29.12.16

Sete sonhos na estante

I

É uma bola, vê-se de longe, e cai em minha direção. Há uma tensão clara no olhar dos que estão por perto. Meus pais entre eles. Meus irmãos também. A menina que eu amo larga a minha mão e foge do que está prestes a acontecer. Por que o pânico? Tenho a responsabilidade de fazer como os jogadores: matar a bola no peito e deixar que escorra pelas pernas até alcançar meu pé direito, o bom. Não sou nenhum Pelé, mas posso cumprir essa missão inesperada. Quando a bola chega perto, muito perto, vejo que se trata de uma bomba. Não posso correr, todos confiam em mim, depositaram suas vidas em minhas mãos (no peito, no pé). A bola atinge meu peito, e o impacto é tão grande que o chão se abre e me engole. Quando a bomba quica no buraco e volta ao ar, passo a fazer balõezinhos com ela. O movimento leve que se segue parece o de um balão de gás subindo e descendo. Mas, de repente, a bomba explode.
(O despertador das seis e meia toca.)

II

Os pássaros voam de costas, os cavalos trotam ainda que lhes faltem as patas.
(Um grito, sem origem, perturba a madrugada.)

III

Aquela menina que nunca sequer me notou fixa o olhar no meu. Ficamos uma eternidade assim estáticos, olho no olho. De repente, de suas órbitas oculares começam a sair imensos papiros. O que sai do olho esquerdo é vazio, um papel antigo, grosso e fosco. No da direita, há uma frase que aos poucos vai se revelando. “Agora é tarde”, é o que está escrito. Antes que eu lhe diga alguma coisa, a menina dos meus sonhos se vira e sai correndo. Vou atrás dela, e os dois ficamos presos a uma corrida que não nos tira do lugar. Tenho então uma ideia aparentemente brilhante: estendo os braços para agarrar a garota. No entanto meus braços vão se tornando grandes, elásticos e saem do meu controle. A menina se vira para mim, e vejo que ela não é aquela que nunca sequer me notou.
(Da mesa do almoço, sob censura frouxa da mãe, ouvem-se as piadas picantes do irmão.)

Foto tirada em evento do "Coletivo Entre-Tempos" e trabalhada por mim.


IV

Stela e eu entramos em um abatedouro. Antes que eu estranhe a situação, chifres crescem na minha cabeça. Stela muge. Os homens encarregados de nosso sacrifício se apiedam de nós e começam a rir. Feito Ferdinando, o Touro, esfrego a pata no chão. Cai uma chuva quente. Stela berra que é ácida.
(Sem cobertas, a noite é fria.)

V

Tenho a pele azul, e as pessoas, no Beco dos Aflitos, me comparam a um pelicano.
(Um cutucão para interromper o ronco.)

VI

 Quando vou entrar no palco, as luzes se apagam. Roberto Carlos passa por mim e diz daquele jeito dele: “que coisa, bicho”, depois mete o dedo no interruptor, entra no palco e o mundo acaba.
(Às quatro da tarde, dorme-se a sesta ou a noite sem fim.)

VII

Eu e Deus jogamos porrinha. Ganho. Deus chora.
(O sono dobra o cabo dos dias.)

26.12.16

Natal com Machado

Comecei a escrever crônicas na passagem do século XX para o XXI, convidado pelo amigo e escritor Marco Túlio Costa, que, naquela época, ajudava a reerguer um antigo jornal de Passos. (Portanto, se há um culpado, é ele.) Apesar desses dezessete anos, este é meu primeiro texto que sai justamente no dia do Natal. É verdade que escrevi uma crônica natalina, e nela contei de uma ceia, na casa da tia Yole, quando vi as renas e o Papai Noel cruzarem os céus. Essa visão, ao contrário do que se pudesse esperar, me fez descrer de vez da figura do velhinho de barba branca. Vi para descrer, o que São Tomé diria disso?


Natal singelo numa rua de Botafogo, Rio de Janeiro

Nada dessas coisas importa mais, hoje escrevo para ser lido na mais celebrada festa cristã. Quero fugir das platitudes, do senso comum, o que não é, adianto, fácil. Eventos repetitivos nos levam a buscar repetidas formas de lidar com ele. Feliz Natal! Que Cristo nasça e renasça em seus corações. Que o bom velhinho não se esqueça de você. O meu amigo oculto é vesgo, mas enxerga longe. Tudo isso embalado pela Simone, que, ao cantar a versão traduzida de “Happy Xmas (War is over)” do John Lennon, viu-a transformada em canção para estimular o comércio, destituída da mensagem pacifista. 

Não pretendo seguir o caminho oposto, aquele no qual muita gente procura macular o espírito da festa, trazendo à tona tudo de desumano que brota no meio de nós. 2016 é um ano propício a isso, haja vista o número de pessoas que têm fugido de seus lugares de nascimento para tentar, sem estrutura alguma, a vida em outro país — são sírios, são moçambicanos, a lista é grande. Sem contar nossas tragédias caseiras, muitas evitáveis, como essa que acomete o jovem negro, vítima preferida da guerra contra o tráfico. 

