29.11.12

Alô, é o novo prefeito?


Novo prefeito, velhos problemas.
Novo prefeito, novos problemas.
O homem que se candidatou a prefeito sabe e, é o que se espera, prepara-se para enfrentar toda gama de problemas. (Ninguém entra de gaiato no navio.) Sabe que não basta sair por aí asfaltando ruas, melhorando o sistema de esgoto, disciplinando o trânsito. O bom prefeito vai às calçadas ouvir os habitantes, inclusive os que não votaram nele, e — sem golpe baixo ou interesse espúrio— costurar alianças. A população demandará obras, é fato, mas também matéria de outra natureza. Alguém vai querer saber quem matou a Soninha ou o Pelé dos Queijos. Não é da alçada do prefeito, mas um pinguinho de responsabilidade sobre a questão da violência recai sobre ele. Além disso, somos carne e alma, e esta quer aquilo que, como a própria, seja intangível.  A cultura, por exemplo.
Arco amplo, que vai da culinária à poesia, do modo de falar ou da moda à música, da preservação do patrimônio histórico às festas populares (carnaval, folia de reis, exposição agropecuária etc.), a cultura é manifestação espontânea, mas, para ganhar terreno e tornar-se bem comum, precisa, quase sempre, da intermediação do governo.
No campo das artes, tenho a impressão de que Passos avançou nos últimos anos. Cito alguns exemplos que me vêm à mente. Alguns músicos tocam em locais adequados (Magrão e família, por exemplo). Há grupos de teatro em plena atividade (muitos se beneficiam da reforma do Teatro do Rotary). Há avanços no campo audiovisual, como é o caso do Festival Selton Mello (ligado à FESP), sem contar a incansável determinação do Itamar Bonfim. É possível detectar alguma resistência no campo do folclore. Acompanho no Facebook a mobilização do grupo “Memória de Passos”, administrado por Jesuína Faria, Heliza Faria, Leila Andrade, Sílvia Mendonça, José de Paula Silva e Welfare Joele. Preocupado com a preservação do patrimônio histórico, esse grupo será, ou poderá ser, ou mesmo deverá ser, uma voz política importante nas discussões em torno da municipalidade.
Nas comemorações do aniversário da cidade, foi dado um passo e tanto na incorporação da literatura como evento que transcende as salas de aula ou os encontros de escritores como o Intercâmbio Literário (Hilda Mendonça à frente). A Festa Literária de Passos, a FLIPassos, foi executada com sucesso pela administração derrotada no último pleito. Se a política for levada como disputa de rua, briga de vândalos, o atual prefeito dará as costas ao evento, se prenderá a críticas irônicas e rasteiras e a vida continuará, com perda clara para todos os munícipes. Se fizer política com pê maiúsculo, a FLIPassos será analisada, reformulada (se preciso) e repetida nos próximos anos.

Como acredito na força libertadora (e transgressora, vá lá) da literatura, não sento e espero, trato de pressionar o novo prefeito, o que, do ponto de vista da democracia, é legítimo. Assim, senhor Ataíde, descontinuar a FLIPassos será pisar na bola, pois estamos falando de um evento-investimento, cujos frutos serão colhidos no futuro — futuro próximo. Dando prosseguimento à festa literária (o Governo Federal tem verba para destinar a municípios interessados em eventos desse naipe), todos nós, em breve, nos regalaremos com suas consequências. Pense nisso enquanto cuida das inúmeras outras questões que o aguardam a partir de janeiro. Desejo-lhe sucesso, pois indo bem sua administração Passos poderá vir a ser uma cidade melhor.

