4.8.13

Torcedor acanhado

Senti falta de negros na torcida durante a Copa das Confederações. Meu amigo, o Alberto Mattar, reclamou da ausência do torcedor desdentado, com radinho de pilha colado ao ouvido. Eu e o Beto não somos apenas uns nostálgicos empedernidos, ao contrário, nós, como muitos outros, captamos o aspecto excludente do evento. A ausência do negro ou do desdentado significa que à camada mais pobre da população não foi franqueada a entrada nos jogos. Uma pena, principalmente porque o País tem se empenhado em diminuir algumas de suas diferenças mais abissais, como a de renda, por exemplo. E mais pena ainda: o futebol é o esporte queridinho dos brasileiros, ricos ou pobres.
Imagem retirada deste site.

Em maio de 2010, Daniela Pinheiro, numa matéria para a revista Piauí, questionava as benesses de uma Copa do Mundo, tomando o caso da África do Sul, onde discussões parecidas com as que travamos hoje aconteceram. Em seu artigo, ela diz: “Quando a Fifa alardeia que os estádios devem estar lotados, portanto, é mais uma questão de estética de show do que financeira. O lucro da entidade em nada depende da venda de ingressos, mas para o sucesso do espetáculo as arquibancadas precisam estar cheias. ‘É o que o Berlusconi disse: o futebol ideal vai ser o dia em que a torcida receber para estar no estádio e se comportar exatamente como uma claque de auditório de um programa de tevê’, comentou Alvito“ (antropólogo Marcos Alvito, da Universidade Federal Fluminense).
Se essa é uma questão estética, o pobre não coaduna com os padrões de beleza definidos justamente por quem não é pobre — e é quem manda na Fifa, na televisão etc. e tal. Portanto, o que se vê é o seguinte: o país que aceita sediar a Copa do Mundo aceita cumprir todas as exigências da entidade. E essas funcionam como se, durante os jogos, uma área do país fosse extraída dele, passando a ser de responsabilidade da Fifa. De responsabilidade não, pois a Fifa faz as exigências, mas não arca com os custos delas. A segurança, por exemplo, é garantida pelas polícias nacional, estaduais e municipais.
Estive no Maracanã para ver um dos jogos da Copa — a festa dos dez a zero da Espanha sobre o Taiti. O estádio está confortável, vê-se bem o gramado de todos os cantos. Os banheiros são bons e havia sempre alguém cuidando de sua manutenção. (Vejamos como funcionará a coisa em jogos dos campeonatos nacionais ou estaduais.) Enfim, ainda que possamos ter saudade do antigo, o de agora responde bem aos anseios de inovação.
Não vou tocar na questão de custo e corrupção porque, em relação aos custos, todo mundo sabe que foram exorbitantes e, no caso da corrupção, como brasileiro e mineiro desconfiado, não boto a mão no fogo por ninguém, mas não tenho elementos para dizer se houve ou não.
Sei que tudo que esteve e está fora dos campos de futebol (que, diga-se de passagem, não é novidade) fez de mim um torcedor acanhado. Não fui o único, ouso dizer. Como o Brasil estava em alvoroço cívico, gritando aos quatro ventos a frustração com uma pá de coisas, paralelamente à Copa das Confederações — e até por conta dela –, o grito de gol encontrou resistência numa garganta que pedia passagens mais baratas, escola de melhor qualidade, saúde para todos. Minha torcida desbragada está em virar o jogo das mazelas brasileiras.

A verdadeira festa junina

A polifonia das ruas zumbe e zumbirá por um bom tempo nas dobras do País. Esqueça o vandalismo e pense: um sopro só e os políticos se mexeram. No Congresso votaram projetos guardados nos armários havia séculos. A presidente viu entrar por sua sala uma pauta com a qual não contava. Todos sabemos que as reformas política e tributária, entra governo, sai governo, não passam de assuntos tratados nas campanhas eleitorais, se tanto. 
Como não somos burros, não comungaremos a unanimidade das ruas por muito tempo. Nem tudo que quero para o País meu vizinho quer. Quero andar num ônibus confortável, ter metrô de alcance compatível com o tamanho da cidade em que vivo, ele quer lugar na garagem para mais um carro. Ele quer estourar o Maracanã, eu, poder assistir meu futebol em paz. Teremos pensamentos distintos em relação à ideia de cura dos gays, ao lugar que devem ocupar as igrejas nos espaços público e representativo.
Nossas manifestações arranharam a importância da política, dos partidos. As mudanças que estão sendo demandadas (multifacetadas e nem sempre convergentes) dependerão da política — portanto dos partidos. Esse atrito abre espaço para experiência de exceção? Sim, claro, mas também pode reforçar os protocolos da democracia e, por conseguinte, a própria democracia.
Acredito que nossa trajetória recente — viver a ditadura, superá-la, entrar na democracia, viver sob o comando de aventureiros devidamente expulsos do poder e, depois, ter governos menos distantes dos anseios populares (PSDB e PT), ainda que reféns do jeito ancestral de fazer política em nossa terra — nos fará optar pela democracia. Então será fatal reforçar os partidos, dar cor bem definida a cada um deles. Essa tal reforma política, de um jeito ou de outro, terá de vingar.
(Faço um ato de fé, agarrando-me ao meu otimismo atávico.)
Antes de terminar, dedico duas ou três palavras à questão do vandalismo. Acredito que houve aquele incentivado por forças retrógradas, mas também houve o espontâneo. Houve, no abuso das polícias, o vandalismo de farda (uma pequena passeata iniciada em Bonsucesso terminou com um verdadeiro massacre, comandado pela polícia do Rio de Janeiro, na favela da Maré).
Partindo desse ponto de vista, minhas palavras serão voltadas aos vândalos espontâneos. No muque, no furto, na destruição, não dizem nada? Dizem, ora se dizem. Eles dizem que há uma fatura não paga. Não bastam as bolsas isso e aquilo — boas, sem dúvida nenhuma —, mas é preciso agregar algo que as mercadorias por si só não são capazes de satisfazer. Há um desejo de inclusão, que, muitas vezes, não passa de uma demanda básica, como é o pedido de saneamento (e não de teleférico) na Rocinha. Aliás, a passeata que saiu da Rocinha e engrossou no Vidigal, a meu juízo, foi o momento máximo de todo esse movimento. Quebrando todos os estereótipos, nenhum ato de vandalismo. Ao contrário dos vândalos espontâneos, estes souberam dizer muito bem.
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