10.8.08

100 anos da morte de Machado de Assis

Pois bem, comemora-se esse ano o centenário da morte do grande Machado de Assis. Minha homenagem foi feita há 13 anos, quando, em 1995, lancei "Contos de homem". No livro, dois contos remetiam diretamente ao pai da Academia Brasileira de Letras. Um deles, A Primeira Leitura, era a história de um jovem que via a namorada perder-se numa aventura amorosa com o melhor amigo dele; uma Capitu, portanto. O que se reproduz a seguir, é a reescrita de "Missa do Galo". Não fui o único a fazê-lo, pois, já naquele tempo, vários escritores (Osman Lins, Nélida Piñon e outros)haviam lançado um livro só de reescritas do mesmo conto.
Aí vai meu continho.


MISSA DO GALO
(Recontando "Missa do Galo", de Machado de Assis, na mesma esteira de Osman Lins e outros.)

No espelho, sou destra; ela é canhota. Sou a previsível, tricotando as tardes ao lado de minha mãe, limpando os vitrais com a flanela de minha fragilidade. Ela é avessa às lidas domésticas. Tem a cabeça entre as pernas e um coração vadio. Sou a de todos os dias, ela a das quartas-feiras, a das ausências de Menezes, o marido.
Mantenho-a sobre controle. Nada de sair por aí exibindo-se. Invento uma caixa, guardada no infinito do espelho, forro-a como uma cama, deito ali a boneca de louça. A boneca da louca, talvez. No quarto dia da semana, rompendo as barreiras, me toma pela mãos, me tira do quarto - pé ante pé, o sono de mamãe, no cômodo ao lado, é leve -, me leva à cozinha. A minha (ou já será a dela?) mão procura, entre os frutos, legumes e coisas da feira, a raiz: cenoura.


Casei com o Menezes e fomos morar na enseada de Botafogo, junto com a minha mãe. Homem trabalhador resumia seus dias entre o cartório e a casa. Depois do jantar, sentávamos, os três, na sala de estar, traçando planos de futuro. Filhos, casa maior, enfeitada de guirlandas. Amigas vespertinas, para o chá. Amigos noturnos, para os vinhos. Um paraíso pincelado à perfeição de um Da Vinci.
Algo frio, no entanto. Nas núpcias, o desencontro. A rudeza de Menezes, possuindo-me a seco, num único gole. Minhas respostas cada vez menos de consensualidade, o amargo vertendo na expressão do rosto. Ao final do segundo ano, as primeiras ausências do homem. Indo ao teatro, voltava no início da madrugada.
Em pouco tempo, os atos se prolongavam mais e mais. Nós nos víamos, novamente, nos jantares das quintas-feiras. Se deixaram de existir os encontros corriqueiros, de desenhar o amanhã, não passei a fazer reprovações, desafetos ou injúrias. Eu era como fora minha mãe, como era a vizinha da frente, a do lado de cá ou a de lá; igual a todas as mulheres do Rio.
No inverno, a sensação da perda. Numa cidade úmida como a nossa, o leito compartilhado - mesmo para corpos estranhos, o sono reserva descuidos: um braço envolve um tronco, o colo masculino amolda-se às nádegas femininas -, trinca o frio. Nessa estação preparei e gerei minha irmã siamesa. Trouxe-a para se deitar comigo, para me ensinar que contra o frio, o fogo interno. Expulsou-me da cama, corri (lenta, para não acordar mamãe), abraçando a cadeira da penteadeira, roçando o sexo na poltrona e decifrando aquele meu cheiro; os dedos dançaram livres. Em breve, eu estaria passeando pela casa nua, numa liberdade de vaca, e descobrindo a cozinha, a raiz, o homem.
Mas antes da larva e casulo, a primeira quinta-feira, o café da manhã com mamãe. Acompanhou-me um vulto branco; longe de ser fantasma ou culpa, era o que não digo. Não por pecaminoso ou ridículo, mas para não perdê-lo.
Depois do café, cumpri meus afazeres domésticos. A vida era exatamente a mesma. Exatamente outra.