7.11.12

Minhas outras vidas



Antes de ser animal, fui coisa. Não na acepção que mãe ou mulher vez ou outra costumam dizer: Esse é uma coisa! Não nesse sentido: fui, de fato, um abajur. Deixei à meia-luz a solidão rotineira das famílias de classe média, enquanto na TV, coisa que nunca fui, exibiam-se, em novelas, as mentiras de um país idealizado. Não posso me queixar, também alumiei pegas de um casal beirando os cinquenta e de guris aproveitando-se da ausência dos pais.
Quebrado durante a mudança de Brás de Pina para Pirenópolis, meus caquinhos juntaram-se noutra coisa. Não fui mais de cerâmica, perdi as funções, o lugar na sala e passei a ser um enxadão. Arei o deserto, cavei terra em fundo de rio, assassinei um infiel. O sangue ficou sempre ali, nunca me lavaram nem voltaram comigo ao batente. Enferrujei ao lado de um catre de palha de um joão-ninguém.
O vigor de enxada levei para meu período de caminhão. Transportei boi, transportei boiada, transportei mercancias de todos os tipos e melancias de um tipo só, podres, desprezadas até por porcos. Fui e voltei. Rateei em ladeiras tímidas, perdi o freio quando o motorista perdeu o medo e acelerou onde não devia. Passei a beber muito óleo e a esfumaçar o mundo com ganas de furar a camada de ozônio. Pum de caminhão faz frente ao de caprino.
Divertido meu tempo de objeto erótico. Ficava esquecido numa gaveta, sufocado por calcinhas e peças indelicadas jogadas ali sem motivo algum: canivete de um tio distante, anel de latão com que o primeiro namoradinho presenteou a menina romântica, cotonete, isso mesmo, até cotonete, vez ou outra usado. Isso era nada perto do momento em que eu saía do armário. Para dizer a verdade, era arrancado de lá e era... e era mais uma vez... e assim tantas e muitas. Uma diversão só. Mimi um dia se cansou de minha virilidade sem fracasso. Como não se dá consolo usado de presente, fui parar no lixão.
Graças à reciclagem, voltei ao mercado ora como enfeite barato, feito à máquina, ora como lantejoula usada no carnaval gaúcho. E ainda como isqueiro que nunca funcionou muito bem. Do antigo vibrador, apenas a parte na qual se coloca a pilha ficou no lixão. E ali ficará, pois não há natureza que absorva esse trocinho de metal.
Quis ser a nave que foi a Marte, porque assim me isolaria desse mundo de coisa ao redor das coisas. Não fui, sobrou o trabalho duro de triturador. Não gostei de liquidificar cenouras e cebolas. Tampouco de ser, depois, carro de fórmula um. Guardo boa lembrança do verão em que fui um ventilador pequeno, que refrescava pouco. Eu me lixava para o calor alheio, gostava mesmo de girar daqui pra lá e de lá pra cá e acho que nunca estive tão próximo da condição de não-coisa: balançava sem estardalhaço, como, no tango, o melhor dos dançarinos. Tive chance de ser abridor de lata dos mais vagabundos. Eu aposto que só esses instrumentos sabem exatamente o que se passa na cabeça de uma pessoa que tenta, cheia de caretas e, por causa disso, cheia de expressões reveladoras, abrir uma lata de ervilha (e quem é que nunca abriu uma lata de ervilha?). Se um dia quiserem conhecer os segredos do mundo, torturem (talvez não seja preciso) um abridor de latas vagabundo. Corram, eles estão em extinção.
O urinol de Duchamp não era outro senão eu. No cotidiano, fui catraca de ônibus. Bola de gude lascada. Forte apache de plástico. Bilboquê. Certa vez, no Afeganistão, fui bola de golfe que um soldado americano mantinha na mochila, segundo ele, para uma eventualidade — que, por sorte, eu acho que por sorte, nunca soube qual era. Como na natureza nada se cria e tudo se transtorna, pelas vias normais de dona Haydée e com a ajuda das mãos do doutor Antônio Carlos Piantino, vim à luz com cinco quilos e seiscentos na Santa Casa de Passos. A partir daí, primeiro minha mãe e depois ficantes, rolos, namoradas e moças de patentes mais altas sempre encontraram motivo para se virar contra mim — “sujeito sem o apetrecho do juízo ou metido a engraçadinho” — e, sem dúvida, afirmar: você é uma coisa. Uma coisa... Finalmente voltei a ser uma coisa, e continuo sendo.

Uma coisinha!

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Na Estante Afetiva de Alexandre Marino, uma leitura de meu "No Osso: Crônicas Selecionadas".
Meus dois últimos livros ("A câmera e a pena" e "No Osso: Crônicas Selecionadas") são encontrados agora na Vitrine de Livros, livraria virtual voltada para a literatura brasileira contemporânea.