos de homem". No livro, dois contos remetiam diretamente ao pai da Academia Brasileira de Letras. Um deles, A Primeira Leitura, era a história de um jovem que via a namorada perder-se numa aventura amorosa com o melhor amigo dele; uma Capitu, portanto. O que se reproduz a seguir, é a reescrita de "Missa do Galo". Não fui o único a fazê-lo, pois, já naquele tempo, vários escritores (Osman Lins, Nélida Piñon e outros)haviam lançado um livro só de reescritas do mesmo conto.
Aí vai meu continho.


MISSA DO GALO
(Recontando "Missa do Galo", de Machado de Assis, na mesma esteira de Osman Lins e outros.)

No espelho, sou destra; ela é canhota. Sou a previsível, tricotando as tardes ao lado de minha mãe, limpando os vitrais com a flanela de minha fragilidade. Ela é avessa às lidas domésticas. Tem a cabeça entre as pernas e um coração vadio. Sou a de todos os dias, ela a das quartas-feiras, a das ausências de Menezes, o marido.
Mantenho-a sobre controle. Nada de sair por aí exibindo-se. Invento uma caixa, guardada no infinito do espelho, forro-a como uma cama, deito ali a boneca de louça. A boneca da louca, talvez. No quarto dia da semana, rompendo as barreiras, me toma pela mãos, me tira do quarto - pé ante pé, o sono de mamãe, no cômodo ao lado, é leve -, me leva à cozinha. A minha (ou já será a dela?) mão procura, entre os frutos, legumes e coisas da feira, a raiz: cenoura.


Casei com o Menezes e fomos morar na enseada de Botafogo, junto com a minha mãe. Homem trabalhador resumia seus dias entre o cartório e a casa. Depois do jantar, sentávamos, os três, na sala de estar, traçando planos de futuro. Filhos, casa maior, enfeitada de guirlandas. Amigas vespertinas, para o chá. Amigos noturnos, para os vinhos. Um paraíso pincelado à perfeição de um Da Vinci.
Algo frio, no entanto. Nas núpcias, o desencontro. A rudeza de Menezes, possuindo-me a seco, num único gole. Minhas respostas cada vez menos de consensualidade, o amargo vertendo na expressão do rosto. Ao final do segundo ano, as primeiras ausências do homem. Indo ao teatro, voltava no início da madrugada.
Em pouco tempo, os atos se prolongavam mais e mais. Nós nos víamos, novamente, nos jantares das quintas-feiras. Se deixaram de existir os encontros corriqueiros, de desenhar o amanhã, não passei a fazer reprovações, desafetos ou injúrias. Eu era como fora minha mãe, como era a vizinha da frente, a do lado de cá ou a de lá; igual a todas as mulheres do Rio.
No inverno, a sensação da perda. Numa cidade úmida como a nossa, o leito compartilhado - mesmo para corpos estranhos, o sono reserva descuidos: um braço envolve um tronco, o colo masculino amolda-se às nádegas femininas -, trinca o frio. Nessa estação preparei e gerei minha irmã siamesa. Trouxe-a para se deitar comigo, para me ensinar que contra o frio, o fogo interno. Expulsou-me da cama, corri (lenta, para não acordar mamãe), abraçando a cadeira da penteadeira, roçando o sexo na poltrona e decifrando aquele meu cheiro; os dedos dançaram livres. Em breve, eu estaria passeando pela casa nua, numa liberdade de vaca, e descobrindo a cozinha, a raiz, o homem.
Mas antes da larva e casulo, a primeira quinta-feira, o café da manhã com mamãe. Acompanhou-me um vulto branco; longe de ser fantasma ou culpa, era o que não digo. Não por pecaminoso ou ridículo, mas para não perdê-lo.
Depois do café, cumpri meus afazeres domésticos. A vida era exatamente a mesma. Exatamente outra.


No verão, o hóspede: Nogueira.
Rapaz de seus dezessete anos, seu corpo refletia o caminho incerto entre a criança e o homem. Alguns desenhos já bem definidos, no tórax. Mas nenhum - melhor dizendo, quase nenhum - pêlo.
Viera para o Rio tentar o vestibular de Direito. Estava temporariamente em nossa casa, enquanto arranjava uma pensão ou o que valesse para residir. Menezes o acolhera a contragosto, vendo-se impossibilitado de dizer não ao velho Seabra, pai do garoto, tio de meu marido.
A rotina da casa, inclusive a sua transgressão, foi quebrada com a chegada do novo elemento. Na primeira quarta-feira, percebia-se a ansiedade dele por ir ao teatro com meu marido. Logo deduziu o teor das peças. E ao nosso código juntou o seu próprio, entrando, nesse dia, no banho às oito horas, mesmo instante em que Menezes cruzava a sala a caminho da rua.


Não contei dele à minha irmã. Fingi certo cansaço, limitando as brincadeiras (seria esse o nome?) ao nosso quarto.
Afeiçoei-me a ele. Não como ela o faria. Um amor destro, de mãe. Estudava seus gostos. Recompensava-o com doces de frutas, oferecia-lhe uma alternativa ao rim de boi, fazia-lhe sonhos pela manhã.
Era muito jovem para o futuro que já lhe pesava nas costas. Era muito interiorano para a capital que tinha que desbravar. "Posso-lhe dar as mãos, traçar os caminhos?" - tivesse eu coragem de abordá-lo! Mas não tinha. Aliás, não conversávamos quase nunca diretamente.
À minha mãe falava:
— O doce está uma delícia.
Ela respondia, apontando-me:
— Foi Conceição quem fez.
Só aí se dirigia a mim:
— Dona Conceição, que delícia!
O dona precedendo o nome dava a medida exata de toda a distância entre mim e ele. Nada parecido com mãe e filho.