No verão, o hóspede: Nogueira.
Rapaz de seus dezessete anos, seu corpo refletia o caminho incerto entre a criança e o homem. Alguns desenhos já bem definidos, no tórax. Mas nenhum - melhor dizendo, quase nenhum - pêlo.
Viera para o Rio tentar o vestibular de Direito. Estava temporariamente em nossa casa, enquanto arranjava uma pensão ou o que valesse para residir. Menezes o acolhera a contragosto, vendo-se impossibilitado de dizer não ao velho Seabra, pai do garoto, tio de meu marido.
A rotina da casa, inclusive a sua transgressão, foi quebrada com a chegada do novo elemento. Na primeira quarta-feira, percebia-se a ansiedade dele por ir ao teatro com meu marido. Logo deduziu o teor das peças. E ao nosso código juntou o seu próprio, entrando, nesse dia, no banho às oito horas, mesmo instante em que Menezes cruzava a sala a caminho da rua.


Não contei dele à minha irmã. Fingi certo cansaço, limitando as brincadeiras (seria esse o nome?) ao nosso quarto.
Afeiçoei-me a ele. Não como ela o faria. Um amor destro, de mãe. Estudava seus gostos. Recompensava-o com doces de frutas, oferecia-lhe uma alternativa ao rim de boi, fazia-lhe sonhos pela manhã.
Era muito jovem para o futuro que já lhe pesava nas costas. Era muito interiorano para a capital que tinha que desbravar. "Posso-lhe dar as mãos, traçar os caminhos?" - tivesse eu coragem de abordá-lo! Mas não tinha. Aliás, não conversávamos quase nunca diretamente.
À minha mãe falava:
— O doce está uma delícia.
Ela respondia, apontando-me:
— Foi Conceição quem fez.
Só aí se dirigia a mim:
— Dona Conceição, que delícia!
O dona precedendo o nome dava a medida exata de toda a distância entre mim e ele. Nada parecido com mãe e filho.


— Ou homem e mulher.
Eram ela e suas idéias tortas me desdizendo no mesmo instante em que eu falava dele pela primeira vez. Tentava-me convencer de que eu traduzia erradamente meus sentimentos. Eu não queria tomar suas mãos para protegê-lo, mas para agarrá-las. Traçar seus caminhos para não perdê-lo de vista.


Hoje: quarta-feira. Natal. A solidão é maíor do que nunca. Ela estava ansiosa, andando pelo quarto.
— E onde ele está agora? Dormindo?
— Está na sala. Espera um amigo que vem buscá-lo para irem à missa do galo.
— Quantas horas?
— Onze.
— Então vamos, dá tempo.
Vesti o roupão com que costumava sair do banho. Meio insuficiente para cobrir todo o meu corpo, meio vermelho, meio velho, era a vestimenta da meia vaca ao descer as escadas. Mais cuidadosos eram os passos, mais leve deveria ser o sono de mamãe.


Nogueira, no canto da sala, à mesa, mantinha os olhos fixos no livro, não percebendo minha chegada ou fingindo não perceber.
Ela arrastou-me para perto dele. Mandou que eu dissesse alguma coisa. Não digo. Diz. Não. Então falo eu.
Eu (ela) disse:
— A leitura não lhe dá sono?
Assustou-se e tratei de desculpar-me.
— Eu que estava distraído, dona Conceição. A leitura me tira os sentidos.
— O que você lê?
— Nada, quer dizer, nada de importante.
Escondeu o livro na pasta que estava na mesa. Enfrentamos nosso primeiro silêncio, e eu, o medo de que ele a pressentisse. Que ela lhe tocasse os ouvidos, com as frases obscenas que gritava para mim. Que o incomodasse, mexendo em seus cabelos, desabotoando sua camisa.
— Dona Conceição, a senhora não está passando bem?
Eu não tinha sentimentos, bons ou ruins. Era apenas uma briga entre duas porções femininas, antagônicas e única. Reparava na tapeçaria barata e vulgar e ...
— Você, Nogueira, o que acha dessa tapeçaria? Tenho a impressão de que existem milhares iguais a essa nas casas de tolerância. Estou enganada?
— Ora, dona Conceição.
Minha irmã ria, aprovando o rumo que aquela conversa tomava. Quis ir ao outro lado da sala, segurá-la, deter seus movimentos, estancar suas idéias. "Tudo mentira. O menino é meu filho." Fiquei surpresa, todavia, vendo minhas mãos desabarem sobre os ombros de Nogueira.
Encontro de muralhas, eu transmitia e recebia apenas o contato frio. A vontade não fluiu para as pontas dos dedos, não os movimentou, não os aqueceu. Pensei na cozinha. A cenoura lá.
— O seu amigo não está atrasado?
— Está, um pouco.
— Incomodo-o com minhas idéias tolas e minha presença?
— Não. Ao contrário. Quer dizer ...
— Nogueira, por favor, vamos falar mais baixo, mamãe tem o sono leve. Continue.
— O que a senhora falou, ainda há pouco, da tapeçaria e do livro que estou lendo ...
A siamesa estava próxima dele, passava-lhe o bico do peito no lóbulo da orelha. Uma das mãos arrancava-lhe a camisa, arranhava-lhe as costas.


