24.3.15

Dois rapazes

(Esta crônica foi originalmente publicada no blog Rubem - Revista da Crônica, que se pode acessar por aqui

Março começou com duas notícias tristes. Quer dizer, março começou triste, com o Brasil mostrando os fundilhos de uma democracia capenga, mas não vou falar sobre isso, ainda que algumas de nossas mazelas me guiem aqui e agora. Março trouxe a notícia da morte de Humberto e de Peterson, dois jovens.
Humberto era meu conterrâneo, conheço seus pais, que têm mais ou menos a minha idade. O rapaz morreu depois de participar de uma competição de quem bebia mais, num evento organizado por estudantes em Bauru, São Paulo. Ele tomou não sei se vinte ou trinta copinhos de vodca, logo depois, levantou os braços para comemorar e, em seguida, bem, em seguida Humberto se foi. Tudo o que sei dele, soube pela imprensa, mas, repito, conheço seus pais e me solidarizo com a dor deles. E essa dor deve ter crescido quando a imprensa buscou no perfil do Humberto no Facebook uma citação de Maiakóvski, poeta russo que se matou aos trinta e sete anos — “melhor morrer de vodca do que de tédio” (não conferi se é dele de fato)— e fez dela uma indicação (maldosa) de que Humberto, de fato, teria fugido do tédio. Aos dezoito anos, fiz um poema (que se perdeu na capa de um caderno) no qual prometia a meu fígado que o destruiria, pois apenas ele era mais frágil do que eu. Meu fígado, aos trinta, me fez mudar de vida. Eu e Humberto éramos presas do tédio? Suicidas? Não creio. Tenho a impressão de que, na juventude, somos seres absolutos, não acreditamos (ou temos impressão), sabemos. À medida que envelhecemos, passamos a andar na corda bamba (ou tomamos consciência disso) e, mesmo assim, mais gostamos da vida — que, indiferente ao nosso gostar, nos enche de perdas (de amigos, de vigor, tantas). Aos cinquenta e três, eu, se fosse Maiakóvski, diria que é melhor viver no tédio do que morrer de vodca ou de qualquer outro motivo. Humberto morreu de um excesso, de um acidente, num ambiente impróprio para uma festa excessiva.
Para além da questão pessoal envolvida na morte do Humberto, me chamou a atenção o fato de duas meninas na mesma festa terem sido internadas por beberem demais. Isso me leva a crer que a questão não é mais associar a bebida, a resistência à bebida, à masculinidade. Hoje, todos queremos ser “fortes”, homens e mulheres. Os passos que as mulheres têm dado no sentido da igualdade as têm levado (claro que não todas) a agir da mesma forma brucutu dos machões. Uma senhora do Ministério da Saúde, em um programa de televisão, citou a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar — a Pense de 2012 — para dizer que dos alunos do nono ano, com seus treze ou quatorze anos, 26,1% haviam consumido alguma bebida em pelo menos um dos trinta dias anteriores à entrevista, sendo que, no caso dos homens, o percentual era de 25,2% e, no das mulheres, 26,9%. Pode-se pensar que os meninos mentem, as meninas não, mas as estatísticas apontam que elas estão ali ombro a ombro com os rapazes. O mundo está piorando, não porque as mulheres passaram a beber, mas porque bebem estupidamente, feito os frágeis homens, que acham que beber muito é prova de masculinidade.
Trabalho de Lilian Porter, fotografado por mim no Malba, Buenos Aires.

Peterson era filho de um casal gay e, no momento em que escrevo, há suposição de que tenha sido agredido na escola, num corredor polonês, ainda que a própria escola negue a hipótese e a polícia não tenha chegado a conclusão alguma. Se Peterson não morreu porque era filho de gay, logo alguém morrerá por isso — se é que algum outro já não morreu. É pouco deitar o sarrafo nos gays, deve-se destruir a petulância com que eles, depois de saírem do armário, passaram a constituir famílias tradicionais, com filhos e tudo o mais. A morte de um filho de um casal homossexual são favas contadas, pois somos uma sociedade homofóbica, com representantes homofóbicos em todas as esferas da República. Numa visão otimista, se a comunidade LGBTL (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e os que são seus aliados não fizermos barulho e articulações políticas, o tempo até que sejam todos respeitados será longo e manchado de sangue, de muito sangue. Quer dizer, de mais sangue ainda.
Peterson era negro, deixo registrado.