Não consigo
pegar o pulso da crônica que começo a escrever, o que não quer dizer que eu não
tenha assunto. É tão somente uma advertência que faço levando em conta que a
crônica da falta de assunto, em algum momento, foi, é ou será escrita por todo cronista,
bom ou não. Eu diria até que, feito os temas clássicos do jazz, valorizados
pelos improvisos dos músicos, a crônica da falta de assunto é um clássico que
se apresenta ora num improviso de Rubem Braga, ora noutro de Clarice Lispector
e até mesmo no improviso “preso à pauta” de um AB qualquer.
O que não falta
a minha crônica é assunto — triste, de uma tristeza mais triste que a tristeza
comezinha presente em alguma outra, por exemplo, a de quando minha mãe morreu,
na qual eu comentava o abandono de seus cachorros e a coincidência de sua morte
com a tragédia do voo da TAM ao pousar no aeroporto de Congonhas, em São Paulo.
É difícil dosar
a tristeza e, de resto, qualquer estado de espírito. O lado de lá da tristeza,
a alegria e suas imediações, também não se dá à crônica com mansidão. Se em
torno do arco da tristeza estão, doces, o recolhimento e a introspecção e, ásperos,
o melodrama e o sentimentalismo rasteiro, na beira do arco da alegria cabem a
parcimônia da ironia e a devassidão da comicidade. É árduo equacionar os
sentimentos, o que beira ao tormento quando está se falando de um lá depois da
tristeza. E o que pode haver nesse tão longe? Uma dor não exatamente nossa, do
nosso íntimo, mas que reverbera nele de forma aguda, impiedosa.
Tomo as rédeas
da crônica e, com ou sem pulso, digo logo o que tenho (e não gostaria) de
dizer.
Outubro, no
Brasil, é o mês das crianças. Essa data não surgiu de uma ação do comércio —
ainda que bem aproveitada por ele. Foi, ao contrário, uma recomendação, no
âmbito da ONU, de 1954 — esforço que culminou, em 1959, na “Declaração
Universal dos Direitos da Criança” e, em 1989, na “Convenção sobre os Direitos
da Criança”. A intenção de todos esses documentos está, a meu ver, sintetizada
no de 1959. Nele são listados dez princípios que deveriam ser seguidos em
qualquer lugar. O primeiro é a igualdade, o que significa não haver
discriminação por raça, religião ou nacionalidade, e o último o de “crescer
dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os
povos”. Entre os dois, o direito ao amor, à educação gratuita, ao socorro
prioritário em caso de catástrofe.
Tudo faria crer
que uma preocupação política dessas, sexagenária, já deveria ter revertido o
quadro de sofrimento de nossos meninos, mas sabemos que isso não aconteceu. As
crianças morrem vítimas da violência policial (veja o recente relatório da
Anistia Internacional, com foco no Brasil), morrem de doenças insignificantes, têm
dificuldade de entrar na escola e, quando entram, de permanecer nela. Em nosso
país, segundo a Unicef, 25%
das crianças de 4 a 6 anos não frequentam a escola e 64% das pobres não o fazem durante a primeira infância. E mais: o Brasil ainda tem 535 mil crianças
de 7 a 14 anos — faixa na qual 98% delas estão matriculadas — longe da sala de aula,
das quais 60% são negras. Sobre os jovens negros e pobres, no Brasil ou não, o
relho da inação bate mais forte.
Não bastasse
esse quadro de desamparo, as guerras que não cessam tornam o grave um ponto alocado
no meio de uma escala que alcança o trágico. Debruce sobre as notícias da Síria,
de onde a família de Aylan Kurdi, o garoto encontrado emborcado numa praia
turca, tentava fugir. Imagine a situação do Afeganistão. Se o leitor não tem
uma referência sobre o país, sugiro a leitura de “Terra e cinzas” (Estação
Liberdade), de Atiq Rahimi, romance no qual é contada a história de uma longa
jornada em que avô e neto buscam avisar ao filho do primeiro e pai do segundo
que a vila em que viviam foi destruída por um bombardeio e, da família, apenas
os dois sobreviveram. O menino é surdo, melhor, ficou surdo pelos bombardeios.
A guerra era a dos anos 1980, e pelo Afeganistão de hoje passa outra guerra no
lugar daquela. Como estarão as crianças, que insistem em nascer? A mesma
preocupação se aplica às palestinas e, de outra maneira, às israelenses.
Se a África, em
regiões conflagradas ou não, fez alguma coisa para suas crianças tendo em vista
a lista da ONU, baseou-se apenas no rascunho do que ali era intenção. Sabemos
da penúria de povos que sofrem, ao lado da pobreza, a violência de estados
corruptos e a insanidade de grupos radicais como o Boko Haram, que, não por
acaso, elegem como alvo preferencial de ataque as crianças, em especial as
meninas. Ferir a inocência e apressar seu fim é uma orquestração bem pensada,
cujo intuito é melhor não compreender.
Eu erraria a
mão ao escrever a crônica, sabia disso desde a primeira frase. Todavia, neste
ano da graça de nosso Senhor, ano que faz questão de não jogar o pó da maldade para
baixo do tapete, não posso me dar ao luxo de cantarolar por aí o leve refrão de
Michael Sullivan e Paulo Massadas: “Hoje é o seu dia / que dia mais
feliz”. A felicidade tem passado longe.
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