— Ou homem e mulher.
Eram ela e suas idéias tortas me desdizendo no mesmo instante em que eu falava dele pela primeira vez. Tentava-me convencer de que eu traduzia erradamente meus sentimentos. Eu não queria tomar suas mãos para protegê-lo, mas para agarrá-las. Traçar seus caminhos para não perdê-lo de vista.


Hoje: quarta-feira. Natal. A solidão é maíor do que nunca. Ela estava ansiosa, andando pelo quarto.
— E onde ele está agora? Dormindo?
— Está na sala. Espera um amigo que vem buscá-lo para irem à missa do galo.
— Quantas horas?
— Onze.
— Então vamos, dá tempo.
Vesti o roupão com que costumava sair do banho. Meio insuficiente para cobrir todo o meu corpo, meio vermelho, meio velho, era a vestimenta da meia vaca ao descer as escadas. Mais cuidadosos eram os passos, mais leve deveria ser o sono de mamãe.


Nogueira, no canto da sala, à mesa, mantinha os olhos fixos no livro, não percebendo minha chegada ou fingindo não perceber.
Ela arrastou-me para perto dele. Mandou que eu dissesse alguma coisa. Não digo. Diz. Não. Então falo eu.
Eu (ela) disse:
— A leitura não lhe dá sono?
Assustou-se e tratei de desculpar-me.
— Eu que estava distraído, dona Conceição. A leitura me tira os sentidos.
— O que você lê?
— Nada, quer dizer, nada de importante.
Escondeu o livro na pasta que estava na mesa. Enfrentamos nosso primeiro silêncio, e eu, o medo de que ele a pressentisse. Que ela lhe tocasse os ouvidos, com as frases obscenas que gritava para mim. Que o incomodasse, mexendo em seus cabelos, desabotoando sua camisa.
— Dona Conceição, a senhora não está passando bem?
Eu não tinha sentimentos, bons ou ruins. Era apenas uma briga entre duas porções femininas, antagônicas e única. Reparava na tapeçaria barata e vulgar e ...
— Você, Nogueira, o que acha dessa tapeçaria? Tenho a impressão de que existem milhares iguais a essa nas casas de tolerância. Estou enganada?
— Ora, dona Conceição.
Minha irmã ria, aprovando o rumo que aquela conversa tomava. Quis ir ao outro lado da sala, segurá-la, deter seus movimentos, estancar suas idéias. "Tudo mentira. O menino é meu filho." Fiquei surpresa, todavia, vendo minhas mãos desabarem sobre os ombros de Nogueira.
Encontro de muralhas, eu transmitia e recebia apenas o contato frio. A vontade não fluiu para as pontas dos dedos, não os movimentou, não os aqueceu. Pensei na cozinha. A cenoura lá.
— O seu amigo não está atrasado?
— Está, um pouco.
— Incomodo-o com minhas idéias tolas e minha presença?
— Não. Ao contrário. Quer dizer ...
— Nogueira, por favor, vamos falar mais baixo, mamãe tem o sono leve. Continue.
— O que a senhora falou, ainda há pouco, da tapeçaria e do livro que estou lendo ...
A siamesa estava próxima dele, passava-lhe o bico do peito no lóbulo da orelha. Uma das mãos arrancava-lhe a camisa, arranhava-lhe as costas.


Ao primeiro grito do amigo, Nogueira levantou-se rapidamente, pediu licença. Quando ele abria a porta, deixei o roupão cair, esperando que virasse o rosto em minha direção. Não o fez. Ouvi os passos e as vozes sumindo pelas ruas.


Uma tristeza profunda tomou conta de mim. Não aceitei o convite dela para voltar à brincadeira no quarto. Não queria. Permaneci no centro da sala, nua, estática. Para um, o teatro. Para o outro, a missa. Os coelhos poderiam ter invadido a cozinha.

9.8.08

Saúde e academia de ginástica: relação perigosa

Ignorando se a informação lhe interessa, leitor, digo: faço ginástica. Não estranharia se recebesse como resposta um sorriso sarcástico, último movimento de quem olhou para mim de alto a baixo e pensou: que shape, hein!

Tudo bem, não emagreço, mas pelo menos estou ficando informado. Enquanto maltrato a esteira, vejo a TV, o jornal da TV, e, com isso, torno-me atualizadíssimo. É um consolo para quem sua tanto.

Não é que, dia desses, estou lá nos meus, em média, sete quilômetros por hora quando surgem na tela da TV os oito principais mandantes do mundo? O famoso G-8 estava reunido no Japão. Imagino que, nessas ocasiões, eles se sentem em torno da mesa e se perguntem: e agora? Um fala: vamos dizer alguma coisa para sossegar os outros (nós, os indianos, os africanos, os bolivianos, os turcos e todos aqueles que não pertencemos aos oito). Emenda-se: continuaremos sendo os mesmos, a boa notícia é só para dourar a pílula, ou, como poderia dizer o Millor Fernandes, only to gild the pill. Pelo jeito, além de informado, vou adquirindo cultura. Isso é bom, cultura é o que há.

