29.5.11

Guerra de mamona, filme francês

Quando em Passos não havia a Avenida da Moda, o córrego passava aberto bem atrás de minha casa, criando, dessa maneira, uma divisão e, portanto, uma fronteira imaginária. Éramos a turma da banda de cá contra a turma da banda de lá. Se falo contra é porque havia conflito, como é comum a zonas de fronteira, seja a que separa Israel da Cisjordânia, seja essa miúda que dividia a turma da Jaime Gomes da turma da Bonsucesso.
O diabo de estar numa guerra sem razão muito clara é que o contato mais próximo com o rival entorna o caldo, no caso, fazendo amigo o inimigo. Foi depois de atravessar o “corgo” voando em vara de bambu (eu acho, mas também invento um pouco) que conheci os filhos do Pixuxa: o Ronaldo, o Reginaldo e o Branco — os dois últimos com passagem relâmpago sobre a face da terra —, o João Pagliuso e o Rick Bell. Viramos amigos, mas antes deixei a pele dos caras muito bem marcada por umas boas estilingadas.
Mamoneira em foto de Maria Lídia Gonçalves Bueno, minha vizinha 
lá de Passos, da turma da Jaime Gomes, claro
Essa crônica não é um acerto de contas com o passado, sentei aqui para escrever sobre um filme: “O pequeno Nicolau” (“Le Petit Nicolas”), de Laurent Tirard, baseado nos livros de René Goscinny (autor de Asterix) e Sempé. Que filme, amigos, que filme.
É a história de uma garotada na França  de 1950/1960. O tal Nicolau está por ganhar um irmão, e seus colegas passam a alertá-lo sobre a tragédia iminente: ele será jogado às moscas, e não em sentido figurado. Tudo isso dá pano pra manga. Histórias, hilárias, vão se acumulando.
As crianças entram em confusões típicas da idade: criam poções mágicas, organizam gangues (daí ter me lembrado da guerra com mamona), bagunçam a casa em que os pais estão ausentes. Os adultos também são risíveis, particularmente quando se esbarram o mundo da família e o do trabalho. Há um jantar na casa de Nicolau, organizado pela mãe para ajudar o pai em suas pretensões na empresa, que não há quem não se contorça de tanto rir.
O filme não é politicamente correto, essa praga da atualidade. As crianças roubam carro, planejam sequestro, são mesmo da pá virada. Voltado (em tese) para os bem jovens, “O pequeno Nicolau” não sopra na direção deles nenhuma moral estruturante ou condena a infância por seus excessos. Tampouco estimula a transgressão. Em meio a inocente algazarra, a trama acaba por fixar o encontro entre um menino e o futuro homem que irá ser. Esse encontro, verdadeiro pulo do gato, é feito de forma poeticamente espantosa e dá grandeza ao filme.
Volto ao tempo da guerra de mamona. Ali por acaso me encontrei com o futuro homem que eu viria a ser? Nada disso. Para dizer a verdade, ali ficou aberta uma ferida daquelas: eu deveria ter acabado com aqueles caras da Bonsucesso. Rio dessa minha bobagen? Rio e, por outro lado, não rio. Falar da infância sempre me dá a medida exata da rapidez com que a vida passa, o que não é um fato que eu enfrente com gargalhadas.

4.5.11

O erro que nunca cometi

Brinco dizendo que meu único erro na vida foi ter nascido — alguns acreditam que digo a verdade e muitos concordam com a tese da minha brincadeira. Francamente, não passa de um exagero.
Exageros de certo modo garantiram nossa vida tal e qual a temos hoje. Não fossem eles, não passaríamos de uns 10 ou 12 Adões e Evas, filhos pingados à terra em momentos de tédio de Deus.
Exagero foi ter dado ouvido (asas ainda não demos) à cobra e comido a maçã que o diabo lustrou com o bafo. E ainda: guerrear por Helena; erguer a Muralha da China; pintar a Monalisa; revelar os sentidos dos sonhos... Não à toa cantamos: “Exagerado, eu sou mesmo exagerado, adoro um amor inventado” (Cazuza, Ezequiel Neves e Leoni).
Na verdade, e sem exagero, cometo erros de toda espécie. Chego mesmo à borda do pecado, mas parece que não passo daí. Veja se concorda.
Os dois primeiros mandamentos pregam que devemos amar a Deus sobre todas as coisas e não usar Seu nome em vão. Talvez eu queira discutir um pouco o que seja Deus, mas, pondo-nos de acordo sobre isso, respeito o divino sem outra discussão.
Sempre honrei pai, mãe e os outros legítimos superiores. Nunca matei. Nem roubei. Jamais levantei falsos testemunhos (tudo bem, uma ou outra vez para ver um dos meus irmãos em apuros com mamãe, mas já fui perdoado, era uma criança!).
Quanto a guardar domingos e festas de guarda, convenhamos, o mundo mudou, e eu mudei com o mundo.
Não entendo bem o que seria guardar castidade nos pensamentos e nos desejos. Temo ter ferido e ainda ferir tal preceito, não apenas no nível do pensamento e do desejo. Não sou mesmo um santo.
Mal redigido (ou mal traduzido), o último mandamento — não cobiçar as coisas do outro — se fia numa palavra ambígua: coisa. Se por ela devo entender os bens materiais das outras pessoas, não os cobiço, mas, aqui e ali, invejo-os. Nada muito grave, de fato são lampejos de inveja, que vêm e vão. Porém, se, como afirmam alguns, a mulher do outro está entre essas coisas, ô, dó de mim.
Leitor, acabo de me expor ao ferro e fogo do seu julgamento. Espero que olhe para si antes de dizer que, de fato, era melhor eu não ter nascido, que meu erro foi esse.
Nas vezes em que me vejo nervoso, quando não coço os olhos, assobio. Um gesto ou outro me confortam, com eles ganho tempo; e o tempo — recorro ao banal — opera milagre, com seu beneplácito pode-se reverter a mais desfavorável das situações.
Assobio enquanto escrevo e espero seu veredicto.
Fiat lux: assobiando encontro o erro que jamais cometi: nunca votei no Bolsonaro.
Isso compensa meus quase pecados?