29.5.13

Tá limpo

Do site Bolsa de Mulher.

Gosto de sabão de coco. Sei lá por que razão, mas gosto. Fico chateado quando vou às compras do mês e falta esse item na lista.
É um sabão de múltiplas funções. Com ele, eu lavo o material usado na ginástica. Quando digo eu, sou eu mesmo. Volto da piscina e esfrego a sunga e a touca. E, para isso, sabão de coco, o mesmo com que se pode lavar a louça, embora lá em casa ao detergente líquido de maçã esteja reservada essa função.
Meu barbeiro conta que certa vez recomendou a um cliente usar sabão de coco no cabelo. O cliente chamou-o a um canto e disse-lhe que tinha uma condição financeira razoável, poderia comprar algo melhor. Sujo preconceito.
Nicolau, um colega de meus tempos de Belo Horizonte, lá pelos anos de 1977 ou 1978, só usava sabão de coco em seus longos cabelos. Nicolau, nunca mais o vi. Uma vez levei-o a Passos. Chegamos bêbados e saímos trêbados. Numa reunião na casa de um rolo meu, o Nicolau, em certo momento, se meteu na cozinha para preparar mais um drinque. Que drinque! Nunca vi nada igual antes ou depois daquele dia. Como haviam acabado o limão, a laranja e outras frutas (o próprio coco ou sua água cairiam bem) com as quais se faz uma boa batida, ele misturou a cachaça com leite e Nescau. A combinação não ficou boa, aliás, ficou péssima, mas bebemos tudo até o fim (dela e nosso). Reforço que o sabão de coco aplicado ao cabelo de meu amigo não explica a experimentação insana que fez. Foi a contingência, momento de uma sede transviada.
Na avenida Brasil, um dos principais acessos ao Rio de Janeiro, na altura de São Cristóvão, havia uma fábrica de sabão; de sabão de coco, inclusive. Era algo repulsivo, fedorento. A desindustrialização do Rio poderia ter melhorado a qualidade do ar, mas a avenida continua com cheiro ruim, agora por outra razão: há por ali uma usina de reciclagem de lixo. Atividade louvável a reciclagem, mas o odor...
A empresa de sabão foi desativada faz tempo e o prédio da fábrica sofreu um incêndio no ano passado. Dizem que a prefeitura pretende construir no local uma segunda cidade do samba, ou seja, um espaço para as escolas montarem seus barracões e, neles, prepararem o carnaval. Assim, concluo, o sabão cede espaço ao samba; ou a indústria, à cultura, coisa rara. Resta torcer para que os envolvidos nesse projeto mantenham suas mãos limpas, lavadas ou não com sabão de coco.
O sabão de coco é apenas umas das maravilhas produzidas a partir do coco. Fruto moderno, muito antes de os dias atuais demandarem trabalhadores capazes de desempenhar mais de uma função, já era usado tanto como alimento (doce ou salgado) e óleo quanto como matéria-prima para bijuterias, enfeites e instrumentos musicais. Não é pouco, e só mesmo um desalmado compositor se atreveu a dizer que havia enjoado de um amor, que nem era doce de coco. Iê-iê-iê mais bobo, sô!
Não, nunca lambi sabão, nem de coco. Quando me mandam, e mandam com frequência, desobedeço de cara limpa. Sou dissimulado; assim mesmo, ou justamente por isso, invejo um amigo por afirmar orgulhoso que na casa dele quem manda é a mulher, mas quem desobedece é ele.

6.5.13

Decisões de um fim de domingo


Amanhã, logo cedo, vou escrever uma carta nos moldes antigos — colocarei no envelope e, depois de selada, levarei aos correios — para a Perpétua, antiga auxiliar de minha mãe no Lactário. Direi a ela que sempre gostei do seu jeito calmo e, do mesmo modo, do seu nome. Se eu me chamasse Perpétuo seria um fiasco paternal sem rima alguma, mas nela o nome tomou feições de sublime, artístico.