Apareceram na TV, claro, para dar a “boa” notícia ao mundo. Dessa vez comprometeram-se a reduzir em 50% a emissão de gases poluentes. 50% off, como nas liquidações anunciadas nas lojas americanas, inglesas e brasileiras. Época de eleição, e o Sr. Bush aceita reduzir as emissões estadunidenses. É mentira.

Não estou para política, juro, e minha intenção era dizer que o que mais me impressionou nisso tudo foi a forma com que mostraram ao mundo o seu apreço ambiental. Estavam os oito lado a lado, e cada um empunhava uma pá com a qual jogavam terra num buraco que acomodava a raiz de uma futura árvore. Em suma: os oito plantavam arbustos (as batatas plantávamos e plantamos nós, alguns suando na esteira). O que a política não faz! A cara do Sr. Bush não escondia a sua pouca intimidade com o trabalho braçal; na realidade, mais do que isso: em seu rosto, transparecia o pouco reconhecimento que ele nutre por trabalhos braçais. Votem! Votem! 50% menos poluição é o negócio da vez, oportunidade única.

Continuava suando. Eu, não eles, que apenas jogaram duas pás de terra e voltaram para o escritório para tratar (tramar?) de outros negócios. E foi em bicas que vi o secretário de Segurança do Rio de Janeiro desculpar-se pelo excesso da polícia carioca, cuja ação estrambótica, dessa vez na Tijuca, acabou com a vida de uma criança.

Antes, quem se desculpara pela atrapalhada (palavra suave, de gente culta como eu) fora o ministro da Defesa. Quando o vi, sempre pela TV, abraçando-se às mães das vítimas da Providência, achei sua atitude sensata, pelo menos dava a cara a tapa, ali, no olho do furacão, e não escondido no conforto de um escritório.

Outro pedido de desculpa. Epa, assim já é demais. Dizem que errar é humano, portanto pedir desculpa é, além de humano, civilizado. Mas, se persistir no erro é burrice, insistir na desculpa deve merecer algum adjetivo de baixo calão.

Apesar da esteira, emagreço pouco. E por causa da esteira, fico exposto ao mundo trazido pela TV. Sabe, estou pensando seriamente em deixar a ginástica de lado. Acho que a vida ficará melhor, pois tudo indica que a realidade faz mal à saúde.


24.7.08

A perna oculta da mentira




Iam aí uns bons trinta anos sem ver M.M., quando, por acaso, numa rodoviária, encontrei-o. Dois senhores. Ele parecido com o pai; melhorado, é verdade. Dois senhores, insisto.

Não nos faltou conversa. Nossa infância foi vivida na mesma Jaime Gomes, rua com nome do sogro do Juscelino, o homem dos cinqüenta em cinco. Pois bem, falamos sobre “nossa” época, embora pouco sobre ela. O lapso de trinta anos era tempo suficiente para aguçar a curiosidade de ambas as partes sobre a vida vivida distante um do outro.

Estabelecemos um diálogo pontuado de interrogações exclamativas.

“É mesmo?! Manaus?”

“Escrevendo?!”

Dois velhos conhecidos charlando ao deus-dará.

Não sei o momento exato em que rememorei que, durante nossa infância, adicionávamos ao nome dele um “mentiroso”. M.M.: M. Mentiroso. Talvez suas mentiras fossem inconseqüentes e tão absurdas que não deveriam chamar a si nenhuma suspeita de verdade, portanto, não nos deveriam incomodar. Mas não era assim que a garotada pensava, e, por essa razão, cada um de nós se sentia permanentemente ludibriado por ele.

Será que ele nos contara sua luta contra uma horda de cem morféticos (contra os leprosos eram lançados todos nossos preconceitos, e deles brotava toda nossa fonte de inquietação e medo) que tentaram arrancar-lhe o estilingue da mão?

Será que relatara sua vitória tranqüila contra algum perigo que faria com que qualquer um de nós, só de pensar, borrasse nas calças? Sei lá, ter enfrentado, na mão, uma onça na fazenda do tio.

Será que não nos dissera que o dinheiro do pai (um simples professor) era tanto que o velho não comprava todas as casas da rua porque não queria?

Enfim, um monte de fabulações, apenas isso, talvez um jeito de sobressair-se entre tantos, ele sem nenhum talento específico. Não era bom no bilboquê, não ameaçava ninguém na bilosca, na pelada chutava o chão em vez da bola. Como aparecer quando não se tem qualificação nenhuma? Fabulando — eis uma hipótese.

Taxava-se toda fala de M. como mentira. Se dissesse que iria almoçar, apostávamos que arranjara um pretexto para cair fora. Se anunciasse, ainda que fanhoso, uma gripe, ríamos de sua capacidade de inventar desculpa para não apostar na roda de bafo formada logo ali, sob a janela do seu quarto.

Trinta anos depois, numa rodoviária da vida, ele me conta de suas andanças. Viveu pelo Norte. Casou-se com moça da nossa cidade natal, decerto eu não a conhecia. Seu irmão enricou e deu jeito de trazê-lo de volta ao Sul maravilha para cuidar de uma de suas empresas. É responsável pela logística, essa coisa que não é o coração das empresas, mas que pode matar a mais saudável delas num golpe só, como um enfarto. Morava em São Paulo.

