28.2.14

Da noite pro dia

Enquanto ouço o “Viralatas de Córdoba”, de Ademir Assunção & Banda Fracasso da Raça, reparo num sujeito que passa bem na minha frente. Eu o conheço embora não saiba seu nome. Nunca trocamos palavras um com o outro. Até aí, coisa nenhuma, mas acontece que ele envelheceu da noite para o dia. Ontem, bem, não era um jovem, mas não caminhava nem nas franjas da velhice na qual se meteu na última manhã.
Algo o levou a esse estado. Pode ter sido um golpe baixo da vida, um sofrimento que o tomou por dentro, de forma silenciosa, como quem não quer nada. Doença? Não parece — pelo menos não uma doença física. Sua velhice precoce anda envolta em sete véus. Está ali, não se esconde, tampouco se mostra às claras.
É uma velhice filosofal. 
Velhice filosofal? A que nível de cretinice cheguei. O cara acorda velho do nada, e eu nomeio filosóficas suas rugas. De certo pensando em uma velhice que sempre esteve ali, a ponto de explodir. Dia a dia, ambos negociavam, e ele conseguiu até recentemente mantê-la longe dos outros. Um dia, cansada do ostracismo, a velhice deu-lhe o golpe e saiu do armário.
Não, não pode ser assim. Essa velhice, exibindo-se com certa volúpia, é um calo provocado por arranhões e trombadas, nasceu de um soco — por dentro — no estômago. Efeito de enfrentamentos que minha vista, acostumada a contemplar sem mais um homem que de vez em quando cruzava meu caminho, não alcança.
Se não tenho qualquer espécie de intimidade com o envelhecido, nem mesmo aquela reduzida a uma troca de “oi”, tenho de ficar preso a especulações. Isso? Aquilo? Lembro-me de dona Rosa. Ela ficava à janela contemplando as pessoas que passavam defronte a sua casa e chutava o destino de cada uma delas: aquele ali está atrasado para o ônibus das quatro; aquele outro, sacola na mão, tem de passar no açougue e levar a carne a tempo do almoço. Assim, dona Rosa se distraía, sem nunca confirmar suas suspeitas. De meu lado, não me distraio, pois não foi um Zé Mané que passou aqui pela primeira e última vez. É praticamente um amigo, amigo de contato fortuito, não declarado, assim mesmo pessoa com quem me encontro com assiduidade, na esquina que nos juntou no mundo. E o amigo, caramba, o amigo ficou velho, velho.
Penso que ele me conhece também. Certa vez, eu e ele olhamos sem cerimônia, — de forma ostensiva, melhor dizendo —, uma moça que passou entre nós. Depois, quando ela se perdeu, eu e ele nos encaramos e rimos. Foi o máximo a que chegamos. É possível que tenha se esquecido de mim. Se não antes, agora que ficou velho. Que envelheceu e eu jamais saberei por quê — e, por não saber, eu também envelhecerei um tanto, assim, de uma vez.

14.2.14

Papai Mamãe [1]


                                                                      

— Cadê o menino?
— Saiu pra matar mendigo.
— De novo?
— De novo.
— Você não acha que isso está indo longe demais?
— Bem...
— Bem o quê?
— Ora, você...
— Eu?
— Sim, você.
— Que que eu tenho com isso?
— Você incentivou ele.
— Incentivei coisa nenhuma. Só dei minha opinião.
— Que é...
— Que esses mendigos são uns párias. Por mim, mandava matar todos eles.
— E isso não é incentivo?
— Isso é opinião.
— Filho não sabe diferenciar uma coisa da outra. O seu tomou sua opinião como ordem. Está lá obedecendo ao papai.
— Até agora quantos?
— E eu lá fico contando!
— Hoje vou conversar com ele. Vou dizer que está bem assim.
— Você acha mesmo?
— Não, não acho.
— Então deixa o menino fazer o serviço.
— Fico preocupado. Se a polícia pega, vai dar trabalho pra livrar a cara dele e a minha.
— Ele sabe fazer direito. Vi uma vez.
— Verdade, você foi logo no início. Ele engatinhava nisso.
— Mas já era bom. Ele tem precisão e sabe se esgueirar sem deixar vestígios.
— Um menino desses...
— ... enche a gente de orgulho.
— ...
— Você está chorando?
— Os filhos crescem tão depressa.

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[1] Título provisório. Escrito em 2013, com o assassinato de índios por jovens e ricos adolescentes do Distrito Federal em mente. E era só um início.