Não quis escrever platitudes, e eis que estão escritas. Não quis escrever sequer duas linhas que borrassem a festa, e eis que estão escritas. Preciso buscar uma compensação a meu deslize e a minha incapacidade de trazer algo novo para sua leitura. Já sei, um poema, um pequeno poema, e pronto. Escolho este de Machado de Assis por identificação, pois me parece que ele também penou para escrever qualquer coisa sobre o Natal. 

Aonde chegamos? A Machado. Ótima companhia.

(Ah, antes que eu me esqueça, feliz 2017. (Se for possível.))





Soneto de Natal
            Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,

quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”


Ilustração retirada do site de Antonio Miranda.

12.12.16

Os porcos

Apesar de o calendário chinês dizer que 2016 é o ano do macaco, no Brasil estamos quiçá na era do porco. O campeão da primeira divisão do futebol é o Palmeiras, cujo mascote é o porco. Um dos fiéis amigos do homem que ocupa o Palácio do Planalto, o ex-ministro que tentou impor-se a outro ex-ministro e com isso garantir o sucesso de um negócio privado, era chamado pelo Renato Russo, quando ambos eram adolescentes, de porco. E porco também foi como Fidel Castro se referiu a Carlos Lacerda, na época do golpe de 1964, conforme texto compartilhado numa rede social pelo historiador Carlos Fico.

O porco virou mascote do Palmeiras depois de ter sido, durante anos, a forma jocosa com que os adversários destratavam o time. Ou seja, o Palmeiras construiu um castelo com as pedras atiradas contra ele e fez do porco seu símbolo, desenhando-o não como um bicho bonachão e lento, fácil de ser vencido, mas sim como um verdadeiro super-herói, de semblante atlético e guerreiro. Jogada de marketing ou não, o fato é que deu certo, a torcida se reconhece no porco, e o Palmeiras, que andou pela segunda divisão, tornou-se o campeão de 2016, maldito ano estranho, inclusive para o futebol, que termina a temporada chorando a tragédia sofrida pela Chapecoense.

Em torno de Carlos Lacerda, o porco de Fidel, há polêmica de sobra. Governador obreiro (dele são o Aterro e a adutora do Guandu), político golpista (além de protagonista em 1964, havia tentado, anos antes, impedir a posse de Juscelino), administrador autoritário (removeu, na força bruta, várias favelas da zona Sul), foi ainda figura marcante no suicídio de Vargas. Enfim, um sujeito, feito o próprio Fidel Castro, complexo. Perto dele, o não amigo de Renato Russo, agarrado a escândalos desde a época dos anões do congresso, não passa de um porquinho-da-índia, o roedor que não é nem porco nem da Índia e que, mesmo sendo fofo a ponto de Manuel Bandeira declarar que sua primeira namorada havia sido um deles, rói até os alicerces da casa, caso fique solto e sozinho.

Quando penso no porco, porco, lembro-me dos Natais da minha infância. Neles, a leitoa era a peça de resistência, o mais esperado dos pratos. Pois bem, os fornos residenciais não davam conta de assá-la, então recorria-se às padarias, por sua vez com capacidade limitada para atender a demanda. O plano B consistia em levar a leitoa ao Bidu, no restaurante que ficava na zona, lugar que, de repente, deixava de ser não franqueado a senhores casados e pais de família para se transformar na salvação da festa cristã. Quanta senhora de respeito, em alto e bom som, ordenava ao marido que fosse até a zona e pedisse ao Bidu que caprichasse. E os pais, cumpridores de sua tarefa, aumentavam um ponto ao recado: "Bidu, capricha... Mas não tenha pressa”. Os Natais eram festas alegres graças aos porcos, ao Bidu e às putas, que muitos pais só apreciavam com os olhos e outros, com o corpo todo.

Wagner Tiso, Pink Floyd, Hermeto Pascoal fizeram músicas pensando nos porcos. Tiso, em “A morte do porco”, fez uma melodia triste, como é a própria morte desse animal que não se cala diante do abate. “Pigs”, do conjunto inglês, levanta-se contra os homens-porcos, ricos e poderosos, que, ao contrário das aves de Gonçalves Dias, aqui grunhem como grunhem lá. Já Pascoal sapeca uma “Porco na festa” e nela estribilha: “o mocotó tá duro pra danar/vou pedir de novo pra cozinhar”. Os porcos estão na literatura (“Os três porquinhos” e “Porcos com asas”), no cinema (“Montenegro ou porcos e pérolas” e “Babe, o porquinho atrapalhado”). O cofre da poupança miúda tem formato de porquinho. O artista belga, Win Delvoye, tem causado escândalo ao expor porcos tatuados cujas peles são vendidas a preços exorbitantes para grifes famosas. Não estranharia se certos amantes chamassem uns aos outros de porcos.

Porco é um bicho só para muitas coisas.

28.11.16

Na segunda lâmina do espelho

Eu tenho medo de tigres — medo que não me protege de nada, não ando onde andam os tigres. Nem entre elefantes — e destes não tenho medo. Amo elefantes e tigres sem precisar andar no meio deles. Medo, de verdade, cotidiano, eu tenho é de lagartixa, vai entender isso. Mas igualmente amo as lagartixas, tão importantes no controle dos insetos. Não uso repelente, preciso das lagartixas, mas, por temê-las e sem deixar de amá-las, delas não gosto.