Como eu poderia acreditar em M. se nunca acreditei? Como, ainda mais passado tanto tempo, tempo em que esteve longe da minha vista, fazendo sabe-se lá o quê?

Quando falou Norte, poderia querer que eu perguntasse por sua ocupação por aquelas bandas. Seria a chance de relatar lutas contra jacarés, de vangloriar-se de sua resistência contra as doenças da floresta, de falar em tribos de mulheres majestosas, permanentemente nuas, virgens como nunca se viu, nem na bíblia.

Quando falou em empresa familiar de sucesso, gostaria que eu indagasse sobre suas estratégias de mercado. Diria que trabalham com material que seu pai, professor de química, portanto, químico, desenvolvera, sem que ninguém nunca soubesse, no puxadinho no fundo de sua casa baixa, com porta à altura da rua. Diria que vendem tudo para o exterior, para as empresas de ponta dos EUA, da Europa, um pouco para o Japão e ainda para o Iraque antes da guerra, porém o próprio Bush pediu para não venderem mais. Aceitaram, seguindo as diretrizes da Aliança para o Progresso, que, alguns poderiam dizer, fora coisa do passado, mas eles sabiam que não era bem assim; existia ainda e manter-se fiel a ela garantia os lucros exorbitantes apresentados nos balanços das empresas.

Apertamos as mãos. Ele entrou num ônibus, esperei um pouco mais pela chegada do meu.
Sozinho, percebi minha enorme infantilidade. Deixei de ter uma conversa quem sabe até instrutiva — um sujeito que morou no Norte e vive em São Paulo cuidando de uma grande empresa sempre tem o que dizer — para ficar nos meus devaneios, comandado por um tirano nostálgico interno que não me dá de presente ao presente.

Talvez eu tenha de responder ao que, traduzido por Gullar, Neruda (Livro das Perguntas, Cosac Naify) pergunta, não sei se a si mesmo, se ao leitor. Alguns acham que pergunta justamente à criança que todos fomos um dia.

“Onde está o menino que eu fui?
Está dentro de mim ou se foi?

Sabe que jamais o quis
e que tampouco me queria?

Por que andamos tanto tempo
crescendo para nos separarmos?

Por que não morremos os dois
quando minha infância morreu?

E se minha alma se foi
por que me segue o esqueleto?”

Vou buscar a resposta. Se encontrá-la, e mesmo que não a encontre, o certo é um dia apartar-me do mentiroso que também sou, procurar por M. e contar-lhe tudo. Se estiver imbuído de humildade, devo-lhe também desculpas.

14.6.08

Réu Confesso

Quando o mar não está para peixe, é hora de olhar para os lados. Para quem estarão as montanhas? Os lagos estarão para peixes? E os peixes, eles mesmos, independentemente de mares e lagos, estarão para nós?

Neste exato instante, olho para os lados, mil vezes olho para os lados. Vejo. Vejo com o espanto dos inocentes. Vejo, e ver me cega.

As marcas do crime hediondo vieram parar em minhas mãos, justo nelas que até então não passavam da ferramenta com que pude (e posso) carregar as pedras do cotidiano, as mesmas que fizeram Drummond insistir: “E agora, José?”.

O sangue coagulado entranhou-se na minha pele e virou um fio avermelhado, que se confunde com uma marca sem importância, um estresse qualquer devido a algum esbarrão. Mas, não se iludam, é o sangue da vítima. Como saiu dela e chegou aqui, ela morta lá longe, num lugar em que nunca estive?

Não bastasse esse risco rubro, salta de minhas mãos o cheiro envinagrado da matéria velha. Ontem, vida; hoje, deslocada no tempo e no espaço, é o biscoito proustiano a despertar com teimosia a lembrança do crime que não cometi, mas que é meu. Sou culpado!

Não há como apartar-me de minhas mãos, dizer elas em oposição a mim. Formamos uma unidade incorruptível, logo tomo-me de certo orgulho; sim, orgulho: cometi o crime perfeito. Não deixei nada de meu na cena do crime e, ainda por cima, trouxe de lá as digitais da vítima.

O que posso fazer com essas pegadas cravadas em mim? Tentar apagá-las, recorrendo à soda cáustica, ao esfregão, à amputação simples e pura? Cultivá-las como flor, dando-lhes amiúde água e esterco? O que estou dizendo? O ferrão não me marcou com rosa ou crisântemo, mas com os músculos abortados, com os sorrisos calados, com a esperança pujante destituída de seus pés.

Já não me orgulho de nada, nunca me orgulhei. Os sentimentos são mestres em nos confundir. Estive e estou confuso. O crime que cometi é o mais perfeito de todos, apesar de não tê-lo feito, apesar de não querê-lo. E o assassino só se satisfaz quando se vê revelado a todos. Eu não serei, jamais serei, pois não arrastei ninguém pelas ruas da cidade, não estrangulei nem atirei menina alguma de um sexto andar qualquer. No entanto fiquei com os momentos de remorso do criminoso. Se tenho culpa, sou eu a besta.

Não serei punido pela lei dos homens. Se estender minhas mãos ao policial, ao promotor, ao juiz, eles dirão: limpas, assaz limpas. Se insistir para que sejam cheiradas, encontrarão ali, na placidez da pele, o agradável aroma dos sabonetes anunciados entre os capítulos da novela das oito.

