24.12.14

Os bons leitores

Para L., T., M.L., J., D., S. e P., amigas cujos nomes estão preservados,
mas que, espero, se reconheçam na crônica.


                       Meus amigos de escrita que me desculpem, mas eu gosto mesmo é do leitor puro, não escritor, o que vai desarmado para os livros. Sou obrigado a ouvir meus parceiros de literatura, pois eles serão críticos capazes de apontar um problema sério num conto, num poema, seja no que for. Mas o leitor puro, puxa!, esse surpreende.

                  Em 2015, “Contos de homem” completará 20 anos. Livro de estreia, logo me mostrou a força do leitor. Depois de ler o livro, a mãe de colegas de meus filhos, hoje minha amiga, disse que desconhecia questões masculinas tão densas, verdadeiro mergulho em águas profundas. O Nelson Vasconcelos, na orelha, afirmava que o livro não era apenas para homens, quiçá (cito de cabeça) não se dirigisse exatamente a eles (a nós). Mas a amiga foi além, falou em profundidade, espaço no qual, segundo o senso comum, os machos não pisam. A leitura feita por minha amiga me fez olhar “Contos de homem” sob outra perspectiva. Na realidade, não só esse livro, a partir do comentário dela, mudou minha percepção da literatura que faço.

                     Há leitores cuja reação é corpórea e sintética. Ri demais (uma ex-namorada). Sou aquela atriz de “A câmera e a pena” (irmã de um escritor meu chapa que virou minha amiga). Chorei feito boba (amiga virtual e recente). Nó! (uma das minhas irmãs). Gosto dessas leituras, ainda que elas não me façam avançar no entendimento da relação escrita/leitura. Pera lá, fazem avançar sim, afinal alguém riu, e eu não escrevi para provocar riso. Alguém se viu em quem inventei. Alguém chorou, mas não era para tanto. Até mesmo uma leitura interjetiva me leva a crer que, bem, às vezes meu texto espanta.

                 
Pintura de José Ferraz de Almeida Júnior, retirada do blog Fragmentos de uma vírgula
                          Mantenho meu blog já há bastante tempo. A partir dele – que, como regra, guarda as crônicas escritas para jornais – recebo, não com frequência, manifestações de leitores desconhecidos. Uma moça, certa vez, me mandou um e-mail lindo. Nele nomeava de surpreendente minha escrita, em parte pelo fato de eu usar palavras que ela só ouve da mãe (antigas, eu deduzo). Depois ela arremata assim: “Acho que você expõe tudo que nós somos, mas fazemos questão de esconder debaixo do tapete para passar uma impressão de ‘casa limpa’”. Falou pouco e disse muito, expôs um alcance muito maior do que eu poderia supor atingir. Depois dessa aproximação, eu e ela, aqui e ali, nos correspondemos.

                     Um último exemplo. Ela deve ser da minha idade, mas estava adiantada no colégio. Andava com minha prima Maria Cândida e com outras meninas que faziam parte das mulheres lindas e inalcançáveis de minha adolescência. Por isso, e apesar de eu ser amigo de seu irmão, nunca tivemos muita intimidade. Pois bem, o Facebook nos aproximou, e ela foi ao lançamento de meu “Qual é, solidão?”. No dia seguinte, me mandou uma mensagem tão certeira que eu, ao respondê-la, não consegui ir além do refrão de um personagem antigo do Jô Soares: “ah, é, é!” Ela começou o texto de forma surpreendente: “Li seu livro de um trago só”. (É mais que uma leitora, a imagem sugere.) Tendo dito isso me perguntou como eu consigo transformar instantes em histórias tão completas. Não sei responder, mas ela matou a charada, minha vontade, enquanto escrevo, é estender o instante.

                     Citei só leitoras? Sorry, amigos, homens não transitam nas profundezas. Falo de mim, que, se quase chego lá como as leitoras têm dito, é por acaso, na bamba. Falo dos leitores masculinos, que leem entrelinhas, claro, mas de outra forma, em suas bordas.

