31.12.12

Duas faces da honra


Não fui adolescente de briga. Meus amigos eram e, até hoje, se orgulham disso, defendem que nossa turma era a melhor de todas no quesito tapas e pontapés. Não era um deles nesse aspecto, briguei uma única vez, assim mesmo o que houve, no escuro da boate, foram duas tentativas de socos de ambos os lados. Eu estava certamente embriagado, devo desculpas ao meu oponente, que, aliás, não sei quem era, apesar de saber por quem eu armara toda aquela confusão.
Antes de entrar na adolescência, aí sim, tive uns ataques de valentia. Certa vez, lá no Beco, mandei enfileirar os meninos e enfrentei um de cada vez. Noutra ocasião, num arranca-rabo com um dos meus melhores amigos, fui dar-lhe um chute, ele segurou meu pé e me derrubou no chão. (Com esse tombo, ruiu meu pendor de lutador de rua.)
Depois da queda, certo de que era um homem, ainda que não passasse de um projeto de homem, exigi, do alto da minha honra, que meu amigo que me aplicara aquele maldito golpe nunca mais dissesse meu nome; eu não diria mais o dele. No outro dia, continuamos com a nossa velha camaradagem, apesar de adotarmos um genérico Zé para nomear um ao outro. Há muito tempo não o vejo, mas ainda hoje penso nele como Zé.
A honra. Que estupidez! Por ela, criam-se segredos absurdos e fica-se preso a uma desavença de infância. Há aqueles que vão além: matam a mulher que não admitiu ficar presa à insatisfação ou o vizinho abusado que fez fiufiu para a filha adolescente do assassino.
Alguns dos Chicos

Além do amigo que virou Zé, a vida me ofereceu outros Franciscos. De cara, nasci ao lado de alguns deles. Meu tio Chico. O primo Chiquinho. Depois, noutros paralelos, Chicos artistas, curtidos de longe. Recentemente, o Francisco Mendes, escritor lá de Belo Horizonte. Houve outro Mendes, o seringueiro símbolo da luta a favor do meio ambiente. Ah, sim, e o Chico Lopes, fazendeiro amigo de meu pai e pai do Armandinho. Não me esqueço do meu melhor professor de economia, Chico Lopes também. Sim, ele mesmo, o ex-presidente do Banco Central que se meteu num escândalo de tráfico de interesse, isso que sói acontecer com alguma frequência em nossa terra tropical. A lembrança do mestre me faz pensar num outro sentido da honra.
Quando falo honra, também estou dizendo lisura ou, mais diretamente, idoneidade. O mundo do dinheiro não raramente é comparado à vida selvagem. Uns devoram outros. Devoram-se porque têm fome de grana, de mais grana, de grana até não poder mais. Nessa luta, se falta lisura, se falta honra, os golpes baixos são a regra; e a barriga dos famintos por dinheiro não enche nunca. Falo dos esfomeados que são uma espécie de tigre de pança sem fundo, obrigados, por isso, a caçar sem trégua. Num mundo assim, o golpe baixo é a regra. Nós, os que nos saciamos com pouco, ficamos espantados. Eles, os tigres insaciáveis, não estão nem aí para o nosso espanto.
A honra, lei sem letra, mantém um compromisso apenas apalavrado. É esse sentido de honra, não aquele fútil do homem que não esquece a briguinha de infância, que falta na selva onde se comem os que almejam a riqueza a qualquer custo. E isso tem feito um estrago tremendo no Brasil que engatinha na democracia.

10.12.12

Olhando para dois lados


O de dentro

Como dar nó numa onda ruim? Nunca surfei, não tenho nem resposta nem metáfora para usar aqui. Assim, o que posso dizer é que o acaso faz das suas.
Situo-os. Dois amigos meus estão passando por problemas de saúde. Estão melhorando, graças à medicina que, realmente, é fantástica, apesar de nos assustar com seus métodos às vezes bárbaros. Não vou falar de medicina, foi só um comentário. O fato é que dor de amigo nos deixa prostrados. Meus amigos hoje são avós, são pais, logo, ao redor deles, há toda uma rede de dependências, no mínimo afetivas, e a doença seciona-a, pelo menos enquanto tudo fica em suspenso, à espera.
Nesse contexto, dia desses, tomei o ônibus de todos os dias. Nele, cumpri meu ritual: sentar, de prefência à janela, colocar a mochila sobre as pernas, abri-la e tirar lá de dentro a leitura do dia; depois, claro, ler até a hora de descer na Lapa, a dois quarteirões do trabalho. Enquanto me acomodava, meus olhos foram espiar a rua. Lá estava ele. Reconheci-o de longe, enquanto caminhava em direção ao sinal em que meu ônibus estava retido. Usava sua touca branca. Quando se aproximou bastante do ônibus, confirmei, era o Egberto Gismonti. Numa rua de Botafogo, transeunte comum, um de nós. No entanto, era Egberto, o Gismonti. Moço do Carmo, que desceu a serra e, graças à música, é do mundo.
Esse foi o acaso que me confortou. Alguém achará estranho a imagem distante de uma pessoa poder confortar outra. No meu caso, confortou. Quer dizer, o que me confortou, de fato, não foi a imagem, apesar de a figura de Gismonti inspirar certa tranquilidade. Há algo de magia nele. O que me deu alento foi a música que minha memória resgatou e, mais do que isso, foi a lembrança de algumas situações ao longo da vida em que duas gotas da música gismontiana deram-me tranquilidade e discernimento para suportar os maus momentos. Gismonti, a música dele, me põe nos eixos. Vê-lo, lembrar-me de sua música e, ao chegar ao trabalho, ouvi-la deixou-me mais tranquilo, esperançoso. Meus amigos ficarão bem, mesmo que isso leve um tempo.

O de fora


Em 2008, o Cordão da Bola Preta, bloco mais que tradicional do carnaval do Rio de Janeiro, foi despejado de sua sede na Cinelândia. Passou um tempo, o governador cedeu ao bloco um prédio na esquina das ruas Lavradio e da Relação. Não tardou muito, o Bola organizou o espaço e, até onde sei, funciona bem. Porém este ano, parte do imóvel recebido desabou e, por sorte, não feriu ninguém.
Circulo por ali todos os dias, pois trabalho na esquina da Lavradio com a avenida Chile, esta uma extensão da rua da Relação. Então sei o que ocorreu depois do desabamento. Sei o quê? Nada. Nadinha. Necas. Nem a Prefeitura. Nem o Governo do Estado. Nem a Defesa Civil. Nem o Bola Preta. Ninguém moveu uma palha para dar um jeito na construção-destroço. A foto a seguir foi tirada por mim mesmo, não faz muito tempo. A situação é esta. Acho que a ideia é que, com a chegada das chuvas, finalmente se produzam as vítimas que o desabamento por si só não foi capaz.
Quero estar errado.
Foto de Alexandre Brandão.