Grã, estou no meu quinquagésimo ano de vida e não sei com quantos paus se faz uma canoa ou a cor breve do cavalo branco de Napoleão. Não posso ser catalogado entre aqueles que têm problema cognitivo sério, uma demência de fato. Sou um bocoió com algum grau de periculosidade e outro tanto, maior que o primeiro, se não minto, de inocência e bonomia.
Não saber o sabido por todos me deixa triste, um tom mais triste. Resta-me fugir, não enfrentar na lata a questão. É o que faço — lendo.
Não é loucura? Nesse mundo em que se precisa de tanto suor e trabalho, um chulo como eu lê. Passa horas debruçado sobre livros e, assim mesmo, não é capaz de encontrar neles receitas de canoa ou segredos cromáticos de um cavalo.
A questão, exatamente como dizem os cardeais da objetividade, está no foco. Mas o meu foco não é o mesmo desses caras. Gosto mais de impressões do que de assertivas, de improvisos do que de partituras. Hesitante, acompanho em “Diário de um ladrão”, de Jean Genet (Nova Fronteira), a perambulação de um ladrão, traidor e homossexual não para condená-lo ou absolvê-lo. Não para rir de alguma possível anedota. Ao atravessar o relato de Genet, que se encanta, se apaixona, venera e inveja o marginal, entrego-me amorosamente ao humano — pouco me importa se sublime ou não.
Sou da laia dos que duelam com moinhos de vento (Dom Quixote de la Mancha , Cervantes), ou dos que veem num bigode postiço (Tolo, morto, bastardo e invisível, Juan José Millás, Nova Fronteira) a chance de dar o próprio grito do Ipiranga, libertando-se assim do incômodo de certa existência. Levo na cara como Quixote e o tolo porque tergiverso quando deveria agarrar-me à retidão dos sentidos. Sou o da contramão, vagabundo meu nome.
Deitando os olhos nos livros cuja leitura me dá à mancheia lição sem pedagogia, o que aprendo, ou, com sorte, apreendo — com quantos paus se faz um breve napoleão — vale no máximo o pio de um entre mil pardais que algazarram pousados em fios elétrico de uma cidade qualquer — a minha, por exemplo.
Abraçado ao que ora descrevo, pergunto ao deus dos idiotas: onde isso vai parar? Ele, sábia divindade herege, dá de ombros e aponta um livro como se dissesse "é lá". O ciclo reinicia. Cavucoleio tal livro para não encontrar resposta. Minha sina é o movimento, faço par com a procura.