30.3.13

O passado é azul coisa nenhuma


Mamãe ralhava comigo só de pensar nos possíveis amigos mais velhos que eu pudesse ter. Tinha medo de que, inocente, eu aceitasse uma proposta para fazer bobagem com eles. Fazer bobagem era alusão ao sexo, portanto mamãe tinha medo de que os meninos mais velhos (nunca as meninas) abusassem de mim, seu caçula. Naquela época não vinham à tona os casos de pedofilia, mas Dona Haydée era ciosa de sua prole e temerosa de que algo de ruim atingisse os filhos. Nada diferente de outras mães, a não ser o fato de a minha ter sido um pouco mais medrosa que a maioria delas.
Os meninos “grandes” não me fizeram nenhum mal, e pela vida afora, sem trauma, sempre tive amigos mais velhos. Ainda os tenho, apesar de um ou outro já não estarem entre nós. Fazem-me falta, mas morrer é desígnio da vida e conformar-se é imperativo.
O convívio com os mais velhos — não na infância e adolescência, quando, de fato, a diferença de idade não passava de dois, três anos, mas agora, na aurora dos meus cinquenta anos — coloca dois mundos em confronto. O meu, de rapaz do interior de Minas, da década de 1960; o deles, de nascidos em torno de 1940, vindos ou não do interior. No espaço de vinte anos, menos até, o Brasil sofreu uma tremenda mudança, e isso fica patente se me comparo àqueles que vieram à luz durante a II Guerra Mundial, por exemplo. Eles estudaram latim no primário, viveram na pele a ditadura militar e, para não ser exaustivo, sofreram um bocado para transar com a namorada. Nunca estudei latim; a ditadura estava dada quando “virei gente”, portanto sofri suas consequências — uma delas a de ter uma escola menos crítica, mais tecnicista —, mas não fui submetido aos constrangimentos físicos pelos quais passaram aqueles que se voltaram contra ela; e as namoradas da minha geração, nem todas, claro, mas uma grande parte delas, foram mais liberais.
Matuto a respeito de manter amizades como essas. Acho que perduram em grande parte pelo fato de nenhum dos meus amigos “velhos” serem nostálgicos. Deles não ouço nunca, ou quase nunca, a afirmação de que o passado era melhor que o presente. O presente tem o rabo preso com o passado, e eles sabem disso. Acertos e erros atuais foram semeados ontem.

Otto Lara Resende dizia que tudo visto de longe — seja em termos de distância (a terra, pelos astronautas), seja em termos de tempo (o passado longínquo) — é azul. Bela imagem do escritor mineiro, mas, na realidade, o passado é bom porque nele fomos jovens. E, quando se é jovem, tudo é fulgurante. Amamos com intensidade. Não somos moderados ao comer e principalmente ao beber. Como dizia o Renato Russo, vivemos como se não houvesse amanhã.
Os medos de minha mãe foram infundados, e hoje ela se espantaria ao saber que seu caçula passou a ser o amigo mais velho de muita gente por aí. Nessa condição, espero não perder de vista que o azul do passado é apenas o reflexo dos tempos em que fui senhor do mundo.

1.3.13

Rir e chorar


Meu caçula diz que pela primeira vez me viu rindo, rindo pra valer, agora à porta de seus treze anos. O riso fora provocado por uma matéria de Felipe Marra, publicada na Piauí de dezembro de 2012, sobre o comportamento das torcidas de futebol no Reino Unido. Bem, o grave disso tudo foi eu não ter rido durante treze anos. Como pode? Como pude?
Devo explicar a meu Pedro que não comungo de extremos. Quase nada me mata de rir. Tampouco me leva às lágrimas. Coisa de homem desconfiado, cético, sempre com um pé atrás. Homem também (principalmente) ignorante. Sim, sou um ignorante incapaz de rir a rodo. Ou de chorar baldes de lágrimas.
Aqui levo tudo ao pé da letra. Rir é gargalhar, abrir a boca, fechar os olhos, tremer-se todo. Chorar, contorcer-se, fungar, desidratar-se até. Nos dois casos, sair de si. Difícil que eu chegue ali ou lá. Falei em ceticismo, mas talvez seja insensibilidade, incapacidade de me matar (de rir) na piada e/ou de morrer (de chorar) numa possibilidade de tragédia. Burrice emocional.
Preciso dizer a meu filho que não veja em mim um homem duro e pessimista. Ao contrário, acho a vida boa, apesar de tantas coisas estranhas que acontecem por conta de nossa irresponsabilidade. Por exemplo, a morte dos jovens que dançavam na boate em Santa Maria.
A maldição é como me apego com unhas e dentes à razão, ancorado no mar sem eira nem beira da minha ignorância. É grave, gravíssimo. Mas é assim, sou refém desse meu traço.
Dou um cavalo de pau nesta crônica e, à procura de um exemplo que me ajude na explicação ao meu filho, falo do livro do Keith Richards (“Vida”, Editora Globo). O cara é um doidão, todo mundo sabe. Ao longo do livro, ele descreve coisas do arco da velha, algumas devem ser hilárias. São, de fato são, eu que não consigo me entregar simplesmente ao riso. Todos os excessos do cara me deixam um pingo e meio amargo.
E Amor (“Amour”, de Michael Haneke)? Uma amiga, escorpiana como eu, afirmou que somos dos poucos que conseguem ver um filme desses sem abandonar o barco. Ele é duro. A linguagem é dura. Não há, aparentemente, uma linha de escape, os velhinhos estão mais pra lá do que pra cá. (Mas com que elegância percorrem o último caminho!) A atuação dos atores, Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva, não deixa meia-brecha para pensarmos que estão apenas encenando. Está ali a verdade. (Mas é arte, não é vida; é imitação da vida, como se diz por aí.) Não sucumbi à decadência. Vi todo o esplendor do amor semeado naquele casal de velhos, vi, por exemplo, que eles tiveram uma vida sexual boa e saudável. Não me perguntem como vi, mas eu vi. Não dei banana para a tristeza que há na história contada pelo diretor austríaco, mas encontrei motivos para não chorar.