29.11.11

Em Passos


Estou com os pés nos 50 anos. Na realidade, quando esta crônica for lida, já terei a metade de 100. Se é muito ou pouco, não me interessa. Sei que vivi muita coisa, tive ilusões, incertezas, decepções, alegrias, tudo isso, como é da vida e de todos.
Chego aos 50 sem nenhuma vontade de comemorar a data no estilo bolo e velas. Nunca gostei. Prefiro, no dia, jantar com a família. Isso não quer dizer, todavia, que não festeje. Festejo sim.
Desta vez, por exemplo, o início dos festejos se deu em Passos. Foram, depois de um ano longe da cidade, três dias de folia. No dia 11 do 11 de 2011, relancei, no Bule Verde — espaço cultural que é sonho mais que sonhado do Paulinho Buldog  —, meus três livros. Bem, para isso, o pessoal do Bule armou uma noite daquelas, com congadas, música com os Jerônimos, perfomance. Isso tudo se já não bastassem o espaço em si, as peças expostas nele e sua arquitetura. Não, mas não acaba aí. Além de amigos e parentes, estiveram lá para conversar comigo pessoas de alguma forma especiais para mim, entre elas (não fiquem com ciúme os demais, se não os nomeio), o Sebastião Borges, sapateiro das antigas, homem que carrega a memória da língua do sapateiro e outras tantas, as quais poderíamos chamar de história da cidade.
Praça da Matriz, foto própria (2009).

A festa continou no outro dia, quando eu e meus amigos de adolescência nos reunimos, pelo terceiro ano consecutivo, para celebrar nossa amizade. Talvez tenha sido a reunião com o menor número de pessoas, mas, ai, ai, ai, ninguém nos tira o amor que sentimos uns pelos outros. Este ano tínhamos a dor da perda do Piccirillo, mas conseguimos fazer dela um fato a mais para ganharmos força e seguir adiante. Tem de ser assim, e assim tem sido e será.
Olho para o final de semana e reafirmo o que talvez já tenha dito por aqui: há algo raro em minha cidade. Não sei a palavra que possa defini-lo nem ouso inventar alguma. Apenas digo que essa raridade é feita de coisas simples. Do sotaque. De nosso português não muito chegado a plurais. Do tempero nem muito quente como o baiano, nem muito frio como os sugeridos pelos nutricionistas zelosos com nossa saúde. Da música triste — não, nada de tristeza, não é isso, estou enganado. A música dos pretos das congadas nos carrega para a proximidade de Deus, talvez com muito mais eficiência do que as orações, católicas ou não.
Claro, nem tudo foram flores, e eu cometi uma rata e tanto. Fui pro microfone do Bule Verde recitar um poema meu, publicado no Suplemento Literário de Minas Gerais, e engasguei, esquecendo seus versos bem no meio. Para tentar salvar minha pele, reproduzo o poema. E me despeço. Vou ali viver meus 51, que, dizem, é uma boa ideia.

 Looking for others
                                                                                  Para Bia Werneck
Meu coração mineiro
Ante a poluição de São Paulo
Sente, como quem traga traças,
A solidão sólida de correr aflito
Avenidas adentro, entre gigolôs e maníacos,
Procurando, procurando, looking for...
Teu nome em outdoor é lavanderia,
E sou a acidez da cidra crua,
Enquanto a rua espalha medo.
Atravessá-la e socorrer-me ou
Paralisar nádegas pulmões?

Meu coração mineiro,
Longe das montanhas, em desabrigo,
Treme, como gelatina gelada,
Ao deparar o olhar cego
Comendo com as mãos
Outros, outras, others...
Teu nome no disco é música,
E sou marginal moda de viola,
Enquanto a rua espelha o meu medo.
Atravessá-la e socorrer-me ou
Paralisar pés rins?

