29.6.11

Na mais alta esfera

(com saudades do Piccirilo,  do Gustavo,  da Silvane e da Sonia)

     Por favor, Deus está?
     Como assim? Deus sempre está.
     Ele pode me atender? Tenho assunto urgente a tratar.
     Ele já o atendeu.
Nos casos em que ouvidoria, ombusdman ou Procon não funcionam, com quem se deve falar senão com Deus?
Quero denunciar um roubo. Sim, roubaram-me dois amigos numa única semana. O Luciano Piccirillo, um dos sujeitos mais alegres e festivos colocados na face da terra, e o Gustavo, outro parceiro do riso e do escárnio.
O Piccirillo foi da minha turma. Não fomos fáceis: alguns mais, outros menos, éramos amantes do rock, da velocidade e de outras atitudes de risco. Graças a isso, minha turma contribuiu, ao longo do tempo, com as estatísticas de violência que recaem ainda hoje sobre os jovens: morremos por tiro, em acidente e mesmo por overdose. Mais recentemente, começamos a pagar o preço do exagero anterior acometidos pelas consequências da Aids e da hepatite C. Piccirillo, sobrevivente dessas armadilhas tanto quanto eu, nos trouxe o primeiro infarto.
Deveríamos estar vacinados contra o sofrimento causado pela morte. Mas não é assim, sofro agora como um pai que vê outro sair de cena deixando esposa e filhas à própria sorte. Sofro porque este meu amigo não verá o sucesso de suas meninas e não poderá ajudá-las em algum momento de fracasso.
Com o Piccirillo foi-se um pouco da alegria, uma parte grande dela, mas não toda. Nós, seus amigos e em seu nome, trataremos de mantê-la viva. “Um por todos, todos por um” — a máxima dos três mosqueteiros, personagens de que nos fantasiamos num carnaval longíquo (em desenho do Gustavo) — é o nosso grito de ontem, de hoje e de sempre.
 Imagino que, a essa altura dos acontecimentos, foram feitas muitas homenagens ao Gustavo. Ele merece, pois, competente como era, poderia ser um ator nacionalmente louvado, caso vivesse em São Paulo ou no Rio. No entanto, preferiu ficar em Passos e dedicar seu talento ao povo de nossa cidade.

Deixando de lado sua importância óbvia para as artes e passando a tratar de assunto menos nobre, pergunto se foram lembradas as excentricidades do gordo. Eram muitas. Minha mãe ficava louca quando ele ia almoçar lá em casa, pois isso significava que o pé do frango deveria ir para a mesa. Ela, que odiava pé, coração, moela, sangue, fazia exceção para seu amado amigo. (Como eram amigos!) Claro, Gugu tinha outras e maiores maluquices, sendo um dos poucos casos, se não o único, de um boca-suja que vivia em harmonia com as irmãs do colégio.
A última vez em que estive com o Gustavo foi no lançamento de meu “A câmera e a pena”. O grupo Vastafala fez uma performance antes de eu começar a autografar os livros. Com sua voz sem igual, Gustavo fez ecoar pela Casa de Cultura trechos da crônica que ele mesmo escrevera quando morreu minha mãe. Minha filha diz que foi a única vez que me viu chorar.
 Nem a polícia dará solução a esse roubo. Assim, termino esse papo exatamente como comecei.
— Claro que Ele me atendeu. Assim mesmo preciso de dois minutos de Sua atenção. Vou ser breve... E um pouco crítico.
(Mal acabo de escrever esta crônica, Silvane Barbosa, amiga recente, querida e igualmente compromissada com a alegria, da turma da UPES de 1972, também nos foi roubada. Na conversa com a alta esfera, terei de ser mais do que um pouco crítico.)
— Estou esperando, não tenho pressa.


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Quando comecei a escrever esta crônica eu queria arranjar um jeito de aliviar um pouco a dor de tantas perdas. Naquele momento, eram as de Piccirillo e Gustavo. Depois foi a vez da Silvane. Desgraçadamente, no dia 25 de junho, a irmã de Silvane, Sonia, foi cruelmente assassinada na minha Passos, cidade que tem registrado níveis altíssimos de violência. Essa "brincadeirinha" de querer falar com Deus para dar-Lhe um puxão de orelha, na realidade, não faz (se é que alguma hora fez) o menor sentido. Publico a crônica porque eu a tinha escrito e penso que deveria compartilhá-la. Mas eu, eu mesmo, estou recolhido em luto.
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6.6.11

O chico do Chico

Para Maria Balé, Denise Ribeiro, Carlos (in memoriam),
Alejandro e Gonzalo. Também para o Chico, claro.
Ah, como não sou maluco, para minha
irmã Teresa Cristina.



