9.10.13

O bichano experimental

O gato que não tenho teme o Zorro, o cachorro que eu já tive. O temor não tem a ver com a possibilidade de ser devorado pelo cão, já que o tempo de suas existências é distinto: um viveu ontem, o outro, o gato, talvez viva amanhã. Não sendo temor físico, só pode ser ciúme. O gato que não tenho quer que todo afeto que devoto aos animais seja dele e que ele não corra o risco de me ouvir dizendo: o Zorro, sim, era o bicho. O gato que não tenho é um absolutista.
O gato é gato porque tem olho de gato. Um gato sem olho de gato gato não é — embora uma rodovia com olho de gato não seja um gato. (É mais ou menos a mesma história contada por Mary França e Eliardo França — “O rabo do gato”, Editora Ática —, só que, na visão deles, o rabo define o gato.) O gato que não tenho tem olhos azuis tão intensos que a cor, como a batatinha quando nasce, se esparrama por toda a extensão do seu corpo. Seu pelo branco parece azul. Seu focinho é azulmente triste.
O gato que não tenho gosta de unhar a porta, de arranhar as paredes e de rasgar o tecido do sofá. Quando se entusiasma, destrói porta, parede e sofá, mas, em contrapartida, perde as garras (por um tempo). Resta-lhe o bigode, que passa a exibir como símbolo fálico. No caso do gato que está por nascer e que, depois de nascido, poderá ser meu, seu bigode (preto, mas com halo azul) vive eriçado, e ele roça seus fios por todos os cantos da casa. Menos no terreno da gata que não tenho nem terei para evitar a procriação e o problema de distribuir gatos entre amigos.
Em vez de jantá-los, o gato que não tenho gosta de sair com ratos, dar umas bandas esgotos afora. Além de franquear minha casa à visita de seres tão asquerosos, no fim das farras, ele volta sujo e esfarrapado. Em tom de ironia e ameaça, digo-lhe que até mesmo sete vidas se consomem com alguma rapidez. Ele então me confessa que já queimou seis das sete e veio para morrer comigo. Em seguida, com calafrios e olhos púrpuros, o gato que não tenho ataca, com as unhas, uma fileira de poeira e rói o silêncio matutino de nossa casa.
Quem disse? Não sei. Drummond? Talvez. Mas ouvi que os gatos se acariciam em nós e não aceitam que nós o acariciemos por nossa vontade. O gato que não tenho age desse modo, sem tirar nem pôr, e, assim como vem, vai. Se arrisco um gesto espontâneo em sua direção, ele me morde. O que faz lembrar seu parentesco com tigres-de-bengala. Aliás, o bichano sonha se encontrar com os poucos tigres-de-bengala ainda existentes no mundo e não entende, por mais que eu explique, a existência de um valão oceânico que, ao separar a América da Ásia, estabelece a lonjura. Ser nascido depois da internet, todos os lugares, para ele, são o mesmo sítio pontocom. Como não bastasse sua dificuldade com latitudes e longitudes, os tigres não respondem suas mensagens no facebook, com o que ele sofre uma frustração cavalar e passa a falar mal da família.
Há uma relação amorosa entre escritores e gatos, que se explica, segundo certa hipótese, pelo fato de ambos serem solitários; pode ser, mas acho que a razão é outra. O gato é excelente revisor, e não há escorregada gramatical que lhe escape do olhar (azulado em alguns casos). Na língua do gato, os próprios advogam, não se comete erro. Talvez seja verdade, mas acredito que, na base do miado, ninguém consiga registrar um delírio causado pela larica de uma dor profunda. Como esse que arrisquei fazer agora.
Feito por mim. Mais experimental impossível.