Eu enfrento a escuridão, desde criança eu a enfrento. Quando transito por uma escuridão de verdade, não por uma metáfora das trevas, posso manter os olhos fechados ou abertos, é indiferente. No dia em que morre alguém do meu afeto, caminho de olhos abertos pela escuridão, certo de que, assim, só verei o que estiver vivo. Não quero encontrar os mortos, embora deseje muito reencontrar os meus mortos. Nalgum dia.

O jogo que gosto é o pingue-pongue, cuja bolinha nunca está ali nem está lá, embora às vezes ela caia à minha esquerda, às vezes do lado oposto. Quem sabe da vitória e da derrota são os jogadores, a torcida sabe da bolinha, que não está ali, mas ali já esteve, e não está mais lá, ainda que lá já tenha estado. Eu sou a bolinha. A raquetada é a vida.

Quando assobio, salvo ao menos um gomo de cana. Quando chupo cana, os pássaros pialham de alegria. Nas horas em que nem assobio nem chupo cana, o que faço ou deixo de fazer é feito um vento no canavial, e um vento no canavial, cante ou não cante um pássaro, é um vento no canavial, nada além disso, como diria Caeiro.

Nunca andei num relógio, mas um amigo sim. Ele rejuvenesceu uma hora, por caminhar em sentido anti-horário, e, pelo mesmo motivo, envelheceu uma vida. De minha parte e por destino, só envelheci uma vida. Ele morrerá uma hora mais moço que eu.

A única certeza que tenho é que não me chamo Raimundo. Com isso, atravesso as ruas e peço um pingado no botequim. Não é pouca coisa, mesmo que o pingado seja servido frio ou que eu quase tropece num descuido da rua.

13.11.16

Nas paredes da cidade

Encontro em algumas paredes da cidade a frase “eu dei pra ele”, que circulou num primeiro momento de forma anônima e, soube-se depois, é de autoria de Anitta Boa Vida, artista visual. Leio a frase como reflexo do empoderamento feminino, o que me leva a concluir que “dar” não é mais nem motivo de vergonha nem expressão da subordinação da mulher ao homem. “Dar” e “comer” vêm ganhando um novo significado, sendo revalorizadas, e não seria exagero dizer que são atualmente palavras da mesma magnitude. Mal faço a afirmação, recuo um pouco, pois a violência ainda incide sobre as mulheres, a igualdade está longe de ser realidade. Apesar disso, e em alguns espaços, mulheres e homens se veem e se tratam com mais equidade, “eu dei pra ele” é a prova disso.

Não faz muito tempo, li um artigo no qual a autora chamava a atenção para o fato de que o xingamento expressa, no mais das vezes, uma voz masculina, heterossexual e preconceituosa. Alguém, ao ser chamado de “filho da puta”, recebe um selo de má origem (do qual não se livra), o de ter sido alimentado pelo leite sujo das profissionais do sexo. Porém, não é de hoje que usamos o “filho da puta” de forma positiva. “Esse filho da puta aqui é meu melhor amigo.” O mesmo ocorre com a palavra “puta”. “Eu tenho um puta amor por ela.” Não nos iludamos: a puta e o filho da puta continuam malvistos e marginalizados, ainda que, também é verdade, eles tenham, aqui e ali, gritado (sem grande sucesso) por seus direitos.

Quando a mulher diz, pelas paredes ou não, que “deu pra ele”, em vez de reforçar o estigma da sujeição, ela retira do armário sua voz, expõe sua força. Ela é mulher no sentido mais atual possível, apesar de as palavras escolhidas já terem servido a outro dono. Todos, ao transformarmos o xingamento em elogio, e as mulheres, ao tomarem as frases que as diminuíam para passar a expressar a própria potência, estamos dando novos significados às palavras.

Já vi, em pelo menos duas paredes do meu bairro, um pedido para que se libere a necrofilia. Haverá de fato um grupo que queira uma coisa dessas? Ou serão apenas pessoas dispostas a afrontar nossos valores, a testar nossos limites? Quem sabe não passa de uma turma empenhada em promover o escândalo? Será um grupo ou um solitário? Como saber?

Vira e mexe me deparo com intervenções urbanas cujo autor não se revela. Numa época de eleição, vi uns jovens carregando no peito cartazes do tipo “compro/vendo ouro”, só que, no caso, as palavras eram “compro/vendo voto”. Mais ainda, num dos galhardetes, reproduzia-se de “A Igreja do Diabo”, conto de Machado de Assis, o trecho no qual o Diabo pondera o seguinte: se é possível e até louvável vender o que é nosso, a casa, o chapéu, os sapatos —— tudo que está fora da gente, por que não se pode vender o que nos é inerente, a opinião, a fé e, logo, o voto?

Não sei quem patrocinava aquela intervenção, não sei como os cartazes foram parar no peito dos rapazes, mas sei muito bem que estava diante de um questionamento sobre a nossa democracia, a lisura das eleições, a eficácia de nosso acordo social e até mesmo, de modo mais abrangente, a hipocrisia, haja vista que não é segredo para ninguém o fato de muitos negociarem (comprando e vendendo) o voto. Não consigo enxergar um segundo propósito, o recado está dado de forma inequívoca e provocativa. A estranheza é não ser uma obra com assinatura, mas ela não é necessária ou é mesmo desnecessária.