15.12.14

Obrigado, conterrâneos

Na minha última ida a Passos, novembro de 2014, colhi alegrias de toda sorte, mas uma decepção. Começo pela decepção, pois, ao compartilhá-la no Facebook, vi que não é só minha.
Vamos começar por uma afirmação categórica: Passos não gosta de seus prédios históricos. Quase sempre os derruba. Um deles, ainda em pé: o Educandário. As lembranças que tenho do Educandário são as melhores possíveis. Ali joguei muita bola. Para ser sincero, via as partidas, mas dificilmente participava delas, pois não era um bom jogador. No meu time, da rua do Ouro, meus primos Branco, Cássio e Raul davam conta do recado. Uma vez o Branco, depois de infernizar a defesa adversária, levou uma entrada tão desleal que o Cássio saiu lá do meio de campo e partiu para o soco. A briga poderia ter sido daquelas terríveis — corriqueiras na época de minha juventude —, porém, por alguma razão, foi contornada. Melhor assim.
Melhor assim principalmente porque pude preservar a memória do campo do Educandário como um lugar de alegria. Do mesmo modo, há uma alegria quando me lembro das canecas das festas do chope que aconteciam ali. Eu, por ser bem novo, não bebia, mas meus pais e/ou meus irmãos compareciam ao evento, e as canecas acabavam na minha casa. Eu as achava extraordinárias, um objeto mágico a meus olhos de rapazote. Essas festas, se não estou enganado, eram organizadas por clubes como o Rotary e o Lions e visavam a arrecadar fundos para alguma de suas obras. Imagino que o próprio Educandário também recebesse uma remuneração pelo uso do espaço. Aliás, remuneração justa.
O fato é que o Educandário está ali, do mesmo jeito, desde sempre. Nós, que derrubamos construções antigas sem piedade, o preservamos. Imagino que pela força da instituição que o administra, a Igreja. Seja por que razão for, temos de agradecer o fato de um prédio dessa importância estar lá, intacto.
Intacto? Sim, o prédio está, mas um telão eletrônico obstrui a vista completa dele. Quem vai pela Sete de Setembro não o vê em toda a sua extensão. Depara-se, no lugar dele, com anúncios que emitem uma luz cegante. Um único telão e vários problemas decorrentes dele: não se vê a construção histórica, o motorista sofre interferência na sua visão pelo excesso de luz, as casas vizinhas se veem invadidas por essa mesma luz. Enfim, ao lado da questão ligada ao patrimônio, há outras ligadas à segurança do trânsito e ao direito das famílias ao descanso em suas casas. Imagino que o telão seja uma fonte de renda necessária para o Educandário, mas, a meu ver, a forma de obtê-la fere os direitos alheios. É uma questão política, miúda, mas política. Creio que os que concordam comigo podem e devem questionar os religiosos do Educandário sobre essa questão. E, além deles, as autoridades.
Prometi falar de coisas boas. Falo então.
Depois que meus pais morreram, vou a Passos particularmente para encontrar meus amigos, numa reunião anual que fazemos. Fiz o mesmo este ano, e não foi menor a alegria de estar com eles. Somos todos muito diferentes, mas temos um passado comum, importante para cada um de nós. Isso é liga que não se quebra.
Detalhe da decoração do Ladybug Rock Café, em Passos/MG.
Fui também lançar meu novo livro (Qual é, solidão?, Editora Oito e Meio). Escolhi às cegas um local: o Ladybug Rock Café. Não poderia ter sido melhor. Vivi ali, rodeado de amigos, uma noite perfeita. Helder, Roberta e Marcela, os donos do local, fizeram com que eu e meus convidados nos sentíssemos em casa, e o Tchurcão, tocando um repertório na medida, tornou prazeroso cada minuto que passamos ali. Para somar a tudo isso: os amigos, os primos, a cerveja, a noite nem quente nem fria. Ali, naquelas horas, fui um homem feliz.
Obrigado, meus conterrâneos.