1.2.14

Não quero ser turista

Aos onze que estiveram comigo em Buenos Aires

Estive em Buenos Aires, com olhos de turista e, assim mesmo, por ter alugado um apartamento, sofri como os da terra o sabor da crise energética da cidade; do país, na realidade. Doze horas no escuro. Doze horas sem ar-condicionado, utensílio imprescindível por aquelas bandas. Faz calor em Buenos Aires. E olha que tenho como comparação a cidade do Rio de Janeiro, quente feito poucas.
Foto tirada por algum dos acompanhantes de viagem.
Fiz o que todo turista faz por lá. Caminhei pela Recoleta, pelo Caminito, por Porto Madero e pela manjada Calle Florida, mas, ao contrário dos que estavam comigo, não fui ao tango. É meu jeito de fugir em parte do estereótipo de turista. Faço quase tudo que um turista faz. 
Turista insatisfeito com a própria condição, o momento mais glorioso foi quando, na Avenida Santa Fé, enquanto alguns de meus acompanhantes reviravam uma loja e outros desfrutavam do ar da mesma loja, eu, do lado de fora, fui abordado por uma moça. Não, por favor, nada de imaginar coisas, a moça simplesmente me fez uma singela pergunta: ¿Que horas tienes, maestro? Isso me deslocou da situação de turista para a de um habitante da cidade, um local. Respondi no meu portunhol safado — “dos horas” — e a vida seguiu adiante: a moça com a informação desejada, eu me sentindo um pouco menos estrangeiro.
Foto de Alexandre Brandão.

No Malba (Museu de Arte Latinoamericano) está nosso Abaporu, da Tarsila do Amaral, e estão também obras de Frida Kahlo e de seu marido, Diego Rivera. Teresa Cristina notou que os quadros dos três artistas são os únicos protegidos por uma tela de vidro. Reverência à importância das obras. Do lado de fora do museu, há um muro pichado, reivindicando a volta do Abaporu ao Brasil. Em torno das artes plásticas sempre há polêmica, principalmente por ser um negócio que movimenta altas cifras. O museu pertence a um milionário argentino, e isso me faz pensar nos banqueiros de cá, como aqueles do Banco Santos, que esquentavam a grana adquirindo obras de arte. Sei lá se o hermano é suspeito. Não sei nem quero saber. Estava de turista e, no museu, de apreciador.
O acervo é bacana, vai desde Maria Martins, artista de Campanha, cidade mais ou menos perto de Passos, até Botero, o colombiano que pinta gordinhos, passando por Portinari. Entretanto, o que mais me impressionou foi a exposição temporária com trabalhos da portenha Lilian Porter. Ela junta objetos quebrados (de bonecas de louça a pianos) a homúnculos trabalhando. Aliás, o nome da exposição remete ao trabalho: “El hombre com la hacha y otras situaciones breves” (traduziria por “O homem com o machado e outras situações breves”). Para mim, a artista tratou de mostrar nossa pequeneza frente ao que nós mesmos criamos.
À entrada dessa exposição, me deparei com uma mulher muito bonita. Ela lia o texto do curador afixado na parede. Eu ao lado dela fazia o mesmo. Ela lia em inglês, eu em espanhol. Acompanhei seu trajeto pelo salão até ela sumir. A presença de uma mulher bonita me fez lembrar de “O túnel”, livro do também portenho Ernesto Sábato. No romance, o artista plástico se apaixona por uma mulher que, ao visitar sua exposição, se detém num detalhe menor de um dos quadros. Ninguém, além dele mesmo, dera tanta importância àquele pormenor. Essa paixão torna-se obsessiva. Li o livro umas três vezes, da última já nem gostei, sentimentos tão extremados não me caíram bem. De todo modo, aos dezenove, vinte anos, depois da primeira leitura, o mundo ficou um pouco mais habitável. Voltando à exposição, a paixão não me tomou pelos braços, eu apenas reparei, num lugar onde se espera encontrar o belo, em uma mulher bonita.
Não poderiam faltar os livros. Buenos Aires é conhecida por suas livrarias, entre as quais está El Ateneo, situada dentro de um antigo teatro. O café, por exemplo, fica no palco, e salas de leitura estão instaladas nos camarotes. Uma beleza reconfortante. Além dos contos completos de Cortázar (comprado em outra livraria, a Cuspide), comprei livros de César Aira (um contemporâneo que indico fortemente), de Luis Gusmán (autor que estou conhecendo agora e tem me soado bastante estranho) e de Osvaldo Soriano. Pois é, tenho material para botar em marcha meu espanhol tímido e capenga por um bom tempo.
Foto de Alexandre Brandão.
Mais jovem, talvez sob a influência de Sábato, imaginava que, se fosse a Buenos Aires, não voltaria, passaria a viver na cidade mais europeia da América Latina. Mas aí está, fui e voltei. Com as boas lembranças que trouxe, meu compromisso é, da próxima vez, tirar de vez a roupa de turista e desvendar por inteiro a cidade. E, quem sabe, ficar por lá de vez.