18.11.11

Nas Quebradas da Vida


Vamos, confesse aqui para o seu amigo, você já namorou em uma quebrada, não foi? Sua mãe não precisa saber, prometo sigilo, e seus filhos, se você os tiver, sabem o que é estar quebrado, mas não sabem o que é uma quebrada. Vamos, amigo, amiga, contem aqui no meu ouvidinho, sem medo, sua história.
Com o advento do motel, as coisas mudaram. Por um lado, ficou mais fácil namorar, por outro, não. Se chegar a um quartinho todo arrumado e desfrutar dos doces momentos da vida é uma beleza, chegar ao motel nem sempre é trivial. Às vezes, o casal tem o carro, mas está sem grana. Às vezes, tem o carro, tem a grana, mas a cidade é pequena e o porteiro é conhecido de um tio, do pai.
Nessas horas difíceis, dar uma meia-volta na modernidade e aceitar a única opção possível é o que nos resta. Pois, quando um casal fez o pacto do encontro, se não for no conforto de um quarto será no Fusca. Ah! O Fusca. Quanta ginástica, meu Deus. Muitos dos problemas de coluna que temos hoje se devem aos movimentos que fomos obrigados a fazer dentro de um Fusca. Por amor, é claro. Até o amor, que não tem contraindicação, tem efeitos colaterais.
Todos sabemos, entretanto, que as quebradas têm lá os seus perigos. Mesmo em cidades pouco violentas, sempre há um espírito de porco doido por assustar alguém. Comigo já aconteceu de ser a própria polícia a me pegar no flagra. Sorte que foram compreensivos e fizeram vista grossa à minha tentativa de corrompê-los — quer dizer, não aceitaram os meus minguados 5 contos — e nos mandaram, a mim e à namorada, dar o fora da área. Que não se repetisse aquilo outra vez, senão... Com outros amigos foi pior. Uns bandidos os deixaram nus com a mão no bolso — não é exagero. 
Se para o amor a quebrada foi deixada de lado, servindo apenas como a última opção, para coisas ilícitas, ela passou a ser o quente. A moçada corre aqui e ali para enrolar seus baseados; o lado A e o lado B de uma transação fora da lei marcam encontro no mais escondido dos lugares. E por aí vai. A quebrada mudou da água para o vinho; ou melhor, deixando a citação bíblica de lado: não é mais cantinho do amor, mas escritório de negócios escusos.
Todavia, a grande transformação da quebrada ocorreu lá em casa, já vai um tempo, quando meus filhos mais velhos tinham não mais que dez anos. Estávamos recebendo amigos. Os adultos ficamos na sala, sorvendo um bom vinho, beliscando queijos e pães. As crianças espalharam-se pelo resto da casa, pulando da cozinha para a sala, da sala para um quarto e deste para outro. Era uma farra medonha. Para nós, os coroas, estava tudo bem, as crianças gritavam, mas a gente conseguia botar a conversa em dia.
Numa certa hora, resolvi pegar um CD no meu quarto. Eis a surpresa: escondido entre o guarda-roupa e o armário em que estão trancados meus preciosos CDs, o que eu vejo? O Ken e a Barbie transando. Sim, caro leitor, estava lá o namorado da Barbie, aquela boneca bonitinha, mas sem sal, deitado sobre ela.
Tudo bem, os dois são só bonecos, e meu quarto não é um matinho providencial. Mas, nestes tempos em que o ser humano transa por computador, aquela foi realmente a mais explícita das cenas de sexo. Não tive vontade, leitores, de repreender os meus filhos. Pai de primeira viagem, não acreditava em repressão sexual pura e simples. Hoje, com filhos na casa dos vinte anos, não me arrependo. 
Não posso negar, entretanto, que fiquei pasmo, sentindo o mesmo assombro que nossos pais teriam sentido quando éramos nós que crescíamos. Talvez um pouco mais: precocemente, intuí que meus próximos passos seriam dados dentro de um túnel, dentro da escuridão que a estúpida responsabilidade nos impinge. Assim tem sido, e não sei avaliar se estou me saindo muito bem.