O mar não está para peixe. O peixe não está para o mar. A montanha não está para a neve. A neve não está para a montanha. Os homens? Não, não rirei dos homens como se não fosse um deles. Sou um tão bom ou tão ruim como outro qualquer. Não posso bisar o que por aí se diz: “Foi um desesperançado que não tem nada a perder”. Ou: “Foram uns desajustados que perderam o controle da situação”. Não posso, pois somos todos farinha do mesmo saco. Tanto quanto eles, eu matei. Estão aqui, nem tão escondidas assim, embora não de todo visíveis, as marcas do crime que cometi. Que cometemos. Sinto dizer-lhe, você também o cometeu.

13.5.08

Rebelo e o aquecimento global



Marques Rebelo dizia leviano o clima desta cidade. Mal sabia que leviano ficaria o clima do mundo (talvez o próprio mundo). Derretem-se as geleiras nas pontas da terra, esfriam-se os trópicos, chove no deserto e o solo, onde, antes, adubando tudo dava, torna-se estéril. No Rio de Janeiro, os mais desesperados apostam que, em breve, o Grajaú será bairro praiano. Resta saber se a água vai passar ilesa pela Grajaú-Jacarepaguá. Um furto levaria o sal. Um acidente romperia as moléculas. Que mar seria esse?

Já ouvi dizer que repousa nessa visão certo alarmismo, pois não existiriam dados de um longo período de tempo e, portanto, não se saberia se a terra já não esteve mais quente do que está. Tudo não passaria de um ciclo sobrepondo-se a outro, situação que se reverteria no futuro.



Se o aquecimento global catastrófico for mesmo um fato, como deveremos agir? De um lado está o Protocolo de Kyoto (nome lindo, não acham?) e, de outro, a resistência a ele por parte dos estadunidenses. A gente esquece esse povo e trata de fazer nosso exercício de casa? Porém, se os bambambãs lá do norte estão se lixando para o caos climático, por que logo nós iríamos esquentar a cabeça? Trocando em miúdos: ou contrapomos nossa responsabilidade à irresponsabilidade alheia ou somamos nossa irresponsabilidade à deles.

Em sinuca parecida, vê-se metido o amigo ao perceber outro se afundar na lama. Ele bem pode partir do princípio de que a vida alheia não diz respeito a ninguém além da própria pessoa e conviver com o amigo enquanto este for sociável. Outra opção é partir para o ataque, fazer das tripas coração para tirar o camarada daquela barafunda.



Conheço um sujeito que, para salvar o irmão metido com drogas, pensou na seguinte estratégia: começar a puxar um fuminho com ele e depois, aos poucos, levá-lo de volta ao “caminho do bem”. Atualmente, são os dois uns senhores (no duplo sentido da expressão) maconheiros, sem trabalho e alcoólatras.

Falava de clima, falei de amigos. Tudo porque, matutando cá com meus botões de plástico, concluí que a estratégia dos países e a das pessoas miúdas que somos não se diferem muito. O irmão que foi salvar o outro poderia ter adotado tática distinta: meter-lhe a mão na cara e apostar no confronto e não no diálogo ou nessa espécie de aliança feita entre eles. No caso dos países, os que assinaram o Protocolo de Kyoto (lindo nome!) poderiam invadir aquele outro para dar um jeito na situação. A terra seria derretida em segundos, não se requerem esforço e adivinhações para concluir isso. Se as estratégias nos dois níveis (pessoas e países) podem não diferir muito, os efeitos, Deus me livre! O que significam dois irmãos vagabundos e decadentes perto de uma guerra mundial? Nadinha. Pouco mais de nadinha.



Continuo com o meu paralelo mequetrefe. A mãe de outro amigo, a partir de certo momento, começou a rezar para que seu filho morresse o mais breve possível. Imagine o quanto ela sofria com as barbaridades aprontadas por ele. Então me pergunto: será que sumir com a terra do mapa cósmico de uma vez por todas é melhor do que fazê-lo aos poucos, como é o nosso caso, ao continuar jogando ilimitadamente gás carbônico no céu de infinitos significados? Será a destruição, aos poucos ou de forma abrupta, melhor saída do que, conversando aqui e ali em busca de consenso, tentar salvar este planeta que deve ser lindo visto da lua? Quem saberá? Eu não sei.

Você se perguntará, não sem razão, aonde quero chegar com esse chove-não-molha tantas vezes bisado por outros, estes mestres no assunto e, portanto, tratando-o, ao contrário de minha crônica, de forma profunda, matando a cobra-problema e mostrando o pau-solução. Digo-lhe, leitor, expondo não só a mim, mas possivelmente a classe dos cronistas, que escrevi essa crônica a partir da leitura do Rebelo, que me encantou com a designação de leviano dada ao clima carioca, a qual quis espalhar por aí, compartilhando-a com você. O resto, bem, o resto é recheio de uma empada cuja casca é sua melhor parte.

26.4.08

Máximas apressadas acerca da amizade


Ao Paulinho Colares, agora em outra dimensão.


Todo mundo tem um amigo.

Todo amigo é único.

Na companhia de um amigo, é possível ultrapassar os limites de onde o vento faz a curva.

Chegará o dia em que qualquer um de nós pedirá a mão a um amigo para atravessar a mais pacata das ruas pacatas.

Um amigo não lhe revelará todos os seus segredos, pois há os que caem bem num amigo e não noutro.

Certo amigo deve dizer-lhe todos os segredos, inclusive os que se ajustariam melhor a amigo distinto de você.