Embolo muitos assuntos: autoria, linguagem, política, conquistas femininas. Tento dar um desfecho nisso tudo.

Conhecer quem escreve “eu dei pra ele” nas paredes é fundamental para saber se estamos no mundo que avança ou no que retrocede (o que seria o caso se a frase tivesse as digitais de um homem heterossexual). Como a frase foi assinada por uma mulher, concluo que a língua, ao usar velhas palavras, retirando-as da escuridão secular em que repousavam, também avança. A autoria, repito, não faz falta à provocação a respeito de nossa democracia, pois o que importa não é com quem dialogo, mas qual é o assunto proposto. No galhardete machadiano, eram jogadas na cara de todos as ervas daninhas que vicejavam, e continuam vicejando, no campo (agora mais do que nunca) minado de nossa democracia. Quanto à necrofilia, francamente, é triste ver tamanha estupidez turvar as paredes da cidade. Pior que isso, ter certeza de que seu autor jamais se revelará, pois, ao contrário do que questiona nosso processo eleitoral, que, ao se ocultar, se expressa claramente, o defensor da necrofilia será sempre um covarde, escuso e violento.

30.10.16

Dois dias de outubro


No dia 17 de outubro, acordei e fui ao Aterro correr um pouco. Ao contrário de outras vezes, a corrida foi sofrida, talvez porque o calor já ocupasse seu espaço, do qual não arredará pé por longos quatro, cinco meses. Certa vez, ouvi um sujeito dizer que seria preciso que houvesse guerra para que houvesse paz. A paz seria, nesse pensamento, apenas uma ideia abstrata e absurda, haja vista que, se terminasse a guerra, a paz não poderia começar, pois ela só existe em oposição à guerra — não existindo esta, não haveria aquela. Somos muito bons em dar nó nas ideias, embora, no caso, a culpa talvez seja de uma leitura apressada dos dicionários, que definem paz como ausência de guerra. Tento defender o indefensável, vamos adiante. Contei sobre esse contorcionismo intelectual apenas para pegar o mote e dizer: o inverno, no Rio, é o não verão, logo, não existe. O calor que reteve minhas passadas habitualmente vagarosas no Aterro sempre esteve por aqui, às vezes brando, o que não acontecerá de agora até março, abril.

Dia 16 foi aniversário de meu amigo Marco Ajeje (1), um artesão mágico que a histórica Tiradentes soube receber de braços abertos. Trabalhando sobretudo com madeira de demolição, Marquinho, ciente das lições de antigos mestres, ouve o que a madeira tem a dizer e dá forma ao que ela pede. Meu amigo tem pendores para a escrita, mas não sei se escreve, contudo na madeira ele entalha poemas, não há outro nome a dar a seus trabalhos.

Nasceram num 17 de outubro a Mariana Ianelli e o Tacilinho, outros dois artistas. Mariana, poeta e cronista, uma das que escrevem — e como escreve! — na revista Rubem (2). Tacilinho, músico. Dela sei quase nada além do que conta em suas crônicas, ou seja, por sorte, conheço — e esse conhecimento é aberto a todos — a Mariana em estado de poesia. Já ele é um velho camarada, com mais de cinquenta anos de música nas costas — tecladista do Edinho Santa Cruz, banda de baile que ficou conhecida por fazer cover dos Bee Gees, na época do “Embalos de sábado à noite”, e por ter tocado ao longo de quatro anos no programa do Faustão (3). Na véspera de seu aniversário (não pensem num velhinho, pois a vida profissional dele começou antes dos dez anos), depois de um show no qual deu uma canja, Tacilinho me disse que pela primeira vez na vida estava estudando música. De supetão, aprendi que não são anos de estrada que fazem um músico — ou um poeta, ou um artesão, o que seja. Tacilinho, com esse gesto que a mim parece de humildade, mostrou-se também uma pessoa em estado de poesia.

Dois dias de outubro férteis esses dos quais falo, mas não de todo poéticos. A guerra do Iraque continua lá e, não sei se no dia 16 ou no dia 17, tropas iraquianas, auxiliadas pelos americanos, avançaram sobre Mossul com o objetivo de resgatar o território das mãos do Estado Islâmico. Por aqui, uma briga entre facções em presídios de Roraima e Rondônia vitimou umas vinte pessoas. A despeito dos inventores de filosofias rastaqueras e dos leitores apressados dos dicionários (ainda que, pensando bem, seria mais sensato definir a guerra como a ausência de paz e a paz como um momento no qual os homens se respeitam uns aos outros, buscam a igualdade entre si e, entre mil outras coisas que poderiam ser listadas, não se atacam), a guerra está lá no Iraque, na Síria, mas também aqui, num campo de batalha espalhado ao longo das calçadas de nossas cidades nem tão grandes, dos emaranhados dos morros e das ruas nas quais ônibus disputam espaço com bicicletas.

