Nada de escrever maldizendo Deus, senhor da chuva e do homem.
Quero apenas esboçar uma oração à criança que não virá a ser isso ou aquilo.
Ao velho que não poderá morrer com os filhos a seu redor.
À mulher que não irá parir o feto que carrega. E ao filho que não rebentará.
Ao pai que não deixará de beber.
Ao jovem que cai doido de crack no colo da morte.
Ao casal que leva o amargo das carícias interrompidas. (Abraçado ao álbum de casamento.)
À tia que não se casará. Ao bombeiro soterrado.
Quero improvisar uma canção para, à moda de Drummond, fazer dormir uns e acordar outros.
Fazer dormir os que morreram inconformados. Os que foram embora sem acreditar no amor. Os que se viram melhor mortos do que vivos. Nada no além lhes dirá respeito. (Isso não necessariamente é ruim.)
Despertar os anjos que andavam perdidos entre nós. Os mendigos que louvavam a segurança do verão serrano. Os pobres que conquistaram uma casa como exércitos conquistam terras. E os bichos, que não têm dimensão da morte. É deles o reino dos céus.
Quero depositar meu silêncio sobre as fotografias da tragédia.
Quero fechar meus olhos à idiotice dos pragmáticos.
Ah, criança que seria alfabetizada este ano, vai sem saudade dos homens.
Aposentado pelo INSS, vai sem saudade dos homens.
Gigolô, craque de bola, ás do skate, menina que gostava de menina, baderneiro de rua, filatelista, fã da Carmem Miranda, gótico, turminha do baile funk, vão, mas vão sem saudade dos homens.
Aqueles cujo convite de missa circulará nos jornais. Aqueles cujo convite de missa circulará de boca em boca. Aqueles que não terão missa, mas serão lembrados em cultos. Aqueles que não terão nenhuma homenagem religiosa. Por fim, aqueles que não serão encontrados. Vão sem saudade dos homens.
Vão sem saudade dos homens.
Sem nenhuma.
Eu fico.
Triste, minha única vontade é mijar no pé do poder.