29.11.15

Outros tons de cinza


Era sexta-feira, e eu e o mundo estávamos entre uma tragédia e outra. Uns dias antes, em Mariana, uma das barragens com rejeitos da extração de minério havia rompido e jogado nos povoados vizinhos da cidade histórica — os mais atingidos foram Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo — uma quantidade de lama que soterrou tudo, dando cabo à vida de muitas pessoas. Mas isso era só o começo, apesar de a Samarco, dona da mineradora, afirmar, em suas primeiras declarações, que a única questão era o volume de lama derramado. Em não havendo toxicidade no lodaçal, prosseguiu a empresa, as consequências do desastre estavam limitadas àquele ali e agora. Não se eximiam de responsabilidade, mas afiançavam que a lama era do bem.

Aos homens, mulheres e crianças atolados no primeiro golpe somaram-se animais, vegetação, água. A lama, feito monstro de filme B, entrou pelos riachos, mergulhou no Rio Doce, passou por hidrelétrica, foi comer o mar (atualizemos Caymmi: é doce comer o mar). Enquanto cumpria seu caminho, as notícias passaram a dar conta de que não era só lama, restos tóxicos iam agarrados a ela. Um rio morto, como se tem dito que está o Rio Doce (que, aliás, já não andava bem do leito), acarreta mortes hoje, amanhã, depois. No Facebook, nos dias que se seguiram à avalanche, escrevi o seguinte: “Chamem um dactiloscopista, essa lama tem digitais (esquecidas nas mortes somadas aos dedos).” Fala de quem não se deixava e não se deixa convencer pelo discurso da empresa.

A outra tragédia viria ainda naquela sexta, o ataque à França. Mais de cem mortos. O país, na mira de radicais não é de hoje, além de tomar medidas de exceção emergenciais, tratou de entrar de arma e cuia na guerra, bombardeando, no dia seguinte, as regiões da Síria dominadas pelo Estado Islâmico. As mortes a serem contadas, nesse caso, não são apenas as desses dias, haja vista que tudo teve início muito antes, num caldo que vem sendo temperado por interesse econômico, fé obscurantista, corrupção e pelo simples prazer de exercer o poder ou a força do poder.


Lupicínio Rodrigues, em foto extraída do blog de Milton Ribeiro.

Mas era sexta-feira, e eu e o mundo ainda estávamos entre uma tragédia e outra. Eu corria da praia de Botafogo até a do Flamengo, no parque do Aterro — corria com um fone no ouvido, usufruindo da música, que me distrai do cansaço. Não estou muito certo do que ouvia, mas, depois da corrida, ao parar em uma lanchonete para beber água de coco, coloquei para tocar uma antologia do Paulinho da Viola. E ele foi cantando sambas daquele jeito tão próprio até chegar ao gaúcho Lupicínio Rodrigues. “Você sabe o que é ter um amor, meu senhor?/Ter loucura por uma mulher/E depois encontrar esse amor, meu senhor/nos braços de um outro qualquer.”

Ali, entre não saber o que aconteceria pouco depois em Paris e remoer sobre a destruição que a lama gerada pela negligência causara, continuaria e continuará a causar, Paulinho da Viola me jogou no colo do drama miúdo. O abandonado, no samba de Lupicínio, chega a dizer que não sabe se mesmo os de nervos de aço não reagiriam ao passar por aquilo que ele passou. Diz ainda que, quando revê seu amor perdido, é tomado por um desejo de morte ou de dor. Alguns iluminados seguram as pontas e fazem um samba, no entanto, um número expressivo de homens, sob pressão, costumam matar. Matam a mulher, matam o estranho, matam. No dia anterior ao que descrevo, um dos 100 mil habitantes da minha cidade natal desceu de uma moto, entrou numa padaria, atirou e matou o dono.

Lupicínio fez música a partir de sua fúria masculina, retratando um homem que, hoje, não deveria mais existir, mas que insiste em existir. Um deles quer ser prefeito da cidade do Rio de Janeiro.

Ao pensar em um adjetivo para encerrar esta crônica, quase escolho um da alçada do best-seller ao qual o título dela remete, mas não, seria grosseiro e gratuito. Assim, digo a vocês, amigos, estamos (somos?) podres — e a ponto de explodir.



16.11.15

Drummond, uma professora, poetas na plateia e a pele da poesia

Não sou de frequentar saraus de poesia, pois, a meu ver, a poesia pede intimidade e recolhimento. Mas, por favor, não tirem conclusões apressadas, escutem-me: sei que há pessoas que recitam magistralmente, com arte (uma arte a serviço da outra). A primeira memória que tenho de poesia vem de um compacto simples (disquinho de vinil) no qual Juca de Oliveira falava Drummond e Vinícius de Moraes. Para ser sincero, essa é uma segunda memória, a primeira são os poemas que circulavam em minha casa, entoados por meu padrinho, por meu irmão mais velho e pelos primos da idade dele. Mesmo sabendo da força da palavra dita, ainda prefiro, livro na mão, manter-me só e deixar os olhos correrem pelas páginas e, se tanto, a boca segredar-me aquele verso estupendo que não cala em si. 