No dia 16, havia ido com meu filho mais velho ao jogo do Botafogo contra o Galo. Partida difícil, com erros do juiz favoráveis ao time carioca, que terminou vitorioso. Na volta para casa, ao longo de uma Linha Vermelha sem vestígios de nossos conflitos diários, o trânsito, sem motivo aparente, praticamente parou, com o que pude me distrair da direção, virar a cabeça para a esquerda e ver soberana a lua, a super lua. Aquela bola enorme e brilhante me fez pensar nos homens e nas mulheres que viveram antes de Copérnico. Decerto eles, ao contemplarem uma lua como a que eu via, se entregassem ao encantamento e sob esse efeito ficassem por dois, três dias, talvez mais. É possível, então, que comemorassem os nascimentos e não fizessem guerras, sequer pensassem nelas. Enfim, vivessem dias de paz em estado absoluto e poético e musical e artesanal. Além do mais, imagino, aqueles dias, sob a perspectiva das ciências, obscuros, não eram tão quentes quanto os atuais.









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1) Aqui você pode ter contato com a Divinas Gerais, loja e ateliê do Marco Ajeje.

2) A coluna da Mariana Ianelli, na Rubem, pode ser acessada a partir daqui.

3) Um trabalho do Edinho Santa Cruz, diferente dos que citei, pode ser ouvido aqui no Youtube. É o concerto que a banda fez com o melhor do rock'n'roll (de Pink Floyd pra cima).


22.10.16

O convidado

Depois de escutar algumas músicas do Leonard Cohen e sem que seja um diálogo poético e sim uma resposta à musicalidade, escrevi o pequeno texto a seguir.


16.10.16

Boris Fausto e as memórias intrusas


“O brilho do bronze — Um diário”, do historiador Boris Fausto (Cosac Naify), presente de minha amiga Nilma Lacerda, foi escrito a partir da morte da esposa do octogenário professor da USP e contempla os anos entre 2010 e 2014. Há muito a dizer depois de ler esse livro, desde especular como são os valores de um intelectual uspiano das antigas até louvar a forma como um senhor encara com bravura o luto e a solidão. Esse senhor, diga-se de passagem, além de comentar as visitas ao cemitério, o enfrentamento do cotidiano sem a parceira de anos, analisa, entre outras coisas, a política, em especial as manifestações de 2013. Tudo num tom, digamos, alto, de um intelectual de boa formação, cuja vida foi marcada pela perda precoce da mãe.


Foto de Renato Parada, tirada na época do lançamento do livro


Sinto-me atraído pelos momentos comezinhos narrados ao longo do livro, como quando Fausto fala de suas lembranças sem importância. Conta, por exemplo, de um diálogo — por ter a ver com Lins, cidade dos Pratas, me fez pensar no Leonel Prata — que certa vez ele escutou entre dois italianos. Estavam todos na entrada do cinema, na São Paulo dos anos de 1950 (talvez tenha sido um pouco antes, a julgar por uma breve pesquisa que fiz), e os italianos discutiam futebol, mais precisamente a partida que haveria entre dois times do interior, a Linense e o XV de Piracicaba, cujo resultado daria ao vencedor um lugar na primeira divisão do futebol paulista[1]. Um disse, tropeçando na língua, que torcia pelo “Lincense”, no que o outro, um pouco espantado, quis saber a razão. O diálogo entre eles, no registro do autor do diário, foi o seguinte:

"— Perché? — indagou o que fizera a pergunta.
 — Perché a me non mi piace Piracicaba."

Até onde eu saiba, Fausto não tem ligação nem com Lins nem com Piracicaba, portanto essa história foi fixada em sua memória por puro capricho de seus neurônios. Apostando que cada um de nós cultiva pelo menos uma dessas memórias intrusas, que o professor prefere chamar de insignificantes, mal terminada a leitura, saí à caça da(s) minha(s).

Encontrei de cara algumas bem miúdas, mas, ao contrário da narrada por Fausto, guardadas ou mal guardadas no espaço do afeto, ou seja, lembranças que acusavam o meu envolvimento direto com os fatos. Uma vez, em Passos, no Bar do Vicente, que ficava ao lado do Grande Hotel, ao perguntar se eu aceitava uma bebida e eu dizer que queria uma sodinha (o nome que se dava à Soda Limonada da Antártica), meu padrinho indagou se eu havia parado de beber — insinuando que me oferecera uma bebida alcóolica. Eu tinha menos de dez anos, registre-se. Nos meus primeiros meses de Rio de Janeiro, o atendente de uma loja quis saber qual era minha graça — meu nome, esclareceu, diante de minha hesitação. Enfim, histórias irrelevantes, embora marcadas pela presença amorosa de meu padrinho e por minha chegada à cidade na qual acabaria fazendo minha vida. Não servem como paralelo à narrada no livro. Busco outra.

Era algum ano anterior a 1977, eu vivia em Passos. Eram dias de eleição, talvez fosse mesmo o dia da eleição, e eu não votava ainda. Na Praça da Matriz, um pouco fora de seu centro, vi um monte de gente aglomerada. Por achar o movimento estranho, fixei meu olhar no grupo. Um senhor — logo o reconheci, era o empresário mais bem-sucedido da cidade naquela época — atirava dinheiro pro ar. Os que estavam um pouco afastados dele, feito corvos atacando a carcaça de um boi, se jogaram sobre as notas, disputando-as à tapa, puxões de cabelo e unhadas, coisas que os corvos não costumam fazer.