Existe um amigo que poderia roubar-lhe o amor e depois devolvê-lo.

Tão-somente um amigo saberia perdoar outro por roubar-lhe o amor. Haverá igualmente um único capaz de receber de braços abertos o amor roubado e o amigo que o roubou.

Botar a mão no fogo por um amigo não significa emprestar-lhe dinheiro.

Topar qualquer parada com um amigo inclui socorrê-lo nas dificuldades financeiras sem se importar se será ou não ressarcido.

É melhor dever a banco do que a amigo.

Amigo no inferno nem sempre deseja céu.

Seu inferno nem o pior amigo merece. (Às vezes, sim, e não só ele, todos os outros também.)

Morte de amigo não acaba nunca. Todos os dias, o dia inteiro, ele volta a morrer.

Osvaldo, professor de matemática, ensinava: amigo do meu amigo é meu amigo. Traduzindo: um número positivo (amigo) multiplicado por outro positivo gera um terceiro igualmente positivo. Logo, o inimigo do meu inimigo é meu amigo (menos vezes menos resulta em mais) e o amigo do meu inimigo é meu inimigo. Isso vale como didática e em papo de boteco, quando se faz jura de eterno amor, às vezes pacto de morte. Fora disso, um inimigo de inimigo pode ser igualmente inimigo; um amigo de inimigo, amigo; e, por fim, um amigo de amigo, inimigo.

O sofrimento de um amigo dói igualmente ou mais em pelo menos um de seus amigos.

Mentira de amigo é verdade absoluta, menos a daquele que nunca mente.

Você nunca mente a um amigo; floreia os fatos, quando muito.

Guardam-se no fundo do peito os amigos magros. Melhor ser guardado pelos demais.

Chifre na cabeça de amigo dói na de outro somente quando este passou pela mesma situação com o mesmíssimo amor.

Conta de boteco se divide de igual modo entre os amigos independentemente do consumo de cada um. Paga-se a parte daquele que está duro sem que se peça nada em troca ou pedindo-se não mais do que uma carona, ainda que a pé.

Amigo preso continua amigo. Talvez ele mereça a prisão, mas não merece perder sua amizade.

Quando dois amigos, um estrábico, precisam garantir com discrição a velha e boa cumplicidade, não recorrerão ao olhar que diz tudo, mas a chute manso e certeiro, sob a mesa, na altura da canela. Este também diz tudo, só que com pressa.

Se quem cala consente, silêncio de amigo soa como oposição ao consentimento, um ato de covardia, ainda que amorosa covardia.

Amigo deve ter coragem para dizer a outro: “Por hoje basta”.

5.4.08

De Costas para o BNDES


O prédio é imponente, arquitetura arrojada. O negócio lá dentro é papa fina, nada menos do que o ouro negro. Quem viveu nos anos 50 ou leu sobre eles sabe muito bem que a exploração de petróleo, em forma de monopólio do Estado, já deu muito pano pra manga neste país. Quando aqui era a capital federal, lutávamos por essas causas; hoje, hoje bradamos contra o IPTU. Aliás, não contra o IPTU, nosso alvo é o prefeito, ou, mais corretamente, sua péssima gerência no mandato que encerra neste ano.


Embates grandes ou miúdos, pouco importa, o carioca é bom de briga, o prefeito que se cuide. Que se cuide também a direção da estatal do petróleo, pois os aposentados andam fazendo uma zoeira bem ali de frente para o belo prédio e de costas para o BNDES, o que não sei se tem ou não tem significância. O que sei é que há muito acompanho os aposentados mandando bala. Não vi, mas até nus ficaram; no meio da rua, digo.

No Natal, teve Papai Noel. No carnaval, banda cantando marchinha que enaltecia a classe dos petroleiros e ameaçava o presidente e todo o resto da diretoria. Contra ou a favor da causa, se é que chega a ser uma causa, vale ver o show dos aposentados. Não são muitos, mas estão ali; se for preciso, se despem. É uma causa, acabo de me convencer, ninguém se despe a troco de nada.
No fim de janeiro, a banda explodia em sopros que faziam desenhos melódicos supimpas. Parecia que tudo ia por água abaixo, o sax tomava um rumo, o trombone de vara outro, mas no fim tudo se ajeitava. (Adoro isso.) Bem, a marcha corria solta, e uma senhorinha aposentada, que vejo sempre nas manifestações, começou a dançar; mais parecia porta-estandarte — sem o mestre-sala, sem ninguém. Se fosse adepto das adjetivações fáceis, diria que ela é meio lelé da cuca. Não sendo, digo que carrega em si tamanha liberdade. O presidente da empresa deveria dar pelo menos a ela o que se reivindica à porta de seu escritório.

A porta-estandarte dava suas voltas e reviravoltas sem que ninguém prestasse muita atenção nela. Menos duas pessoas: eu, sei lá por que eu, e um rapaz (mal saído do cueiro) cujo olhar sugeria outras intenções. Se fosse adepto das adjetivações fáceis, diria tratar-se de um taradinho. Não sendo, digo que se encantou, nunca vira nada parecido. A beleza pode estar onde nem parece estar.


