18.10.15

Outubro


Não consigo pegar o pulso da crônica que começo a escrever, o que não quer dizer que eu não tenha assunto. É tão somente uma advertência que faço levando em conta que a crônica da falta de assunto, em algum momento, foi, é ou será escrita por todo cronista, bom ou não. Eu diria até que, feito os temas clássicos do jazz, valorizados pelos improvisos dos músicos, a crônica da falta de assunto é um clássico que se apresenta ora num improviso de Rubem Braga, ora noutro de Clarice Lispector e até mesmo no improviso “preso à pauta” de um AB qualquer.

O que não falta a minha crônica é assunto — triste, de uma tristeza mais triste que a tristeza comezinha presente em alguma outra, por exemplo, a de quando minha mãe morreu, na qual eu comentava o abandono de seus cachorros e a coincidência de sua morte com a tragédia do voo da TAM ao pousar no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

É difícil dosar a tristeza e, de resto, qualquer estado de espírito. O lado de lá da tristeza, a alegria e suas imediações, também não se dá à crônica com mansidão. Se em torno do arco da tristeza estão, doces, o recolhimento e a introspecção e, ásperos, o melodrama e o sentimentalismo rasteiro, na beira do arco da alegria cabem a parcimônia da ironia e a devassidão da comicidade. É árduo equacionar os sentimentos, o que beira ao tormento quando está se falando de um lá depois da tristeza. E o que pode haver nesse tão longe? Uma dor não exatamente nossa, do nosso íntimo, mas que reverbera nele de forma aguda, impiedosa.

Tomo as rédeas da crônica e, com ou sem pulso, digo logo o que tenho (e não gostaria) de dizer.

Outubro, no Brasil, é o mês das crianças. Essa data não surgiu de uma ação do comércio — ainda que bem aproveitada por ele. Foi, ao contrário, uma recomendação, no âmbito da ONU, de 1954 — esforço que culminou, em 1959, na “Declaração Universal dos Direitos da Criança” e, em 1989, na “Convenção sobre os Direitos da Criança”. A intenção de todos esses documentos está, a meu ver, sintetizada no de 1959. Nele são listados dez princípios que deveriam ser seguidos em qualquer lugar. O primeiro é a igualdade, o que significa não haver discriminação por raça, religião ou nacionalidade, e o último o de “crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos”. Entre os dois, o direito ao amor, à educação gratuita, ao socorro prioritário em caso de catástrofe.

Tudo faria crer que uma preocupação política dessas, sexagenária, já deveria ter revertido o quadro de sofrimento de nossos meninos, mas sabemos que isso não aconteceu. As crianças morrem vítimas da violência policial (veja o recente relatório da Anistia Internacional, com foco no Brasil), morrem de doenças insignificantes, têm dificuldade de entrar na escola e, quando entram, de permanecer nela. Em nosso país, segundo a Unicef, 25% das crianças de 4 a 6 anos não frequentam a escola e 64% das pobres não o fazem durante a primeira infância. E mais: o Brasil ainda tem 535 mil crianças de 7 a 14 anos — faixa na qual 98% delas estão matriculadas — longe da sala de aula, das quais 60% são negras. Sobre os jovens negros e pobres, no Brasil ou não, o relho da inação bate mais forte.

Não bastasse esse quadro de desamparo, as guerras que não cessam tornam o grave um ponto alocado no meio de uma escala que alcança o trágico. Debruce sobre as notícias da Síria, de onde a família de Aylan Kurdi, o garoto encontrado emborcado numa praia turca, tentava fugir. Imagine a situação do Afeganistão. Se o leitor não tem uma referência sobre o país, sugiro a leitura de “Terra e cinzas” (Estação Liberdade), de Atiq Rahimi, romance no qual é contada a história de uma longa jornada em que avô e neto buscam avisar ao filho do primeiro e pai do segundo que a vila em que viviam foi destruída por um bombardeio e, da família, apenas os dois sobreviveram. O menino é surdo, melhor, ficou surdo pelos bombardeios. A guerra era a dos anos 1980, e pelo Afeganistão de hoje passa outra guerra no lugar daquela. Como estarão as crianças, que insistem em nascer? A mesma preocupação se aplica às palestinas e, de outra maneira, às israelenses.