À medida que escrevia o parágrafo anterior, fui percebendo que minha história não se compara à de Fausto. A dele não o atinge de frente, a minha, ao contrário, por ter desnudado aos olhos de um adolescente como são alguns políticos ou a política, ainda reverbera na minha visão de mundo. Naquele episódio entendi a forma como a elite tratava — e continua tratando, basta ver, na imprensa carioca, as várias notícias de compra de votos, agora, em 2016 — os menos esclarecidos e/ou os mais necessitados.

Não desisto de encontrar uma história leve que eu tenha presenciado e guardado sem outro motivo que não o de usá-la como uma anedota a ser dividida entre amigos. Opa, uma salta na tela da minha memória. Ainda em Passos, num começo de noite, eu atravessava a rua para entrar no clube e vi, encostado ao lado da porta pela qual eu passaria, Z., meu professor no ginásio. Entre nós passou alguém, não me recordo quem, e perguntou ao mestre: “Cumé que cê tá?” Um jovem de 25 anos, se tanto, Z. respondeu: “Doido”. Ambos riram, e eu entrei no clube sem atinar para o significado daquele papo. Não demorou muito, destrinchei o código e comecei a achar a história engraçada. Continuo achando, e não passa disso.



[1] Em 1948, segundo o site do Linense, o time de Lins não subiu para a primeira divisão ao perder por cinco a um do XV de Piracicaba. 





2.10.16

Autoentrevista em dias de muito assunto e pouca certeza ou o contrário

Para Teresa, professora num país triste

Nosso entrevistado de hoje, eu mesmo, nasceu em Minas, viveu em Minas, mas não parou aí. Mudou-se para o Rio, depois para São Paulo, de onde voltou para o Rio. Na infância, interiorano ainda, devaneou que viveria em Porto Alegre, quem sabe em Montevidéu, mas isso nunca aconteceu e está longe de acontecer. O destino não se importa com sonhos sem pé nem cabeça de um moleque qualquer. O destino é sério, sério. Que nem Teresa, a professora de francês com quem o entrevistado não aprendeu nada, de francês, devo dizer, pois foi com ela que ele começou a apreciar a beleza farta. Veja bem, não a beleza, mas a beleza farta.




Feita a apresentação, vamos à entrevista.

P: Alguma certeza na vida?

R: Sim.

P: Qual? (Capricho no tom irônico.)

R: Estou vivo.

P: O senhor conhece alguém que, não estando vivo, seria entrevistado?

R: A Tomie Ohtake. Um deputado espera por ela lá no congresso. Te digo mais, não é um caso isolado, tem morto espalhado por aí que tem muita explicação a dar, portanto, se não está, deveria estar sendo entrevistado.

P: Voltemos um pouco. Falemos de suas certezas. Além de estar vivo, outra?

R: Não estou morto.

(A entrevista será difícil...)

P: O fato de o senhor estar vivo e não estar morto me alivia. Agora, devo me explicar: ao fazer a pergunta, gostaria de saber se o senhor tem alguma certeza política, por exemplo. Tem?

R: A política é um bom negócio.

P: Do ponto de vista financeiro?

R: Aí já não sei.

P: Então em que sentido a política é um bom negócio?

R: À esquerda e à direita. Em todos os sentidos, entende?

P: Creio que sim, senhor, creio que sim. Mas, sejamos mais explícitos: o que o senhor acha do Temer?

R: Que ele se acha.

P: Só isso?

R: Achar, só isso, no mais eu torço.

P: Por ele?

R: Contra.

P: Quer dizer que o senhor é a favor do PT, do Lula, da Dilma?

R: ...

P: Quem cala, consente...

R: Ou se segura para não partir a cara de entrevistador tão bitolado. Com vinte e seis letras é possível escrever todas as palavras do mundo, com dez algarismos, todos os números. Não reduza a complexidade a a e não a ou a zero e não zero.

P: Devemos mudar de assunto?

R: Você deve.

P: Sugira algum.

R: Teresa.

P: A professora de francês?

R: Ela mesma.

P: Teresa está ligada a quê?

R: Ao amor.

P: O senhor a amou?

R: Não, mas todo homem deveria amar uma mulher cujo marido é um caminhoneiro.

P: Isso é uma filosofia?

R: De jeito algum, é uma frustração.

O entrevistado sai da sala e enfia-se no quarto. A entrevista, tudo indica, vai ficar assim, borocoxô, inconclusa. Ao recolher meu material, ouço-o chorando. Chora e murmura um nome. Teresa? Não, Teresa não, soa como se fosse o nome de um país triste.

19.9.16

Quando dei o bolo no pessoal da igreja

Um amigo costuma dizer que eu, na juventude, fui coroinha. Penso que ele quer com afirmação tão surpreendente relacionar meu jeito manso com a disciplina da religião, isso, claro, se não estiver com pensamentos maliciosos, o que é bem provável. O fato é que nunca fui coroinha. O mais próximo que cheguei de uma função religiosa foi certa vez ter ido à Igreja de São Francisco, na minha cidade, e me enturmado com o grupo de jovens. Eu tocava violão e ensaiei um número para a missa de domingo, mas não fui à missa e nunca mais apareci por lá.