Manifestações recorrentes tendem a surtir efeito. Minha torcida é que um dia, cansado de marchinhas no carnaval, fogueiras no São João, papais-noéis no Natal, o presidente do BNDES ligue para o do Banco Central e sugira que se acelere a queda dos juros. Por que motivo ele faria isso? Ora, sei lá, nem tudo o que se faz se explica. Se o todo-poderoso, guardião do nosso real, aceitar a sugestão, pode ser que sobre mais dindim no caixa da estatal do ouro negro e que seu presidente, também cansado de tantas manifestações, atenda o pedido dos aposentados. Não deve ser muito, com a idade ficamos modestos.

11.3.08

O cronista ranzinza


Já computei. Essa turma do pagode, que teima em padronizar o samba e o próprio jeito de ser, apresentando-se em grupos anódinos que dançam uns passinhos de envergonhar até o maior dos caras-de-pau, envoltos num sorriso forçado de dar dó, usa, em suas composições (Trato de respeitar a turma!), cinco palavras às quais se juntam outras pequenas variações: eu (você, ele, nós), te (lhe, nos), amo (amei, amamos, amarei). Além dessas, mais duas: ihihih, ohohoh. O máximo da criatividade dos pagodeiros é espalhar essas espichadas interjeições ao longo das canções. A gente ouve coisas do tipo: “Ihihih, eu te amo” ou “te amoohohohoh”. Um escândalo.

Três vezes por semana tomo um ônibus em Bonsucesso para descer em Botafogo. Está aí uma senhora linha. Da Avenida Paris, pega a Brasil, sobe o Elevado da Perimetral, desce o Aterro, indo direto e reto até Copacabana. Levo em meu trajeto, quando muito, vinte, vinte e cinco minutos. Com ar-condicionado e uma tarifa vinte por cento mais cara, acho um luxo e pago sem chiar. Mas... Por que raios resolvem “brindar” o usuário com música? O rádio soa alto e a estação escolhida é um acinte. Quando não é o famigerado pagode, é bate-papo com algum péssimo cantor ou é o hit do momento (Alcione cantando “Perdeu, perdeu”. Ô Marrom, essa doeu!). Alguém tem de dizer à empresa que, quando alguém toma o ônibus num dia de semana, perto das 21 horas, essa pessoa está cansada, voltando para casa depois de um dia inteiro de trabalho. Merece respeito. Vamos em silêncio, a viagem em si, rápida e confortável, já é uma delícia.

Tolerância zero com os habitantes de rua! Acho que é essa a meta do senhor prefeito. Começou por Copacabana, logo depois chegou a Ipanema, ao Leblon e à Gávea. Sabemos todos — sei lá, eu sei — que, entre essa população de rua, há aqueles que não querem ou não conseguem mais adaptar-se à família e, na rua, apenas ocupam um espaço sem causar grandes problemas a ninguém, mas também há os que cometem assaltos e outros excessos. (Embora assaltos e outros excessos sejam praticados por outros que não moram na rua). De todo modo, os sem-teto merecem atenção especial, desde que não sejam tratados apenas como peça que se tira daqui e se desova ali.

A sensação que tenho, morando em Botafogo, é que a medida tem sido feita sob a batuta do estoquista. O sujeito olha e diz: “Não existe mais nenhum em Copacabana”. Claro, grande parte deles está em Botafogo. Alguns estarão em Ipanema. A operação chega a Ipanema, ao Leblon e à Gávea, irão todos para o Jardim Botânico, para a Lagoa, para o Humaitá e outros mais para Botafogo. Abafados nesses bairros, ressurgirão no Flamengo, no Catete, na Glória.

A questão não é de poucos contra muitos. Não há uma política social; simplesmente o alcaide ligou seu superespanador, atirando-se contra o pó. Mas não é pó, prefeito, é gente. Ainda que ele se atirasse mesmo contra o pó, espalhar não tem nada a ver com limpeza, é só olhar embaixo do sofá: o pó foi parar ali.


Como todos sabem, todo cronista tem seus dias. No meu caso, de uns tempos pra cá, tudo se justifica. Nasci em Passos, onde andam “batizando” leite com hidróxido de sódio e peróxido de hidrogênio, mais conhecidos como soda cáustica e água oxigenada, respectivamente. Ando vexado e com os nervos à flor da pele. Nem vem contemporizar, leitor, nem vem.

27.2.08

Frases inconseqüentes

Escrevi há pouco que sou bobo, bobinho da silva. Para não deixar dúvida, apresento uma série de frases, os famosos trocadalhos, completamente inconseqüentes e, abusando da rima, dementes. Dedico-as ao Conradão, que gosta de besteiras assim até dizer chega.

Mulher de amigo meu é fome.
Não foge nem sai de cima.
Foi um cio que passou em minha vida.
Existirmo-nos a que Ceará que se destina.
Quem dá aos pobres empresta o dedo.
Mora na ciclovia.
Tire seu sobrinho do caminho que quero passar com meu avô.
É dando que se esquece.
O tiro saiu pela cunhada.
Está semeando o que colheu. (Frase que uma amiga minha dizia a outra.)
Era um garoto que como eu amava os vícios e as confusões.
Não vi e não gozei.
Solto a vó na estrada.
Vivi a ilusão de que ser homem mataria.
Vou ensiná-lo com quantos paus se faz uma garoa.
Vão-se os anéis, ficam os medos.

26.1.08

Santomé

Tudo indica que Lula tem apenas quatro dedos em uma das mãos.

Sarney ostenta um enorme bigode. Não é?

Jobim tem vestido roupas do exército. É o que se vê na tevê.

Quércia é alto. Afirmo com quase 100% de certeza.

