12.7.10

Ontôje: uma crônica mercantil



           


Sou do tempo em que meu primo, Zecão, vendia de porta em porta o leite fresquinho da roça. Chegava com sua camioneta, estacionava nalgum ponto estratégico da rua e buzinava. As pessoas acudiam o chamado com vasilhame na mão, prontas para pegar um, dois litros. Nada de dinheiro, pagamento só depois, no final do mês. De volta a casa, fervia-se o leite bom, gordo, e com ele, às vezes pelando e amorenado com açúcar queimado, enchiam a pança da meninada. Também se preparava o doce de leite, o arroz doce, até queijo se fazia. Sou do tempo em que as casas eram manufatoras.


Sou do tempo em que tudo era pecado. Os campos e as cidades estavam cheios de seus frutos. Eu era um deles, você também, ou seus pais e avós, dependendo de sua idade. Sorte que, na minha cidade, havia um padre, o Jaime, que aliviava nossas penitências nos casos de roubos de frutas e de uma ou outra mentira inconsequente. Padre Jaime acabaria por largar a batina agarrando-se a uma saia sob a qual uma moça bem ajeitada não se escondia. Pecador? Na época, sim, hoje, com o que se anda fazendo por aí nas barbas de Deus, muitas vezes em seu nome, Padre Jaime seria um homem digno; o que, de fato, ele era. Me excedi, deixemos Padre Jaime em paz.




Sou do tempo em que se pedia para namorar hoje e só se tinha a resposta uma semana depois. Pegar na mão, era um protocolo, custava um mês. Beijar, dois. Transar, uma vida. Aprendíamos, com a experiência, que uma vida era um tempo grande, mas finito. Alguns convertiam essa medida pouco rigorosa: uma vida igual a dois meses, três, dependendo da lábia e dos lábios. Sou do tempo de grandes segredos.
Sou do tempo em que não se tinha jogo eletrônico. À toa pela cidade, medíamos as ruas em número de pisadas. Ida e volta. Íamos sem medo, com os olhos nas vitrines e nas pessoas; do mesmo modo voltávamos. Sou do tempo em que apelidos não eram apelidados de nick e bastavam por si, sem que fosse preciso seu complemento atual, a senha.
Éramos desportistas. Para ser mais exato, peladeiros de plantão. No surgimento dos primeiros fios de barba, os amistosos tornavam-se disputa de vida e morte, cabendo ao morto o pagamento das cervejas tomadas até morrer pelos vivos. A partir da primeira aposta, as cervejas passariam a ser o atrativo principal — gol pra quê? De qualquer forma, jogávamos, quando jogávamos, quase tudo: futebol, basquete, handebol... O vôlei tinha má fama: era coisa de mulher ou de invertido. Invertido era a palavra mais branda que se usava para falar dos homossexuais.
No meu tempo não conhecíamos a palavra homossexual. Não éramos, para o bem e para o mal, politicamente corretos. O conceito “politicamente correto” nem existia, o que não me impede de dizer que erramos ao ser tão descaradamente preconceituosos. Éramos, e nesse ponto o mundo e nós melhoramos.
Aonde quero chegar? Quero chamar sua atenção, leitor jovem, caso haja algum, para o fato de que meu tempo era em quase tudo melhor que o seu. Compare. Atualmente, a violência; antigamente, a tranquilidade. Agora, funk com suas cachorras; antes, música lenta para se dançar colado com a gata. Contra o mundo cibernético do presente, o peripatético e saudável do passado. Hoje, transparência excessiva; ontem, obscuridade sutil.
Não estou certo? Então, agora escute minha proposta: fico com o caos contemporâneo e todas as suas mazelas; em troca você fica com o mar de rosas de antanho. Extensão lógica: fico com a sua idade, você com a minha.
Permuta olho no olho, olho por olho, sem devo ou deve.
Fechado?

8 comentários:

Paula: pesponteando disse...

Então,depois de tudo que li, posso dizer que não haverá troca entre nós. O leiteiro ainda vem num carrinho velho, grita em frente à minha casa: "ô o leite". minha mãe vai com uma jarra, traz um ou dois litros e ferve, leite grosso. Ainda esta semana comi arroz doce.
apesar da pouca idade (nem ouse perguntar qual)vivi e vivo coisas assim, coisas semelhantes. mas a cada dia fica mais distante, e este mundo moderno adentra a porta de casa...e vou mesclando experi~encias...Lindo o seu texto. real, palpável...
abraços..

No Osso disse...

Paula, não seria indelicado de perguntar sua idade, mas quem sabe seu endereço... Ir aí tomar um leite desses, comer arroz doce (é o meu fraco)... quem sabe?
Obrigado pela visita. Venha sempre.

edson coelho disse...

alexandre, sempre digo que não sou do interior, e sim do mato, o que dá uma idéia do prazer que tive ao ler seu texto. hoje mesmo, terça, vou almoçar em casa de mamãe, aqui em Belém, e ela, para quem sou sempre um menino (e sou mesmo, às vezes cinicamente) sempre me mima com coisas como cuscuz. falar nisso, acho que vou logo pra lá.

No Osso disse...

Grande Edson, poeta criança de Belém, vai fingindo ser criança pra sua mãe (sem cinismo, por favor), mas não maltrate os amigos. Vai comer cuscuz e eu comida a quilo... Tenha pena da gente!
Abraços para todos.

Dag Bandeira disse...

Embora tenha vivido tudo o que você expôs no texto, quero trocar com você a idade. Não para fcar mais nova, mas para ter muito mais para contar.

No Osso disse...

Dag, Dag, menina peralta. Você sempre será mais nova do que eu porque tem mais histórias pra contar do que eu. Ora, bolas!

valter ferraz disse...

Alexandre,
olha, acho que vou fechar com vc. Nem peço a volta. Na oreia, mesmo.
Tá tudo mudado, véio. O que er achava certo é o errado e aquilo que jurava ser o errado, insistem em me provar que é o certo.
Daí que já não sei mais nada e na dúvida vou fazer negócio com voce.
Abração

No Osso disse...

Valter, negócio fechado. Só precisamos combinar o local da troca.
Abraços e obrigado pela visita.