Já contei noutra crônica que o catecismo me fez mal, todos os potenciais castigos divinos me afastaram Daquele e de qualquer outro Deus. Virei esse sujeito no meio do caminho entre o agnóstico e o ateu. Estou bem, mas, contraditoriamente, costumo dizer “graças a Deus”, “fique com Deus”, “Deus te acompanhe” com fé absurda num Deus protetor.

Daquele encontro com os jovens da Igreja de São Francisco guardo a música que eu tocaria. É aquela que diz o seguinte: “Para mim a chuva no telhado / é cantiga de ninar / mas o pobre meu Irmão / para ele a chuva fria / vai entrando em seu barraco / e faz lama pelo chão.” A letra não clama por uma ação solidária, simplesmente questiona o sujeito que se deixa ninar pela música da chuva sobre a possibilidade de viver tranquilo enquanto os pobres podem acabar desalojados por um temporal. Cantaríamos, na certa um pouco contritos, depois iríamos para a pelada do domingo ou, já naquela época, para a paquera ao redor da praça.

Quando dei o bolo no pessoal, não me importei com isso. Depois de uns anos é que comecei a me perguntar o porquê. Acho que aquele menino que eu era não se conformou com o fato de que a religião pedia a compreensão da diferença gritante entre uns e outros, todos filhos de Deus, mas nada além disso. Compreenda, sofra até e pronto. Parte da Igreja católica se revoltou contra isso. É mais ou menos dessa época a forte presença da Teologia da Libertação, cuja atuação se dava no sentido de, além de confortar, transformar a vida das pessoas, dos pobres em primeiro plano. Revolucionário demais. Não demorou muito, marginalizados, vários teólogos da Libertação acabaram expulsos da Igreja. Esse atrito está aí até hoje, um papa puxa pra cá, outro pra lá. Eu não voltei a nenhuma igreja e, se um dia voltar, vou em busca daquela parte combativa, que luta pela justiça na terra tanto quanto acredita na justiça divina.


É um longo caminho, mas cheguei a essas memórias depois de assistir a “Aquarius”, o filme de Kleber Mendonça Filho que está aí na ordem do dia, muito por conta de ter sido associado ao “#nãovaitergolpe” e, por extensão, ao “#foratemer”. Ao fim da sessão, grande parte da plateia entoou um grito contra o atual governo. Tudo bem, o momento exige posicionamento, só acho que, para a análise do filme — seja do ponto de vista de sua contribuição artística, seja da perspectiva do prazer de assisti-lo —, essa ligação mais prejudica que ajuda. Isso não importa, agora não importa. Então volto ao meu raciocínio.


As músicas, no filme, são o canal por onde passa a emoção da personagem principal — Clara é uma mulher arraigada a alguns valores: o disco de vinil, o apartamento do qual não quer sair, depois de todos os vizinhos já o terem feito, para que suba um espigão moderno em seu lugar. Conduzido de forma crua e enxuta, os poucos transbordamentos narrativos ocorrem quando Clara ouve sua trilha sonora, que começa com Taiguara, vai de Roberto Carlos a Villa-Lobos, passa por um pouco conhecido Ave Sangria e atinge seu ápice emotivo em Gilberto Gil cantando “Pai e mãe” (“Eu passei muito tempo / aprendendo a beijar / outros homens / como beijo meu pai”). Sabe-se lá qual sinapse ocorreu para que eu me lembrasse daquela música que eu cantaria na missa de domingo e, depois dela, do bolo dado no grupo de jovens tão empenhados com a igreja. De todo jeito, a “ética” toda própria de quem é dono da grana deve explicar de algum modo o meu caminho.

8.9.16

Resenha de crônica - um texto de Eustáquio Grilo (1)

Nunca escrevi uma resenha. Vou tentar agora, mas nem pensar em um livro inteiro. Tentarei a resenha de uma crônica.
-- Ficou doido? --- perguntou-me um amigo, o Tõe.
Uai, por que não? Digo para mim mesmo, dispensando o travessão.
Tõe não responde. Apenas me desqualifica: incapaz.
Nem tanto: tenho noção do que é uma resenha de livro. E nunca li uma resenha de crônica. Parece-me evidente que resenha de livro seja bem pequena em relação ao tamanho do livro. A manter a proporção, resenha de crônica mal teria direito a dois parágrafos.
Mas ... Antes de começar a escrever, já sei que provavelmente será mais longa. A razão é simples: uma resenha de livro é necessariamente sintética. Mas quando a gente a lê, é quase sempre uma descrição. E também uma análise breve.
Assim ... jeito é tentar e ver no que dá. E depois ser humilde para aceitar a crítica. Incapaz ou não, vamos lá.