Sarau imperdível: Sabadoyle, com a presença de Drummond.


Vencendo a minha resistência, neste ano participei, no dia 31 de outubro, de uma parte das comemorações do aniversário de Drummond. Sentadas num dos jardins da casa dos Moreira Salles, transformada em sede do instituto que leva o nome da família, umas vinte pessoas ouvimos uma professora do Colégio Pedro II, Mariana, se não estou equivocado, comentar “A flor e a náusea”, do livro “A rosa do povo”, lançado pela José Olympio em 1945. Sua palestra teve início com a leitura do poema — contra a minha expectativa, pessimista como de hábito, lido de forma sóbria (uma murmuleitura bem a meu modo, com a vantagem de a voz da Mariana não ser anasalada feito a minha). Depois contextualizou o poema, chamando a atenção para o fato de a publicação ter ocorrido quase no final da II Guerra Mundial (“O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.”). Acrescentou que Drummond, ao longo do tempo, foi se definindo em torno de uma militância não partidária (“Posso, sem armas, revoltar-me?”), tendo se afastado com certa rapidez (e rispidez) do Partido Comunista. 
Esticado seu pano de fundo, Mariana percorreu o poema verso a verso, estrofe a estrofe, especulando quanto daquele mundo convulso ecoara em cada um de seus trechos. O poeta criticava a coisificação (“Melancolias, mercadorias espreitam-me.”), sem, contudo, perder o compromisso rítmico. Com entusiasmo, analisou o verso: “As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.” Ao não fazer uso de uma só exclamação, a falta de ênfase sobressai, tornando as coisas mais tristes ainda. Mariana, dispondo de não mais que uma hora, raspou essas questões e foi adiante: debruçou sobre o momento em que o poeta se mostra solitário (“Quarenta anos e nenhum problema/resolvido, sequer colocado./Nenhuma carta escrita nem recebida.”). Resumindo: a professora fez e aconteceu. (Professora feito a Mariana dá alento a nós que andamos imersos na desesperança dos dias atuais.)
Havia, entre os ouvintes, um poeta famoso, que, enquanto esteve entre nós, tanto quanto eu, não deu um uivo — apesar de ser, em grande parte do tempo, o foco da professora, que o reconheceu. Lá pelas tantas, quando ele já havia deixado a palestra, outro poeta se juntou ao grupo. Fumando, manteve-se afastado e igualmente mudo até o final, quando então, meio de gracejo, perguntou ao vento qual a cor da flor que nasceu no asfalto. O ponto central do poema é o anúncio feito pelo homem coisificado, solitário, cuja arma é um poema: “Uma flor nasceu na rua!” Flor descrita mais adiante: “Sua cor não se percebe./Suas pétalas não se abrem.” O tal poeta piadista queria instigar os ouvintes ou, quem sabe, nos convocar a enxergar a cor que não se deixava perceber.
A flor, na visão da professora, tinha muitas características alheias a ela. “Seu nome não está nos livros./É feia. Mas é realmente uma flor.” Flor que, descobrimos no desfecho do poema, “furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”. De uma forma ou de outra, a flor, ao irromper, estava apta a cumprir seu papel e empurrar o mundo para um lugar no qual a coisificação e a solidão indesejada (tudo que afasta o humano de sua integridade) não encontrariam espaço. “Façam completo silêncio, paralisem os negócios,/garanto que uma flor nasceu.”(1)
Um verso não foi comentado pela professora ou por qualquer um de nós, espalhados pelo jardim. Na descrição da flor, contrária em essência a uma flor, Drummond escreve: “e lentamente passo a mão nessa forma insegura.” Forma insegura? As formas não deveriam ser planas ou não? Simétricas ou não? Até mesmo frágeis? Que forma é essa que é insegura?
Um poema não pode ser desvendado por completo nem por uma professora dedicada a ele, nem por um poeta que abandone uma palestra cujo tema é aquele poema, nem por outro que adentre por ela como um tufão histriônico. É da natureza sedutora do poema ocultar-se sob medida. Em “Procura da poesia”, que, no mesmo livro, antecede o “A flor e a náusea”, Drummond alerta e provoca: “Chega mais perto e contempla as palavras./Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra/e te pergunta, sem interesse pela resposta,/pobre ou terrível, que lhe deres:/Trouxeste a chave?”
O que um bom poema propõe — mostrar a pele, esconder o corpo — é um jogo erótico, talvez por isso goste tanto de lê-lo em silêncio, na cama, quando posso comê-lo e por ele ser devorado.
Do acervo da Casa de Rui Barbosa.




(1) O poema completo pode ser lido na Revista Germina.