Aécio é neto do Tancredo, atesta seu registro de nascimento.

Cabral saiu ao pai, pelo menos na bochecha, assim suas aparições levam a crer.

César Maia traja invariavelmente um casaquinho xexelento. De longe, assim é: casaquinho e xexelento.

Roberto Jefferson emagreceu graças à redução do estômago. Li.

FHC ensina na Brown University. Ele mesmo frisa isso em seus artigos.

É possível checar na internet as mortes do Covas, do Ulisses, do próprio Tancredo, a do Magalhães Pinto e a do ACM também.

Pedro Simon fala com paixão. José Dirceu, com frieza. Renan, dissimuladamente.

Ângela Guadagnin bailou quando seu partidário foi livrado de perder o mandato. Marco Aurélio Garcia mandou uma banana quando o desastre com o avião pareceu ser culpa do piloto, não dos controladores de vôo. Collor voltou à tribuna. Vi com estes olhos que a terra há de comer.

Heloísa Helena gosta de uma camisetinha básica. Babá não corta o cabelo. Chico Alencar corta, às vezes. A mensagem perseguida por eles é: diante de tantos problemas, nada de preocupação excessiva com a aparência.

Eduardo Paes muda de roupa e de partido sem pestanejar. Gabeira não usa mais tanga, nem se candidata a prefeito. O primeiro ocupa a mídia; o segundo, pouco, nunca mais como dantes.

Político é engraçado. Vive nos pedindo para lhe darmos um voto de confiança, para acreditarmos que aquilo de que é acusado, tal e tal falcatrua, é intriga da oposição. O tiro pode sair pela culatra: qualquer dia, o brasileiro deixa de diferenciar uns dos outros, e todos passam a ser farinha do mesmo saco. Pior ainda: deixa de acreditar até no que é visível, audível e legível.




Vai que o Covas está vivo. O Lula tem seis dedos. O Simon adora camisetas básicas. A Heloísa Helena troca de roupa e de partido só pensando em ser prefeita. O Quércia é baixinho. O Gabeira não corta os cabelos. O Aécio é neto do ACM. O Cabral corta os cabelos de vez em quando. O Collor tem grandes bochechas como as de seu pai. O Renan deixou de usar tangas. O Eduardo Paes morreu num desastre aéreo. O FHC diminuiu o estômago. O ACM morreu há anos e o Magalhães Pinto, num dia desses. O César Maia dança para comemorar quando seus partidários livram a cara.

Se deixarmos de acreditar até naquilo de que não se pode duvidar, o país vai pro beleléu. Por vinte anos estivemos lá, e não foi bom. Como talvez dissesse o pessoal do Casseta: “Seu político, roube, mas não minta; a mentira tem perna curta”.

7.1.08

Chicle de Bola



Desce a Voluntários da Pátria, masca chicletes e o mundo dos homens, cachorro eficiente, morde e não ladra. O Iraque está lá aos frangalhos, e a fome, como sempre, espalhada por toda a África. No Brasil, bem, deixemos este país com o qual não temos intimidade longe do circuito Gávea, Leblon e Botafogo.



A mulher e seu chiclete não são metáforas de nada. São apenas o que são: ela linda; ele, doce. Ela, descendo a Voluntários; ele, amassado entre dentes.



Se pinta um problema, a moça faz bola. A bola é uma casquinha de goma com ar dentro, coisa frágil, frágil, que não dura dois passos da mulher-agora-com-pulga-atrás-da-orelha.





O problema dela não tem a ver com a tragédia iraquiana ou com a africana; poderia ter, mas nesse instante não tem. Não é também minha indiferença por ela, porque, se há indiferença, é dela por mim, um desconhecido com quem esbarra em Botafogo, na rua pavimentada hoje e cheia de irregularidades amanhã. Não é o prefeito que a está incomodando. O que será?



Todo chiclete perde seu docinho. Em moleque, quando o que eu mascava se avizinhava do fim, enfiava-o no congelador — não sei se ganhava uma sobrevida, um “plus a mais” de doce, mas é o que diziam e eu acreditava. Sorte a do meu pai, levava mais tempo para lhe pedir outro tostão.



É o fim do chiclete que está pegando? Não, não há congelador no meio da Voluntários e, mesmo se houvesse, seria preciso que a goma congelasse totalmente para ter de novo o seu gosto, se é que ele volta. Será o Benedito que ela não tem um vintém, dez pratinhas em moedas de um centavo perdidas na bolsa? Se for dinheiro, bem poderia adiantar-lhe algum, nem fazia questão de recebê-lo de volta. Se muito, armava um estratagema para reencontrá-la:”Toma vinte centavos; amanhã a gente se vê aqui mesmo para você me pagar”.




A moça masca chiclete. A mim resta a dúvida: hortelã ou tutti frutti? Será de canela ou desses surpreendentes dos dias de hoje: melancia, maracujá? É uma dúvida, não mais do que isso; meu problema, problema mesmo, é outro, e só a moça que caminha mascando seu chicletinho resolve. Basta que ela deixe a Voluntários, entre comigo na livraria ao lado do cinema, aceite o café e um naco de bolo que lhe oferecerei, responda ao meu sorriso e, com jeitinho tímido ou arrogante, pouco importa, tire o chiclete da boca, jogue-o no lixo e, olhando talvez para mim, talvez para alguma coisa que posso chamar de infinito, diga: pronto!