Meu amigo Alexandre Brandão escreveu uma crônica sob o título “Um minuto de fúria”.
Ele começa por gabar-se de ser bastante ignorante. Fiquei contente: eu me considero muito ignorante, muito mais que bastante.
Ri à beça do primeiro parágrafo. No qual ele assume-se cria da ditadura e culpa a educação formal. É claro que discordo: o problema da educação formal não é ser educação nem ser formal. É ser ruim. No nosso caso, sou um pouco mais velho que ele, estudei Latim no ginasial. Por fora estudei Grego. Acho que seria divertido comparar as bondades e ruindades. Feita essa ressalva, entendo que ele diga “minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça”, embora eu duvide um pouco da preguiça, pois ele trabalha e sempre trabalhou muito. Mas, se acha que podia ter trabalhado mais ... Bem, não me cabe discutir. Ou cabe, mas pessoalmente, com pelo menos uma cerveja, que ninguém é de ferro.
Ele conclui o segundo parágrafo com a sentença “Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara que tem a omoplata deslocada.
Meu idílio e meu exílio. Mon dieu. Ainda bem que não somos concorrentes em concurso algum. No concurso da vida eu teria de baixar a cabeça e render-me. Ou em qualquer outro. O bom é que agora tenho uma expressão para me definir: O violão é meu idílio, a música meu exílio. E com uma grande vantagem: não tenho a omoplata deslocada. Além de derrotado eu fiquei com uma dívida de gratidão.
Eis que, no terceiro parágrafo, ele declara que não é intelectual. Ora vejam. Como pode dizer que não é intelectual um cara que escreve: “Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio”? Vejam só: supondo factualmente verdadeira a frase, fico morrendo de inveja pois, por mais que tivesse um silêncio a nocautear eu, pobre de mim, jamais teria percebido que nocautear era “o” verbo. E, pior, gravíssimo, que o silêncio era o nocauteando. E ainda, ora vejam, que a literatura era o golpe capaz.
Por outro prisma: supondo não factualmente verdadeira a frase, eu receio que jamais chegaria a perceber uma tão linda metáfora, sem a ajuda dele.
Ou seja: em matéria de nocaute, o Alexandre foi quase sádico: nocauteou-me depois de nocauteado.
E foi assim, já renocauteado, que completei a leitura do terceiro parágrafo. Uma surpresa atrás da outra. Sinto-me tentado a acusá-lo de excesso de humildade. Mas deixo este juízo para outros leitores. Registro aqui só uma dúvida: se ele fosse muito bom de conversa será que não teria menos tempo para escrever?
O quarto parágrafo consegue comover com zero pieguice.
O quinto humilha com zero empáfia.
Acho que se euzinho tivesse furado o ar com uma faca-de-ponta, teria visto um deusilusão cair, desmilingüindo-se como um balão.

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(1) Eustáquio Grilo, passense feito eu, matemático formado pela UFMG, é catedrático de violão, tendo criado os cursos de bacharelado em violão da Universidade Federal de Uberlândia e da Universidade de Brasília. É, além de instrumentista e professor, compositor, arranjador e pesquisador. Há um concurso de violão que leva seu nome: Concurso Eustáquio Grilo. Para que não fique apenas na minha conversa, escute aqui, aqui e aqui um pouco desse cara por ele mesmo, no programa Talentos.

5.9.16

Um minuto de fúria

Não é por querer me gabar não, mas sou bastante ignorante. Quando busco alguma boia para me salvar não só do orgulho de ser ignorante, mas também do fato em si de sê-lo, culpo a educação formal. Sou cria da ditadura. Não é pouca coisa, mas, no duro da cebola, das continências e incontinências da vida, não dá para ficar nessa. A educação não ajudou, mas, ora, o esforço próprio é tudo. Portanto, crítico dos meus ais, afirmo que minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça.

Dito isso, vamos ao corolário de tamanho teorema nudes. Não posso ser considerado intelectual, apesar de brotar por aí um monte de intelectuais apedeutas, alguns mais que isso, burros. Controvérsias bricabraques à parte, passo longe de ser intelectual porque, apesar de minhas leituras e de algum conhecimento aqui e ali, não manejo bem as ferramentas do embate de ideias. Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara pacato que tem a omoplata deslocada.

Escritor não é intelectual? Eu não sou, bebé. Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio. Não sei conversar, eis a verdade. Se fosse bom de conversa, não seria um mau prosador. Cheguei aí também para fugir de outra característica, a covardia. Sou covarde até. Um sujeito assim, ruim de conversa, nem feio nem bonito, covarde e bem desmemoriado não pode ir longe. E eu sempre quis ir longe. Não que almejasse grandes viagens, mas bastava perder-me em mim.

Escrevo para ir longe, para, sem deixar ao relento, desvelar um nada dos meus segredos dos quais não tomo consciência. Fiz pouca terapia, em momentos de sofrimento tópico, como foi o caso de quando tive de parar de beber. Foram vinte anos sem uma gotinha de nada. Não foi fácil, pois a bebida concorria fortemente com a escrita. (Dois desterros: um tinto, outro seco.) A escrita ganhou pela desistência forçada da outra. Acontece, a gente vê até nos esportes, um ganha porque o outro não entrou em campo. É uma vitória esculhambada, mas uma vitória.

Cobro muito de mim, estejam certos. Toda manhã, dou-me uma estocada, quero ouvir minha opinião sensata sobre a beleza do texto de Julian Barnes que leio agora, “Altos voos e quedas livres” (Rocco). Quero saber qual diálogo posso propor aos contos simples e marcantes do Luiz Roberto Guedes em “Miss Tattoo, uma quase novela” (Jovens Escribas). Mas nada salta à luz da razão. E eu, esse ignorante, tomo a faca e furo o ar na ilusão de ver deus cair morto aos meus pés.