Ao primeiro grito do amigo, Nogueira levantou-se rapidamente, pediu licença. Quando ele abria a porta, deixei o roupão cair, esperando que virasse o rosto em minha direção. Não o fez. Ouvi os passos e as vozes sumindo pelas ruas.


Uma tristeza profunda tomou conta de mim. Não aceitei o convite dela para voltar à brincadeira no quarto. Não queria. Permaneci no centro da sala, nua, estática. Para um, o teatro. Para o outro, a missa. Os coelhos poderiam ter invadido a cozinha.

9.8.08

Saúde e academia de ginástica: relação perigosa

Ignorando se a informação lhe interessa, leitor, digo: faço ginástica. Não estranharia se recebesse como resposta um sorriso sarcástico, último movimento de quem olhou para mim de alto a baixo e pensou: que shape, hein!

Tudo bem, não emagreço, mas pelo menos estou ficando informado. Enquanto maltrato a esteira, vejo a TV, o jornal da TV, e, com isso, torno-me atualizadíssimo. É um consolo para quem sua tanto.

Não é que, dia desses, estou lá nos meus, em média, sete quilômetros por hora quando surgem na tela da TV os oito principais mandantes do mundo? O famoso G-8 estava reunido no Japão. Imagino que, nessas ocasiões, eles se sentem em torno da mesa e se perguntem: e agora? Um fala: vamos dizer alguma coisa para sossegar os outros (nós, os indianos, os africanos, os bolivianos, os turcos e todos aqueles que não pertencemos aos oito). Emenda-se: continuaremos sendo os mesmos, a boa notícia é só para dourar a pílula, ou, como poderia dizer o Millor Fernandes, only to gild the pill. Pelo jeito, além de informado, vou adquirindo cultura. Isso é bom, cultura é o que há.

Apareceram na TV, claro, para dar a “boa” notícia ao mundo. Dessa vez comprometeram-se a reduzir em 50% a emissão de gases poluentes. 50% off, como nas liquidações anunciadas nas lojas americanas, inglesas e brasileiras. Época de eleição, e o Sr. Bush aceita reduzir as emissões estadunidenses. É mentira.

Não estou para política, juro, e minha intenção era dizer que o que mais me impressionou nisso tudo foi a forma com que mostraram ao mundo o seu apreço ambiental. Estavam os oito lado a lado, e cada um empunhava uma pá com a qual jogavam terra num buraco que acomodava a raiz de uma futura árvore. Em suma: os oito plantavam arbustos (as batatas plantávamos e plantamos nós, alguns suando na esteira). O que a política não faz! A cara do Sr. Bush não escondia a sua pouca intimidade com o trabalho braçal; na realidade, mais do que isso: em seu rosto, transparecia o pouco reconhecimento que ele nutre por trabalhos braçais. Votem! Votem! 50% menos poluição é o negócio da vez, oportunidade única.

Continuava suando. Eu, não eles, que apenas jogaram duas pás de terra e voltaram para o escritório para tratar (tramar?) de outros negócios. E foi em bicas que vi o secretário de Segurança do Rio de Janeiro desculpar-se pelo excesso da polícia carioca, cuja ação estrambótica, dessa vez na Tijuca, acabou com a vida de uma criança.

Antes, quem se desculpara pela atrapalhada (palavra suave, de gente culta como eu) fora o ministro da Defesa. Quando o vi, sempre pela TV, abraçando-se às mães das vítimas da Providência, achei sua atitude sensata, pelo menos dava a cara a tapa, ali, no olho do furacão, e não escondido no conforto de um escritório.

Outro pedido de desculpa. Epa, assim já é demais. Dizem que errar é humano, portanto pedir desculpa é, além de humano, civilizado. Mas, se persistir no erro é burrice, insistir na desculpa deve merecer algum adjetivo de baixo calão.

Apesar da esteira, emagreço pouco. E por causa da esteira, fico exposto ao mundo trazido pela TV. Sabe, estou pensando seriamente em deixar a ginástica de lado. Acho que a vida ficará melhor, pois tudo indica que a realidade faz mal à saúde.