29.4.14

O ônibus

O ônibus está associado a algumas mazelas da cidade: o caos no trânsito, em parte por conta da indisciplina de motoristas, que têm de cumprir metas estabelecidas por seus patrões; o desconforto, evidente quando se sabe que a frota é quase toda sem ar-condicionado, numa cidade-inferno como a que vivemos; a suposta relação escusa entre os empresários que desfrutam da concessão de um serviço público e as autoridades. Apesar dos pesares, nem tudo é contratempo na vida dos que fazem uso das não sei quantas linhas que servem ao Rio e às cidades adjacentes.
Alterada a partir de foto do "Gatas do lotação"
Logo de manhã, com o ônibus em movimento, algumas moças tiram da bolsa o batom, o lápis e o espelhinho e, com eles, terminam de se arrumar. Acordaram tarde, ou perderam tempo com o jornal ou com o filho ou com as orientações passadas à diarista, à babá, quem sabe à pessoa com quem dividem a vida e que pode dormir até mais tarde. Seja por que motivo for, fazem do banco duro do ônibus uma extensão da própria casa e expõem, leves e soltas, um dedo de sua intimidade. Não é só a habilidade de passarem, enquanto o ônibus avança, nem sempre vagarosamente, o lápis no contorno dos olhos que chama a atenção, mas também o fato de adivinharem os solavancos — a freada brusca, a mudança repentina de faixa, qualquer outro — e, de, com isso, manterem longe dos olhos o lápis cuja ponta pode até cegar.
No trajeto de ida e volta entre a Baixada e Botafogo, há pelo menos vinte e cinco anos, e sempre de ônibus, Solange gasta, no barato, um quarto do seu dia — isso apesar do mais ou menos recente bilhete único, um avanço para o passageiro ao reduzir o custo e, em menor grau, o tempo de viagem. Quando há algum acidente, uma chuva daquelas, uma batida policial nas favelas (sempre nas favelas) que estão no caminho — e são muitas —, as três horas para chegar a Botafogo e as outras três para voltar à Baixada podem se transformar em quatro, em cinco, em horas sem fim. Tudo isso, vale registrar, num ônibus sem ar-condicionado e, na maioria das vezes, cheio ou mesmo lotado. Mesmo ultrajada, a turma que viaja rotineiramente no mesmo horário (madrugada ainda quando saem da Baixada) promove festas dentro do ônibus: o amigo oculto no Natal, um bolo no dia do amigo, salgadinhos nos aniversários.
Nos últimos anos, houve uma pequena renovação na frota do Rio de Janeiro. Os mais novos – minoritários — são rebaixados, ou seja, é mais fácil entrar neles, um alívio principalmente para os mais velhos. Mas, sabemos todos, a cidade responde sempre do mesmo jeito a qualquer chuvisco mais encorpado: as ruas ficam repletas de poças d’água, quando não inundadas. E o que acontece com os novos ônibus? Seus corredores, tomados pela água que adentra pela porta, viram uma piscina indesejada. Certa vez, não sei o que havia de (mais) errado naquele ônibus específico em que eu andava, a água da chuva esguichou nos passageiros próximos ao trocador. Muitos saímos molhados dos pés à cabeça.
Tanto em trajetos pequenos (toleráveis) quanto em grandes (insuportáveis), os ônibus desrespeitam seus usuários. Se o prefeito, corretamente, quer que as pessoas deixem seus carros em casa e se movimentem pela cidade de ônibus (falar em metrô é brincadeira, dado o alcance limitado das linhas cariocas; e falar de trem é pisar em ovos mais frágeis ainda), ele que trate de promover mudanças rápidas, caso contrário, vai ficar querendo, e o trânsito no Rio se tornará cada dia mais um caos. Um caos violento.
Pensei que a luta pelo não aumento de vinte centavos fosse o início das transformações necessárias e urgentes nas condições da frota e, em consequência, no trânsito do Rio e em seu entorno. Qual nada. Mudanças na estrutura viária da cidade têm causado um transtorno terrível — que, se espera, não se prolongará por muito tempo. Os ônibus não mudaram nada, nadinha. E as passagens subiram vinte e cinco centavos.

3.4.14

Primos, Prumos e Planos

Lembrança de primo quase sempre tem conotação sexual. Os primos estão associados à brincadeira de médico, forma de iniciação que, pelo menos no passado, era comum. Não, por favor, não esperem revelações de minha parte, mesmo porque minhas primas sempre foram moças muito distintas, e sua chegada ao mundo adulto se deu com uns caras que, se pudesse, eu trucidava.  Exagerei.
Exagerei bastante, ainda mais levando-se em conta que o que desejo falar não tem nada a ver com sexo. Tem a ver com primo. É isto: quando a crônica começa errado é difícil salvá-la. Portanto esse início claudicante fica de exemplo para futuros cronistas. Rapazes e moças, nunca comecem uma crônica desse modo troncho.
O fato é que perdi um primo, o Wanderley. Primo em primeiro grau, mais velho que eu. Somos de uma família enorme, meu pai e o pai dele eram apenas dois de vinte e um irmãos nascidos — dos quais quatorze cresceram e, quase todos, se multiplicaram. Meu pai era o mais novo dos homens, e tio Manuel, pai do Leley, um dos mais velhos, o que explica nossa diferença de idade. 

Eu e Leley num improvável encontro numa praia oceânica de Niterói, em jan/11.

Leley era um sujeito ligado à alegria. Como todos, tinha seus perrengues, mas não me lembro de ele fazer fé nos maus momentos. Pelo jeito, citando Noel, nem no frio ele cria muito. Era um tipo solar. Deu sorte por ter se casado com uma mulher bonita, aliás, linda. Eu me amarrava em pegar no pé dele, insinuar que ele era rico, pois bonito não era — eu dizia que ele era mesmo feio —, logo, não fosse a grana, não havia como explicar esse casamento. Ríamos dessas bobagens. Agora a bomba: o tempo me fez ficar parecido com o Leley. Não exatamente de rosto, muito menos de jeito, mas, feito ele, tenho os cabelos brancos e as sobrancelhas negras. E também me casei com uma mulher bonita. Não somos ricos, mas temos um tchã qualquer.  Quer dizer, ele tinha. Não, ele tem.
De primo a prumo. Uma cidade, qualquer delas, não vive sem verde. Os bulevares, os parques, as praças públicas são o fator de equilíbrio nos aglomerados urbanos. Tanto no espaço público como no privado, Passos não cuida com carinho de seu verde. Tenho visto pessoas que, comprando uma casa, tratam logo de derrubar as árvores do quintal, transformando-o numa área de cimento. Por outro lado, não tenho visto um compromisso público de esverdear a cidade, o que a tornaria mais bonita, mais fresca e mais segura contra as tormentas. É uma pena, e, mais que isso, é um desastre. A luta — com minha amiga Isabel Pereira na dianteira — que se vem travando pela preservação da árvore centenária que nasceu e ironicamente vive na praça do cemitério pode ser o início de uma mentalidade verde entre os conterrâneos. Que ela prospere.
Tenho poucos planos. Quase nenhum, para falar a verdade. Sou um sujeito de ambições limitadas. Nem mesmo em sonhos, conscientes ou não, já me ocorreu me ver como ministro, prêmio Nobel, um magnata montado na grana. Tudo que quero é ler mais e escrever mais. Exatamente nesta ordem: ler primeiro, escrever depois. Porém não sou um acomodado. Tenho um plano. Um. Acho que já no ano que vem vou colocá-lo em prática. Se tudo der certo, vou mentir mais. Por quê? Ano que vem eu conto.