10.1.10

Num sábado, estávamos todos lá

Ieda Magri, Folha Carioca, Setembro de 2007

Conheci Alexandre Brandão num jantar de trabalho na casa do Paulo, editor deste nosso jornal. Calado, quase não falou a noite toda. Achei-o meigo, doce até. Uma amiga comum, Lilibeth, nos apresentou e  ele me presenteou com dois de seus livros Contos de Homem (1995) e Estão todos aqui (2005). Fiquei entusiasmada com duas coisas antes de abrir os livros: o primeiro tem prefácio de João Gilberto Noll, autor que gosto muito e um dos primeiros que indiquei nesta coluna; o segundo pela semelhança do título com o de meu livro que estava no prelo: Tinha uma coisa aqui. Ele plural, eu singular. Se o jantar não estivesse tão bom e se os olhos de D. Maria Helena não me penetrassem tão fundo, eu teria me despedido de todos naquela hora e me trancado em casa para descobrir os livros.

Mas era sábado à noite e desconfiei que minha curiosidade podia esperar. Tive uma conversa longa com D. Maria Helena, mulher adorável e misteriosa; fui com ela até sua casa e me despedi com a promessa de visitá-la em breve. As histórias que me contou com o cuidado de deixar sempre algum detalhe em suspenso me levarão de volta à sua casa. Eu não sabia ainda que esse mistério pendurado em qualquer canto dos olhos de D. Maria Helena, o mesmo emprestado às histórias que me contava, estaria presente de forma inequívoca nos contos de Alexandre Brandão, e muito menos que pudesse arrancar daquele seu jeito doce, uma fúria tão louca como a que vi, principalmente em Contos de Homem.

Não dá pra falar de todos os contos desse livro riquíssimo, cada um sempre com um susto, um punhal, alguma força inesperada que avança por trás das palavras, adiando o desfecho da narrativa e surpreendendo o leitor. De dois gostei em especial: “A novidade” e “A primeira leitura.”. No primeiro um narrador conta a história de um primo suicida, Gabriel, que depois de várias tentativas frustradas consegue, com auxílio de um manual, passar para o que ele chama de segundo plano. De lá, corresponde-se com o primo dando detalhes da vida após a morte. A fina ironia desse conto, em que vislumbramos até mesmo uma conversa com Borges, é genial. É essa ironia que marca também o outro conto que me tocou profundamente. Trata-se de uma releitura, ou de uma vivência mesmo, por parte do personagem Maurício, do romance Dom Casmurro de Machado de Assis. Maurício fica perturbado na primeira leitura do livro e entrevê Capitu nos olhos de ressaca de Luma e a desfaçatez de Escobar no seu amigo Sabão. É Baco, o pivete, o menino de rua que se torna um amigo, o único que dança meio alheio à história real, mas confidente imediato do que se passa no romance. Sentimos, na leitura, que a linha tênue entre o fato e a ficção pode ser borrada a qualquer momento e, como no romance de Machado, procuramos saber logo o que  se passa entre os amigos adolescentes de 18 anos. O espaço que há entre a primeira e a segunda leitura  do romance é a medida do acontecimento e da agonia de Maurício.

De Estão todos aqui escolhi destacar o último conto, “Todas as fichas.” Nele alguns vagabundos ganham a vida em suas trapaças noturnas. Jogadores profissionais, mas também meio bandidos, já que acabam se metendo, uns ao acaso e outros de maneira muito pensada, em crimes pesados. Galhardo, sem dúvida o mais humano do grupo, é o primeiro que vislumbramos no início da narrativa: jogando cartas no que chama de “a mesa dos sonhos”, formada por profissionais gabaritados. Está às voltas com um sanduíche que contempla como se fosse uma promessa boa. O sanduíche dá o tom do que vai na mesa de jogo: “cheiro de carne viva no boi finado, acebolado e frito.” O clima de perigo que ronda a mesa e a vida desses jogadores, junto com a imensa humanidade desse homem que joga e ama, lembra a fineza da escrita de João Antônio, outro escritor que indiquei nesta coluna e que gosto demais. Meio conto policial, meio outra coisa, beira de vivência e vida pulsando, a rotina desses marginais - em todos os sentidos da palavra – merece ser lida pausadamente de modo a revelar a força da escrita contida do autor.


Embora os contos que escolhi façam referência a outros escritores (“Todas as Fichas” se abre com uma citação de Macário de  Álvares de Azevedo), não há vestígios de eruditismo nos contos de Alexandre. Penso que quando não são bem manejadas, as referências às obras e aos escritores consagrados se convertem em pedantismo ou falsa erudição, como se o autor tivesse que provar que leu, que conhece, etc. Quando me deparo com um livro desses, que insiste em marcar pesadamente certas referências, mostrando o tom falso que há por trás da teia da escrita, faço como o bibliotecário Lúcio: ao inferno! Não é o caso de Alexandre. Como os olhos de D. Maria Helena, seus contos mostram até onde a cumplicidade do leitor alcança.

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