23.12.11

Guia gastronômico para quem tem fome de quê


Os Titãs foram, a meu juízo, a porção mais rock’n’roll das plagas tupiniquins. Os meninos tinham atitude e davam voz aos inconformados — rebeldes com causa, não outro qualquer. Eles gritaram, no quarto disco (“Jesus não tem dentes no país dos banguelas”, 1987), o famoso refrão: “Você tem fome de quê?/você tem sede de quê?” (Comida, de Marcelo Fromer, Arnaldo Antunes e Sérgio Brito).

Para essa espécie de famintos e sedentos, preparei um pequeno guia gastronômico.

Foto capturada bem aqui.
Tira-gostos existenciais extraídos da lama do dia a dia são encontrados por aqueles que frequentam o pôr do sol. Não com pretensão única de contemplá-lo, mas, sim, de se confundir com ele, passando a ser, mesmo não sendo (impossível sê-lo), um dos fiapos do sol que tocam as águas do rio ou do mar.

Para sede de justiça, um happy hour no qual são engolidos litros de indignação. Toma-se dela um gole para esquentar o peito e ativar a mente. Trago compartilhado de tal maneira que, ao fim e ao cabo, não reste mais indignação, e a garrafa vazia esteja embalada na velha e boa esperança.

O falecimento nosso de cada dia nos dê hoje e sempre um gole de coragem, pois, quem se regala com o doce da covardia amanhece mais pra lá do que pra cá. Sendo assim, atire-se ao doce mais doce que o doce de batata-doce: o sorriso dos meninos. O melhor deles pode ser encontrado onde menos se espera, às vezes numa lembrança de si mesmo.

Na dobra noroeste do desejo, vende-se o que, na mente dos carrancudos, não passa de ilusão. É boa dica de compra para fazer acompanhado daquele sujeito — do poema de Pessoa (Tabacaria), agora redivivo em romance de valter hugo mãe (“a máquina de fazer espanhóis”, Cosacnaify) — sem nenhuma metafísica. Esfregue nas fuças desse cabra da peste que, sim, isso que não é ilusão tem rosto. Tem nome. Não é metafísica, nem precisa ser, pois é o amor, esse alimento que, cru ou não, é único, porque mata a fome e devora o mal.

Contra sandices mais gulosas que famélicas, a estratégia ideal passa por um mergulho na noite do meu, do seu, do nosso bem. Nela, como cantou Dolores Duran, há “paz de criança dormindo e abandono de flores se abrindo”, temperos para uns e outros, para estes e aqueles. Em noites como essa, babau infortúnios.

Sempre há um segredo que nem mesmo o guia dos guias revela, pois ele cuida de reservar um canto para os iniciados, os críticos, os capazes. Menos por elitismo e mais por necessidade, esse esconderijo é onde ganha corpo o espírito iluminado, capaz de indicar aos outros a melhor sopa, o melhor vinho, o crème de la crème da culinária. Igualmente, no caso da culinária intangível tratada aqui. Não revelo o endereço onde nos reunimos para desfrutar de delícias sem igual, mas adianto: lá a janta é um vento que despenteia o careca, e a sobremesa tira a vergonha daqueles que, no carnaval, sambam com desalento.


Para terminar, um conselho: depois de comido e recomido o pasto sublime, amigo, não resta alternativa a não ser fazer a sesta que nos leve ao sono do sono do sono do sono. Nesse instante, chegamos ao subúrbio de nós mesmos, onde reciclamos o que somos.

Um comentário:

No Osso disse...

Comentário feito por Maria Balé:


Alexandre, esse texto, de uma criatividade cuja existência não se suspeitava, é mais doce que doce de batata doce. E, nas dobras do meu Noroeste, sou toda desejo de ser um dos fiapos do sol que tocam as águas do rio ou do mar. E, no subúrbio de mim mesma, reciclo o que penso que sou. Brilhante o seu texto!

Um beijo, Maria