Conversando com amigas, conto-lhes que em 1984, em companhia de chilenos que viviam no Brasil fugindo da ditadura, fui jogar contra o time do Chico Buarque de Holanda, o Polytheama.  Falar do Chico é conquistar de forma instantânea a cumplicidade feminina — não só delas, para ser sincero. As duas mulheres com quem eu dividiria em breve uma pizza grudaram os olhos em mim, esperando a história.
Formávamos eu, don Alejandro Tumayán e Carlito Bravo o meio de campo de um time bom de gole. Tanto era assim que adentramos as quatro linhas numa ressaca das canjebrinas, resultado de uma concentração rigorosíssima. Talvez por isso, Gonzy, meu irmão boliviano, tivesse tanta dificuldade em saber o lado que deveríamos atacar. No time ainda havia outros chilenos, brasileiros e bolivianos, além de argentinos. Em síntese, o sonho de Bolívar feito realidade em short e tênis bamba (não tínhamos chuteiras). O time adversário nem se importou com o significado político do nosso catado e nos deu uma sova daquelas.
Mal terminada a pelada, o Chico já estava numa segunda, driblando toda espécie de joões que surgia a sua frente. Ele é daqueles poucos seres de inúmeras aptidões, e nisso se parece com o querido Nelson (craque na escrita, na viola, na fotografia e no desenho) e com meu amigo de infância, o Tista (brilhante nos esportes). O Chico ainda tem aqueles olhos... Volto à história, que é o que interessa e de onde não deveria ter arredado pé.

O sol estava de lascar. Me ajeitei numa sombra. Não havia cerveja gelada, logo ficar longe do sol era uma espécie de consolo. Carlito se aproximou, estava exausto. Estudante de psicologia e trotskista, via no exercício físico um desperdício de energia. Guardássemo-nos para entender Freud e derrubar ditaduras, defendeu ofegante. Roubando-me meia sombra, acrescentou que se decepcionara um pouco com o dono da bola: era muito preparo físico para alguém que chacoalhara e chacoalhava ainda a ditadura brasileira.
Vi o Chico sair do campo, passar no meio do pessoal e seguir para o banheiro. Não pensei duas vezes e fui atrás dele, deixando sozinho meu velho e bom Carlito, que, àquela altura, cofiava a barba e acendia um cigarro. Fui de caso pensado: precisava conhecer o “instrumento de trabalho” daquele endiabrado centroavante. Minha irmã, por exemplo, pagaria uma boa grana por qualquer informação relacionada à parte não pública de seu mais que ídolo.
Chegou a pizza. Como é boa a pizza paulista. Olha o absurdo, a crônica já alcança sua metade final e ainda não contei que estava em São Paulo, compartilhando a mesa com duas escritoras que conheci por intermédio de outros amigos. Duas joias raras que pela primeira vez eu via, pois até então havia tido apenas contatos por correio eletrônico. Com a chegada da pizza, a prosa deu uma meia trava. O garçom nos serviu, cortamos os primeiros pedaços, que, comidos, levaram-nos a suspiros e estalos de línguas, essas reações típicas de quem celebra o prazer do paladar.
Enquanto degustavam a pizza, teriam pensado em como seria o chico do Chico? Vou saber! Minha ida ao banheiro atrás do craque tinha como pressuposto que todas as mulheres se interessariam por tamanha informação. A começar por minha irmã.
Quando entrei no banheiro, Chico não usava o mictório, estava fechado no compartimento do vaso sanitário. Por isso, não vi nada do extraordinário ou do não extraordinário. Havia visto, em campo, suas canelas finas e avermelhadas, marcadas por algum joão truculento e pouco habilidoso com a bola. Era tudo.
Sei que a história é decepcionante. Mas não posso contá-la de outra forma, mentir, dizer que vi o que não vi. Não sei o que você, leitor, sente ao lê-la, mas minhas amigas —  em nome de uma relação que queremos perene — foram educadas, extremamente educadas: não reclamaram, não me deram vaia, pediram até para eu escrever sobre aquela manhã futebolística.

Obediente, fiz o que me pediram, contando tudo, tintim por tintim, com um grau bem razoável de verdade.






(Montagem da foto feita a partir de um "flagra" de Luciana Avellar da Revista Contigo)
(Na concentração: Paulinho, Átila, eu, Gonzalo e Carlos)