10.1.10

As particularidades de janeiro

Janeiro é o mês que nos pega com um pé em dezembro e outro em fevereiro. Não se quer dizer com isso que seja desprezível. Muitas pessoas nascem nele: lembro-me de meu sobrinho mais velho, de três amigos e da filha de um deles, além de minha sogra (calem-se: a minha não está na categoria das sogras das piadas). Para quase todo o mundo, é o período de férias. Há coisa melhor do que férias?
É verdade que alguns confundem o mês à temporada das ressacas. Nada mais errado, ainda que as ressacas de janeiro sejam como as chuvas de março: inesquecíveis. Calha então de janeiro ser mês de promessas. Não bebo mais. Nem como. Não pulo cerca. Não cerco Lourenço.
Na realidade, promessas, muitas, foram feitas em dezembro, mas as de janeiro dão as mãos ao Remorso, são promessas sobre promessas, portanto, é o momento em que o Fracasso passa a pilotar o destino. Por isso, lavam-se as escadas das igrejas de Salvador. E chove tanto. E o calor finge que não é com ele.
Não há frutas de janeiro. Tampouco flores. Em compensação, aflora-se a sexualidade juvenil. Os professores tiram o jaleco.
Em janeiro, envergonhada, a celulite ganha as praias, e as cachoeiras não escondem suas trombas d’água. O avaro rói a unha para economizar as mangas tardias. Uma penca de meninas destrói as bonecas que o Natal esqueceu sob as árvores de suas casas.
Em janeiro, o alcoólatra toma juízo. Às vezes, com vermute, na calada das noites pequenas e intensas. A lua, por seu turno, ilumina a noite porque esse é seu destino. Por ela, regurgitava o calor medonho do sol e recolhia-se à escuridão de sua vizinhança.
Não se dança bolero em janeiro. Os apaixonados perdem-se no iê-iê-iê, e os desesperados, apaixonados ou não, descrentes com certeza, jogam búzios e deixam trabalhos malfeitos em esquinas inocentes.
A desmemoriada tenta nas quatro segundas-feiras de janeiro, nas quatro terças, mas não em todos os domingos, decorar o samba enredo do Salgueiro, esquecendo-se que desfilará na Mangueira.
O mar, esse incansável, espreita os bobos e dá-lhes caldos, alguns mortais. Sem saber a situação na qual lhe foi enviado o brinde, Iemanjá agradece, soprando as costas do Brasil com seu bafo sensual. Janeiro é um deus-nos-acuda, com orgasmos ao meio-dia e quase orgasmos em horas impróprias.
Janeiro é começo, logo, nele engatinhamos sem fraldas, ainda que precisando bastante delas. Em que outro mês os cobertores poderiam ganhar o direito de tomar sol nas áreas minúsculas dos apartamentos minúsculos?



Os neuróticos entram em parafuso, pois seus analistas estarão de férias. O padre reza missas sem cuecas. Tudo no primeiro mês do ano.
Os presos se odeiam em janeiro e, por isso, abandonam seus comandos. É o mês do indivíduo. Mas é também o mês em que o prefeito, o governador e o presidente tomam posse. O povo ensaia uma esperança, mas guarda-a para depois do carnaval, pois lá fora um bloco do sujo grita por seu nome.
Os homens, achando-se felizes ou até mesmo sendo, vão ser reis momos. Tudo indica que em fevereiro, raramente em março. Paciência. Dedica-se janeiro à preparação.

13 comentários:

edson coelho disse...

é isso aí, alexandre. você tirou as roupas de janeiro. muito apropriadamente.

Graça Sette disse...

Xandão, você pegou na veia. Janeiro é mesmo essa ilusão de recomeçar. Mas que seria de nós se tudo fosse sempre "no osso, sem pele", uma fratura exposta. Seu blog está ótimo. Já o adicionei em meus favoritos. Bjs pra vc e sua trupe!
Graça

Unknown disse...

Nossa, Xandão, nem janeiro saberia se dizer com tanta graça e precisão. Demais.
Bjs
Dani.

No Osso disse...

Atendendo ao pedido de minha amiga, Nilma, reproduzo o e-mail que recebi dela.

"Ponha no blog, Alexandre. Eu não consigo. beijos,

Uma penca de meninas destrói as bonecas que o Natal esqueceu sob as árvores de suas casas.

Janeiro, definitivo, Xandinho, para retomar apelido de um tio antigo.
Belo, e no osso.
Nilma"

No Osso disse...

Edson, poeta grande de Belém do Pará, janeiro nuinho em pêlo é bom, né?
Graça, querida, bem-vinda a esse sítio ósseo. Leitura do seu naipe exigirá mais atenção minha.
Dani, querida, na realidade, foi uma conversinha fiada que tive com Janeiro. Fiz apenas relatar o que ele me contou.
Nilma, já até te disse: não bastasse a satisfação de tê-la entre os leitores do blog, você ainda me chamou de Xandinho. Ô delícia!

Grupo de Teatro Scrachados disse...

É meu amigo, janeiro ficou todo todo. Chegou como os Reis Magos. Dezembro de papai Noel e fevereiro de fantasia morreram de inveja.
Grande Abraço
Del Vigna

No Osso disse...

Del, meu camarada, Janeiro sempre escondeu suas prendas (ouro, incenso e mirra), mas não muito bem. Basta espalhar um pouco o calor tremendo de seus dias para ver que é um mês com personalidade.

Abraços,

Aroeira disse...

muito bom. um pente-fino no olhar.
parabéns!

No Osso disse...

Obrigado, Aroeira. Boa é sua imagem: pente-fino no olhar. Se por acaso, ela aparecer em algum texto meu, não é roubo, mas diálogo, ou qualquer outra coisa que cheire boas intenções.
Abraços,

Aroeira disse...

rsrsrs royalty free. À la volonté, monsieur.

Ana Claudia Calomeni disse...

legal, legal :)

Dag Bandeira disse...

Xande, faltou somente dizer que em Janeiro a verve dos cronistas se supera.
Dag Bandeira

Jacqueline disse...

Adorei, Alexandre! Eu, que nasci em janeiro e tenho uma triste história de aniversários com os poucos amigos que não tinham viajado (ou sem os amigos, porque eu estava viajando) e festas estragadas pelas chuvas de verão, fiquei feliz de ver alguém falar bonito desse mês "filho do meio", espremido entre as festas de fim de ano e o carnaval. Mas janeiro tem mesmo esse clima de "agora vai"; é tempo de ler um bom livro, daqueles que fazem pensar na vida. Viva janeiro!!!
Beijos
Jacq