7.11.12

Minhas outras vidas



Antes de ser animal, fui coisa. Não na acepção que mãe ou mulher vez ou outra costumam dizer: Esse é uma coisa! Não nesse sentido: fui, de fato, um abajur. Deixei à meia-luz a solidão rotineira das famílias de classe média, enquanto na TV, coisa que nunca fui, exibiam-se, em novelas, as mentiras de um país idealizado. Não posso me queixar, também alumiei pegas de um casal beirando os cinquenta e de guris aproveitando-se da ausência dos pais.
Quebrado durante a mudança de Brás de Pina para Pirenópolis, meus caquinhos juntaram-se noutra coisa. Não fui mais de cerâmica, perdi as funções, o lugar na sala e passei a ser um enxadão. Arei o deserto, cavei terra em fundo de rio, assassinei um infiel. O sangue ficou sempre ali, nunca me lavaram nem voltaram comigo ao batente. Enferrujei ao lado de um catre de palha de um joão-ninguém.
O vigor de enxada levei para meu período de caminhão. Transportei boi, transportei boiada, transportei mercancias de todos os tipos e melancias de um tipo só, podres, desprezadas até por porcos. Fui e voltei. Rateei em ladeiras tímidas, perdi o freio quando o motorista perdeu o medo e acelerou onde não devia. Passei a beber muito óleo e a esfumaçar o mundo com ganas de furar a camada de ozônio. Pum de caminhão faz frente ao de caprino.
Divertido meu tempo de objeto erótico. Ficava esquecido numa gaveta, sufocado por calcinhas e peças indelicadas jogadas ali sem motivo algum: canivete de um tio distante, anel de latão com que o primeiro namoradinho presenteou a menina romântica, cotonete, isso mesmo, até cotonete, vez ou outra usado. Isso era nada perto do momento em que eu saía do armário. Para dizer a verdade, era arrancado de lá e era... e era mais uma vez... e assim tantas e muitas. Uma diversão só. Mimi um dia se cansou de minha virilidade sem fracasso. Como não se dá consolo usado de presente, fui parar no lixão.
Graças à reciclagem, voltei ao mercado ora como enfeite barato, feito à máquina, ora como lantejoula usada no carnaval gaúcho. E ainda como isqueiro que nunca funcionou muito bem. Do antigo vibrador, apenas a parte na qual se coloca a pilha ficou no lixão. E ali ficará, pois não há natureza que absorva esse trocinho de metal.
Quis ser a nave que foi a Marte, porque assim me isolaria desse mundo de coisa ao redor das coisas. Não fui, sobrou o trabalho duro de triturador. Não gostei de liquidificar cenouras e cebolas. Tampouco de ser, depois, carro de fórmula um. Guardo boa lembrança do verão em que fui um ventilador pequeno, que refrescava pouco. Eu me lixava para o calor alheio, gostava mesmo de girar daqui pra lá e de lá pra cá e acho que nunca estive tão próximo da condição de não-coisa: balançava sem estardalhaço, como, no tango, o melhor dos dançarinos. Tive chance de ser abridor de lata dos mais vagabundos. Eu aposto que só esses instrumentos sabem exatamente o que se passa na cabeça de uma pessoa que tenta, cheia de caretas e, por causa disso, cheia de expressões reveladoras, abrir uma lata de ervilha (e quem é que nunca abriu uma lata de ervilha?). Se um dia quiserem conhecer os segredos do mundo, torturem (talvez não seja preciso) um abridor de latas vagabundo. Corram, eles estão em extinção.
O urinol de Duchamp não era outro senão eu. No cotidiano, fui catraca de ônibus. Bola de gude lascada. Forte apache de plástico. Bilboquê. Certa vez, no Afeganistão, fui bola de golfe que um soldado americano mantinha na mochila, segundo ele, para uma eventualidade — que, por sorte, eu acho que por sorte, nunca soube qual era. Como na natureza nada se cria e tudo se transtorna, pelas vias normais de dona Haydée e com a ajuda das mãos do doutor Antônio Carlos Piantino, vim à luz com cinco quilos e seiscentos na Santa Casa de Passos. A partir daí, primeiro minha mãe e depois ficantes, rolos, namoradas e moças de patentes mais altas sempre encontraram motivo para se virar contra mim — “sujeito sem o apetrecho do juízo ou metido a engraçadinho” — e, sem dúvida, afirmar: você é uma coisa. Uma coisa... Finalmente voltei a ser uma coisa, e continuo sendo.

Uma coisinha!

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Na Estante Afetiva de Alexandre Marino, uma leitura de meu "No Osso: Crônicas Selecionadas".
Meus dois últimos livros ("A câmera e a pena" e "No Osso: Crônicas Selecionadas") são encontrados agora na Vitrine de Livros, livraria virtual voltada para a literatura brasileira contemporânea.

5 comentários:

Jacqueline disse...

Cinco quilos e seiscentos gramas? Que coisa! Adorei. Sempre penso na trajetória das coisas, que, mudas, não nos dizem nada sobre por onde andaram. Onde andariam aqueles papéis que joguei fora dois anos atrás? Como naquele filme "Ilha das flores" sobre o tomate estragado e a prova de matemática. Assunto para ambientalistas e Manoel de Barros. E agora vou provar que não sou um robô para poder postar isso!

Pacoblog disse...

Ô Coisinha: muito interessante a abordagem da sua trajetória existencial. E que tudo deriva de uma explosão de Supernova, a única coisa no Universo capaz de criar todos os elementos. Cada átomo saiu de uma delas. Até Deus foi criado por uma Supernova, pois sem ela não existiríamos e, consequentemente, nem Ele. Eu vou escrever as letrinhas aqui debaixo, mas confesso que SOU UM ROBÔ. Sou obrigado a votar, a pagar imposto escorchante e até a viver, pois se quiser encerrar minha passagem por conta própria o seguro não paga (e a família?). Alexandre, um grande abraço e saudade de vocês. Ney Pacobahyba

No Osso disse...

Casal que comenta blog junto só pode ser boa COISA. Somos do mesmo time.
Abraço os dois com saudades. Obrigado pela visita.

Valéria disse...

Alexandre, adorei. Vou lhe confessar uma coisa: eu sou protetora das coisas. Se guardo algo em determinado lugar, junto a outras coisas, e preciso tirá-lo, parece que a coisa grita e tem coro "dos amigos": " não, deixa ele aqui" ... Acabo deixando. rsrsrss Essa coisa é loucura, né?
Eu digo sempre que sou uma bosta. Não pelo significado real da palavra, mas sim por ceder por tantas coisas que me acontecem...
Leio sempre tudo o que escreve. Faço silêncio. Absorvo.
Além de textos interessantes, você escreve muito bem. Parabéns. Um abraço. Ah! Adorei a foto.

No Osso disse...

Valéria, obrigado pela visita, e que visita. Uma visita que deixou muitas coisas boas, e um achado daqueles: "sou protetora das coisas"... muito legal.
Volte sempre, quietinha ou falante, do jeito que preferir.