Se a África, em regiões conflagradas ou não, fez alguma coisa para suas crianças tendo em vista a lista da ONU, baseou-se apenas no rascunho do que ali era intenção. Sabemos da penúria de povos que sofrem, ao lado da pobreza, a violência de estados corruptos e a insanidade de grupos radicais como o Boko Haram, que, não por acaso, elegem como alvo preferencial de ataque as crianças, em especial as meninas. Ferir a inocência e apressar seu fim é uma orquestração bem pensada, cujo intuito é melhor não compreender.

Eu erraria a mão ao escrever a crônica, sabia disso desde a primeira frase. Todavia, neste ano da graça de nosso Senhor, ano que faz questão de não jogar o pó da maldade para baixo do tapete, não posso me dar ao luxo de cantarolar por aí o leve refrão de Michael Sullivan e Paulo Massadas: “Hoje é o seu dia / que dia mais feliz”.  A felicidade tem passado longe.

4.10.15

Boa Nova


Fui agraciado com uma boa nova. Neste mundo de tantas precariedades, de angústias em doses pra lá de tantas, regozijo-me e dou publicidade a uma titica de nada, mas o que fazer, não é? Ao cronista é reservada a tarefa de lidar com o desimportante, com as miudezas, não raro com as coisas do próprio umbigo. Pois lá vou eu compartilhar um deleite pessoal. Digo compartilhar na esperança de não ir só, isso é, de levá-los comigo.

Antes de contar a razão de tanto contentamento, dou um passo atrás para falar de Philip Roth.

Foi meu amigo Átila, ao me presentear com “A marca humana” (Companhia das Letras), quem me aplicou o escritor americano. Uma das leituras mais instigantes que já fiz, o livro é daqueles que a gente vê passar por suas páginas a vida quase sempre mal resolvida de um país, no caso, os Estados Unidos. O personagem é um negro que não se aceita como tal. Abandonando os pais, passa a se apresentar como judeu, e é como judeu que se casa, cria os filhos, torna-se professor universitário e sofre um processo por racismo (contra um negro) em sala de aula. A história trata com pesos iguais o drama de um homem e o de um país, e um espelha e influencia o outro.

Philip Roth virou um escritor de cabeceira. Ao longo do último agosto, incerto entre o calor e o frio, me debrucei sobre “O professor do desejo” (Companhia das Letras). Essa leitura abriu o caminho para a boa nova que em breve anuncio. O personagem principal, primeiro estudante de letras e, depois, professor, lida em suas pesquisas com Tchekhov. (Também com Kafka, o que o leva a Praga e, por conta disso, Roth escreve uma meia dúzia de páginas de beleza irretocável.) Roth, para dar solidez ao personagem, discute em vários momentos a obra de Tchekhov e, com isso, me jogou nos braços do médico e escritor russo.

Corri atrás de uma antologia que tenho, uma edição (ou reedição) do início dos anos de 1990, da Cultrix. Comecei a folheá-la e encontrei no prefácio, escrito pela tradutora Tatiana Belinky, a seguinte citação de Tchekhov: "Sei falar curto de coisas longas". O conto é isto: falar curto de coisas longas. Vencido o prefácio, li um conto, depois outro. O livro está ordenado cronologicamente, assim, é possível perceber que a pegada de humor de Tchekhov se impôs nos seus primeiros textos. Um humor duro, que surge constantemente a partir de uma situação na qual está em jogo uma questão delicada, até mesmo moral.




Avançando pelos contos cheguei a “Brincadeira”. Não, não pude acreditar. Esse conto, amigos, eu o havia lido na década de 1990, não sei bem, e sua história martelava imprecisa em minha cabeça. Eu o considerava uma obra linda, mas, que conto era esse? Ah, agora sei, é “Brincadeira”. Apesar do título e do bom humor habitual, o conto é triste até mandar parar — o que não macula sua beleza. Quanta alegria em reencontrá-lo! Sem me aguentar em mim, corri aqui para dividir minha felicidade.

Coisa miúda e desproporcional ao contentamento despertado? Quem gosta de ler sabe que não é. Um achado dessa magnitude equivale a um reencontro com alguém querido, que andava perdido no mundo. No caso da minha leitura, o amigo ausente trouxe com ele dois caras, que, num instante, tornaram-se íntimos, irmãos mesmo — como é o caso do próprio Átila, que chegou pelas mãos da Wânia. Na nova leitura de Tchekhov, “Inimigos” e “Angústia” (“novos amigos” colhidos entre inúmeros contos estupendos) subiram para a estante virtual em que guardo os marcantes.

Em nome da alegria, juro lutar contra minha memória frouxa e nunca mais esquecer nenhuma das histórias desse monstro, o russo Tchekhov.

Celebremos!