18.1.11

Choveu



Nada de escrever maldizendo Deus, senhor da chuva e do homem.

Quero apenas esboçar uma oração à criança que não virá a ser isso ou aquilo.

Ao velho que não poderá morrer com os filhos a seu redor.

À mulher que não irá parir o feto que carrega. E ao filho que não rebentará.

Ao pai que não deixará de beber.

Ao jovem que cai doido de crack no colo da morte.

Ao casal que leva o amargo das carícias interrompidas. (Abraçado ao álbum de casamento.)

À tia que não se casará. Ao bombeiro soterrado.

Quero improvisar uma canção para, à moda de Drummond, fazer dormir uns e acordar outros.

Fazer dormir os que morreram inconformados. Os que foram embora sem acreditar no amor. Os que se viram melhor mortos do que vivos. Nada no além lhes dirá respeito. (Isso não necessariamente é ruim.)

Despertar os anjos que andavam perdidos entre nós. Os mendigos que louvavam a segurança do verão serrano. Os pobres que conquistaram uma casa como exércitos conquistam terras. E os bichos, que não têm dimensão da morte. É deles o reino dos céus.

Quero depositar meu silêncio sobre as fotografias da tragédia.

Quero fechar meus olhos à idiotice dos pragmáticos.

Ah, criança que seria alfabetizada este ano, vai sem saudade dos homens.

Aposentado pelo INSS, vai sem saudade dos homens.

Gigolô, craque de bola, ás do skate, menina que gostava de menina, baderneiro de rua, filatelista, fã da Carmem Miranda, gótico, turminha do baile funk, vão, mas vão sem saudade dos homens.

Aqueles cujo convite de missa circulará nos jornais. Aqueles cujo convite de missa circulará de boca em boca. Aqueles que não terão missa, mas serão lembrados em cultos. Aqueles que não terão nenhuma homenagem religiosa. Por fim, aqueles que não serão encontrados. Vão sem saudade dos homens.

Vão sem saudade dos homens.

Sem nenhuma.

Eu fico.

Triste, minha única vontade é mijar no pé do poder.

14 comentários:

No Osso disse...

Alexandre, amei o texto. Coisa mais linda! Tão delicado quanto contundente. Em especial, amei esta frase: "Os que se viram melhor mortos do que vivos. Nada no além lhes dirá respeito."

Hoje, já me comovi com o texto da Vivina - na página dela, no PP - que também é muito lindo e impactante.

(Enviado por Maria Balé e postado a pedido dela)

Felisberti disse...

Tocou fundo. Fatima

Paula: pesponteando disse...

Passo sem palavras...mas comovida.

Alexandre Eduardo Weiss disse...

De acordo.
Quanta sensibilidade.

Enquanto eu relia as linhas finais do seu texto e me preparava para escrever um comentário caiu um pé dágua de assustar. Destes que têm caído, neste verão trágico à beira mar à beira floresta.

Desligou tudo... a força elétrica cessou... segundos de suspense... voltou.

Lá fora as buzinas na autoestrada demonstram a impaciência dos viventes. As vias alagaram em minutos. O trânsito parou.

Olho pro morro e me condói a certeza da temeridade dos que na encosta moram. Sinto suas angústias.

Trovões distantes nos fazem saber que ela, a chuva, a tempestade está se deslocando.

Quanta lama insensível, quantas intempéries nos aguardam nos próximos tempos?

Abraços do xará.

People MR disse...

Me tocou fundo. Quanta sensibilidade.Belíssimo.

Tomara que os responsáveis pelas tragédias leiam este texto.

No Osso disse...

Amigos (Maria, Fátima, Paula, Xará e Paçoca),
Há pouco escrevi a um amigo que escrevi esse texto com a mão solta e o coração apertado. Está difícil passar por isso. Mas, como bom otimista, acho que alguma lição tiraremos daí e evoluiremos. Bem, mas antes, quero mijar no pé do poder.
Abraços....

Vania Osorio disse...

Alexandre,
a dor que sinto (eu que nada sofri) já é tanta, que nem ouso tentar imaginar a dos que estão no meio desse pesadelo.
Deposito também meu silêncio em respeito a eles.
Mas tudo isso é um grito, um alarme que disparou há dias e que ninguém consegue desarmar.

Criba disse...

Puts... ainda engasgado e sem palavras.

Nenhum comentário pode ser mais simples e direto do que esse, ó:

Lindo!

Unknown disse...

vc querido como sempre "grandioso" parabéns e bjo

No Osso disse...

Vânia, Criba e Vera,

Para além da ajuda que todos estamos dando ao pessoal que está lá, no meio do furacão (e Vânia é um exemplo emocionante, pois tem pegado seu carro e subido a serra disposta a ajudar de peito aberto), também temos nossos gritos íntimos que não querem calar. Esse meu texto é isso.
Obrigado pela visita.

Gonzalo Chavez disse...

Forca xandao, toda minha solidaridade com o pessoal da Serra do rio. Lindo o texto. Um grande abraco

No Osso disse...

Gonzy, meu velho, obrigado pela visita.
Estamos todos torcendo para que a tragédia não se repita, não por milagre da natureza, mas pelo preparo dos homens. Que políticos, empresários, moradores enfrentemos a tarefa árdua que é reconstruir, mudando o que deve ser mudado.
Abraços.

Dag Bandeira disse...

Calo-me com você em homenagem não só aos mortos, mas a todos que ficaram e ainda conseguiram dizer: "tenho esperança, tenho que recomeçar".

No Osso disse...

Dag, muito bem lembrado. Os sobreviventes merecem nosso carinho, auxílio, principalmente depois, quando tudo voltar "ao normal".
Beijos