2.11.15

Escrevendo e andando


Gosto de caminhar: areja o espírito. Faz bem a si mesmo quem leva o cérebro para tomar sol e depois o corpo sarado para ler/escrever/cogitar à sombra. A ciência já mostrou que mente e corpo são uma coisa só, em processo permanente de retroalimentação. Em nichos específicos, a resistência em aceitar o benefício recíproco entre o trabalho intelectual e o físico é alimentada com ironia, mas, apesar disso ou justamente por isso, há um monte de histórias mostrando que o exercício corporal, mesmo o mais tênue e indisciplinado, ajudou muitos pensadores/escritores/leitores.

Rimbaud.

Em “Autobiografia poética e outros textos” (Editora Autêntica), Ferreira Gullar pontua que Rimbaud foi um viajante — com notórias idas e vindas da casa da mãe, no interior da França — que encarou as distâncias caminhando. Quando partiu para a África, no último terço de sua vida (período nebuloso e pouco conhecido), ele cumpriu a pé o trajeto da França à Turquia, dali à Síria e, por fim, à África — caminho similar, ainda que em sentido oposto, ao que se percorre nesta diáspora contemporânea a que assistimos — quase sempre vexados — pela televisão. É verdade que, nesse período final, não se tem notícia de que Rimbaud tenha escrito (traficava armas), mas, enquanto fez seus poemas, seus deslocamentos não foram esporádicos. Da caminhada, concluo, alimentava-se o poeta — e, depois, o traficante.


Hemingway.

Rimbaud nada mais foi que um depositário dos ensinamentos de Aristóteles, criador da Escola Peripatética. Segundo o Aurélio, peripatético é aquilo “que se ensina passeando”, e era isso que o filósofo fazia: ao ar livre, indo de um lado para o outro, repassava suas lições aos estudantes. Por sua vez, Hemingway — e também Victor Hugo, segundo Mario Vargas Llosa, em recente artigo em El País — escrevia de pé, colocando os papéis em branco em um atril. Ele não andava, veja bem, mas seu trabalho de escritor, associado a sentar e produzir, fugiu do lugar comum. Isso sem contar que Hemingway era adepto da pesca, da caça, enfim, um cara que se mexia — e bebia atleticamente, o que não vem ao caso. Outro americano, Philip Roth, não só escreve de pé como caminha para burilar as ideias, se é que não caminha para encontrá-las.

Numa época em que eu não estava nada bem, passei a caminhar pelos sete ou oito quilômetros da lagoa Rodrigo de Freitas. Lembro-me de que, ao começar o exercício, eu me via refém dos tais problemas que me afligiam, porém, a partir do primeiro quilômetro, os pensamentos tornavam-se leves, e essa leveza acabava por dar um nó no baixo astral. Não raro, entre um passo e outro, surpreendia-me um clique “poético”. Eu não suportava encarar a folha em branco sem que pudesse, de cara, emoldurar nela o título do que, incerto, escreveria dali em diante. Numa dessas caminhadas surgiu “Relato das taturanas”, título de um conto de meu primeiro livro, e, de quebra, vislumbrei o próprio conto.

Ao longo do tempo, alguns escritores — quem sabe desejando compensar o sedentarismo — têm criado personagens que caminham. Fiando apenas na memória, listo Geraldo Viramundo — o louquinho de “O grande mentecapto” (Record), de Fernando Sabino, perdido em andanças por Minas Gerais —, tantos errantes na literatura de João Gilberto Noll, uma andarilha de distâncias curtas, Alice, de “Quarenta dias” (Alfaguara/Objetiva), o mais recente romance de Maria Valéria Rezende, e, ainda, Don Quixote, verdadeiro atleta montado em seu Rocinante, ou o ladrão de Jean Genet — à maneira de Rimbaud, cortando a Europa a pé.

Estou feliz. Levantei a bola da relação entre o trabalho intelectual e a atividade física, listei exemplos — meio besta, um meu — e, assim, desenhei um honesto painel sobre a questão. Posso me preparar para finalizar esta crônica com bafos de ensaio (de banda de garagem agarrada a dois ou três acordes). Então, para concluir...

Opa, espere, ouço vozes.
O quê?
Onde?
Quem?

Ah, é ele, o diabo que me habita. Vem dizer que Rimbaud morreu de um câncer que brotou em uma de suas pernas — logo amputada depois de o poeta que não mais escrevia voltar, já doente, mas ainda a pé, da África para a França. O coisa-ruim vai além e me pergunta o que acontece ao personagem de “Hotel Atlântico” (Francis), de João Gilberto Noll. Perde a perna, lembro-me bem. Pergunto ao chifrudo o que afinal tem a ver o fato de um andarilho acabar morrendo de uma ferida em suas pernas. Evasivo, ele se cala. Aproveito seu aparente desânimo e afirmo que a morte é um acidente. No caso de Rimbaud e no do personagem de Noll, um acidente com toque elevado de ironia, pois suas pernas eram a fonte da qual eles emergiam e se firmavam na vida.



Rimbaud. foi da Europa e voltou para ela. Muitos estão fazendo o contrário, com ganas de voltar para suas casas.