1.10.13

De enfiadinha

Dia desses, no Facebook, falei uma mentira. Disse que, desde que lera e relera no mesmo instante um livro de Nabokov (Machenka, Companhia das Letras), só agora, ao ler “O que deu pra fazer em matéria de história de amor” (Companhia das Letras), de Elvira Vigna, voltara a ter experiência similar. Na realidade, essa de dar duas leituras assim de enfiadinha havia me ocorrido um pouco antes com livros de dois amigos meus. Um do conterrâneo Alexandre Marino (Exília, Dobra Editorial) e o outro do também mineiro Sérgio Fantini (Novella, Jovens Escribas).
Foto de Alexandre Brandão.

O que leva um sujeito a ler duas vezes em seguida um mesmo livro? Ou encanto ou assombro. Encantado, é impossível abandonar o livro. Assombrado, é imperativo voltar a ele para, de fato, compreendê-lo ou decifrá-lo — e ser, enfim, devorado por ele.
A releitura de Nabokov esteve ligada à questão do assombro — li e reli, confesso, por não entendê-lo na primeira leitura. Se não estou enganado, já que busco na memória algo acontecido há muitos anos, não é um livro fácil. Do mesmo Nabokov, é melhor ler “Lolita” (Alfaguara Brasil).
Nos casos de Fantini e Vigna, a questão tem a ver com o encantamento, mas, como escritor, a releitura foi também um golpe baixo, quer dizer, tentei decifrar, na segunda visita, os truques dos nobres colegas. Fantini, por exemplo, é dono de um texto enxuto, mas de um enxuto comparável ao sujeito magro de nascença, daqueles (não sou eu, mas foi meu pai) que passam a vida sem saber o que é gordura. Assim, meu amigo de Belo Horizonte, ainda que trabalhe muito para ter o texto pronto e seco, não deixa vestígios de seu bisturi no que escreve. Seus contos estão de um jeito que parecem ter sido desde o nascimento. Assim especialmente nesse “Novella”, livro de narrativas curtas, que flertam com a poesia.
Já Vigna nos conta uma história que a própria personagem e narradora conhece, digamos, de ouvir falar. Isso não seria nada surpreendente se ela não se agarrasse àquela história como forma (quase) única de estruturar a própria vida. Ela relata a vida de seus sogros, se é que os pais de um parceiro com quem vive e deixa de viver com certa frequência podem ser chamados de sogros. Bem, ao narrar e confrontar-se com a história contada, a personagem (sem nome) vai fazendo o que dá em matéria de história de amor com seu homem, que talvez não seja filho do pai dele e que é pai, sem saber, do filho dela. Vale situar o período histórico da narrativa, pois, me parece, ele é fundamental: começa, no período da Segunda Guerra, com a migração de uma família judia, a do sogro, da Alemanha para o Brasil, passa pelo período da ditadura militar e desemboca nalgum momento mais recente, no qual, por exemplo, a AIDS já tinha dado a sua cara e feito suas primeiras vítimas. Seja como for, para quem associa literatura feminina a Clarice Lispector, um conselho: interne-se numa clínica e desintoxique-se antes de ler Vigna. O feminino são muitos, destaco e teclo sem motivo aparente o óbvio.
Resta meu xará, Alexandre Marino, dono de uma poesia que me encanta e me assombra. Para falar dele (ou da própria poesia), tenho de confessar uma idiossincrasia: nunca dou por terminada a leitura de um livro de poemas. Se me perguntam se já li um livro qualquer de poesia, mesmo que já o tenha lido, respondo que não, que não li, que estou lendo. Por que tamanha sandice? Ora, porque os livros de poesia são como a Bíblia ou o Alcorão, leitura para a vida inteira, portanto interminável. Se agora eu confesso que li e reli o Exília de enfiadinha estou apenas anunciando o início do embate. Voltarei ao livro, hoje ou amanhã, ou hoje e amanhã, para reencontrar “Os pássaros de Bagdá”, poema que diz que “ninguém pensou nos pássaros de Bagdá,/desafios canoros/que os ditadores ignoram”. Antes do poema estive entre os que não pensaram nos pássaros — nem nas baratas, nem nas árvores que velam os generais mortos em combate.