A Pair of Shoes, Van Gogh

Fugindo de um dos meus princípios, o de não engraxar sapatos para não tirar deles sua história, é provável que, depois dos Correios, eu entre na engraxataria da Rua da Assembleia e encomende o básico: graxa, sem tinta. O sapato é velho, não nego, mas nada de apuro exagerado. Lá — sei porque já fui outras vezes — o engraxate nos convida a subir numa banqueta alta, da qual se vê o mundo de cima. Confesso que fico um pouco constrangido, tanto por me ver em destaque, mas principalmente por ter alguém a meu serviço em posição tão subalterna. Mais uma razão para odiar engraxar sapatos. Mas, é fim de domingo, bom momento para quebrar ao meio certezas arraigadas.
Com os sapatos limpos — ou seja: sem as digitais de minha história recente (os sapatos duram pouco e guardam, quando muito, um cisco de nada de nossas vidas) —, sentarei numa praça. Uma mulher bonita há de passar por ali, então, planejo de antemão, olharei para ela com todo o respeito possível. Nas suas formas caberão tão bem as minhas! Mas evitarei esse caminho do desejo e trilharei outros. Se ela tiver pedigree de moça bem-sucedida, cujos estudos em boas escolas deram-lhe o emprego cobiçado por um a cada dez jovens no mundo, pedirei a Deus na sua infinita bondade que a poupe de despautérios, que não a faça viver momentos de decisões amargas, muitas vezes cruéis. Que não se coloque em sua vida, por exemplo, financiamento de guerras, maracutaias empresariais, canalhices dessa ordem.
Posso evitar a praça. Sair do engraxate, tomar o rumo do antigo Cais Pharoux, ali embarcar numa balsa para Niterói e, lá, encostar-me a um balcão de um bar qualquer. Provocarei o atendente, dizendo-lhe que consigo lamber o cotovelo enquanto pulo num pé só. Decerto ele estará cansado de fregueses tão sem-noção e, automaticamente, se debruçará sobre o balcão a fim de ver o espetáculo. Eu, que desconheço quem tenha essa dupla habilidade, recorrerei a um escancarado blefe para forçar uma simulação. Quando terminar, raciocinarei que cometi um ato vil, desrespeitoso, mas será tarde, restando apenas o consolo de culpar o domingo por decisão tão disparatada. Como forma de compensar o rapaz, disposto a pagar o dobro do preço registrado no cardápio, pedirei um caldo de cana e um joelho. O joelho fará com que me lembre do cotovelo e acabarei rindo, o que poderá deixar o balconista severamente chateado.
Se sair ileso de Niterói, terá chegado o momento de trabalhar. Ou já até terá passado. Neste caso, farei uso do banco de horas, essa invenção das empresas para cobrar nossos atrasos e não pagar nosso excesso de horas trabalhadas. No escritório, não sei se notarão o lustre de meus sapatos. É possível que um ou outro brinque com o fato, insinue que estou de olho em alguma moça nova, coisa ridícula e corriqueira que acomete homens de meia-idade. Darei de ombros, mais interessado em contar da Perpétua à turma. “Foi uma paixão?”, perguntarão curiosos. Quando lhes disser que não, Perpétua é apenas um nome bonito para identificar uma moça amável que trabalhou com minha mãe há uns quarenta anos, ficarão decepcionados. Não me restará alternativa a não ser a de confessar-lhes que, não faz muito tempo, assisti a um milagre. “Verdade?”
Sim, vi uma senhora na casa dos oitenta anos cair de uma altura de dois metros, dar uma cambalhota no ar e pousar no chão sem sofrer nada além de uns pequenos arranhões. Não é um milagre? Na segunda-feira, contarei isso aos que não creem nas leis da física.

3.5.13

De volta ao miojo


Numa prova do Enem, um rapaz, não de todo bobo, ao escrever sua redação sobre a questão da imigração tascou, entre raciocínios que capengavam com sujeitos separados de verbos por minúsculas vírgulas, uma receita de miojo. Ferva a água, jogue a massa e o tempero, espere três minutos e pronto! Assim mesmo. O encarregado de corrigir a redação não achou nada de outro mundo e deu ao rapaz uma nota razoável.
Mal começou a circular a notícia, os batalhões dos apaixonados por todas as causas começaram a duelar. De um lado, os que viram no fato o fim do mundo. De outro, os que contemporizaram e disseram que, numa perspectiva menos rígida, a coisa não seria tão terrível assim. Poetas, como o meu xará Alexandre Marino, consideraram poética a atitude do rapaz — de fato, é.
Alphabet Soup Talk

Parei de acompanhar o bafafá quando os linguístas saíram da toca e entraram na luta. Ao prender-me a questões eruditas, perco horas que podem ser gastas na vagabundagem, tempo suficiente, por exemplo, para fazer uns quinze miojos e umas três redações sem grandes erros. A gula e a pretensão são meus pecados interioranos.
Bem, não posso ficar aqui dourando a pílula, que, aliás, nem sei se teria uma receita própria para ser dourada. Sou A? Sou B? Sou da laia dos poetas? Respondo assim: grã, foi engraçado, mas é triste.
Foi engraçado o bafafá todo, a inteligência daqueles que, diante da jogada arriscada do candidato, saíram em defesa da lógica menos cartesiana, a mesma que rege o texto literário. No limite, seguindo esse raciocínio, o garoto tirou uma nota baixa.  
É triste, e cozinha meus miolos, o fato de o Enem, que está sob a supervisão do MEC, colecionar mais um desacerto. Não bastou o vazamento das provas na época em que Haddad era o ministro. Agora não é a redação do rapaz, nem seus erros, muito menos sua nota, mas o fato de o MEC não sair em defesa dos critérios das provas que aplica, preferindo acenar para a mudança deles, que passariam a não permitir brincadeiras como as do miojo ou a do hino do Palmeiras, incluído em outra redação.
Ou seja, se o rapaz não é um alienado e ignorante, mas um cáustico humorista, a vida para ingressar na faculdade não será fácil. O governo decidiu, numa canetada e atônito diante da pressão da mídia e das redes sociais — e sem ouvir os poetas, aliados do momento—, sangrar o bom humor. Não adianta ter simpatia pelo Haddad e pelo Mercadante, os fatos jogam contra eles.
O jovem no futuro chorará no ombro da história, nostálgico do tempo em que quem sabia uma receita de miojo era douto. E como de douto pra doutor falta um errezinho de nada, coisa que sempre se acha nessa sopa de letrinhas que é viver no país da bagunça cotidiana, ele, coitado, terá chegado atrasado à festa. Aí não adianta bom humor. Nem chorar sobre o leite derramado.