22.2.16

Sou Mangueira

Sou torcedor da Mangueira, o mais fuleiro de todos, aquele que grita aos quatro ventos o nome da escola, mas não conhece os sambas, não assiste aos desfiles. Acompanho, quando muito, a apuração e, se a Mangueira não ganha, digo que foi roubo e, se ganha, não digo nada, nem mesmo comemoro. Um torcedor desprezível, mas torcedor assim mesmo.

Por que comecei a gostar dessa escola? Um pouquinho porque gosto de manga e, mais ainda, da árvore que dá manga. Associação afetiva, portanto. Outro pouquinho porque, às vésperas de um carnaval, a Cuca, minha irmã, apareceu com um disquinho do Ataulfo Alves Júnior no qual ele cantava “Os meninos da Mangueira”, de Rildo Hora e Sérgio Cabral — “Um menino da Mangueira recebeu pelo natal um pandeiro e uma cuíca, que lhe deu Papai Noel, um mulato sarará, primo-irmão de dona Zica”. A música me levava a pensar na iniciação dos meninos ao samba. Meninos que eu antevia negros, de short e barrigudinhos, feito os meninos pobres de minha cidade, lá onde a herança africana aparecia mais nas congadas do que no samba, embora este também tivesse sua importância em escolas de samba como a “Malandro é o gato” e a “Passense”.

A razão maior dessa simpatia está ligada aos anos entre 1987 e 1997, período no qual trabalhei ao pé do morro da Mangueira. Convivi com a comunidade e percebi algumas de suas dificuldades — que iam, e decerto ainda vão, desde o acesso precário entre a rua asfaltada e o barraco, passando pela violência exercida pela polícia e pelo tráfico, até a falta completa do Estado, patente no abandono das crianças, que, cedo, bandeavam para o comércio ilegal das drogas ou, em posição menos desfavorável, se é que é possível, para o comércio informal de quinquilharias — e também de suas alegrias — entre elas, simples de perceber, o orgulho da escola. Aprendi a gostar dali e, por extensão, reforcei minha torcida pela verde e rosa.

De forma recorrente, Mangueira e Flamengo são tratados como similares. A escola e o time seriam os mais queridos do povo, os de maior torcida. Eu, um botafoguense, recuso essa abordagem, mesmo porque futebol e samba não se parecem em nada. Futebol é todo dia, os times disputam vários campeonatos. As escolas de samba vivem para um dia só. Ao longo do ano, claro, promovem festas — concurso de samba-enredo, ensaios nas quadras —, tudo para o brilho efêmero do tal dia. Nos estádios, as torcidas estão separadas, são touros bravos que, num descuido, chifram o outro, não se contentando com a simples vitória no campo. No sambódromo, não, todos estão misturados, dança-se, canta-se, namora-se. Portanto, se o amor que se tem pela Mangueira é popular, ele é de natureza distinta daquele que abraça o futebol, mais festiva que competitiva — ainda que a competição exista e sustente toda a (indústria da) festa.

Silencio minhas digressões. Abro uma cerveja hipotética e brindo a Mangueira e seu campeonato. Brindo Maria Bethânia, essa cantora que ao longo da vida, ao lado de sua música, fez questão de dar voz à poesia. Brindo a festa popular, mesmo sabendo que não há inocência nos arranjos comerciais que acomodam sem atrito dinheiro público, do bicho, do tráfico, de outras cidades, de outros países (democráticos ou não). Brindo, com muita inocência, o homem comum, que vive para o samba, que vive do samba, que se confunde com o samba. Viva!


Gustavo Pellizzon / O Globo / Arquivo: 25/07/2011

10.2.16

Crônica de uma palavra só

Gostaria de escrever uma palavra, uma única, que, isolada, se bastasse e fosse a crônica de hoje. Sei bem que não é tarefa fácil, pois qual palavra daria conta de, sozinha na briga — quer dizer, na crônica —, passar um recado amplo, quiçá uma mensagem sobre a qual se pudesse debruçar, refletir, ou um argumento capaz de estimular alguma discussão?

Aposto que alguns defendam a ideia de que a palavra Deus contém todas as demais e, sendo assim, se eu a escrevesse, pronto, teria escrito tudo. Verdade ou não, a palavra que me vem à cabeça é chinfrim e nomeia algo aparentemente inexistente. Quer dizer, a coisa existe, mas quase não se vê — se eu a vejo só de quando em quando é porque ela existe em estado de pouco, último passo antes de ser dada como exaurida.

Proponho um exercício: escolher uma palavra e pensar nela como uma crônica. Que tal hemisfério? Você abre a crônica e está lá a metade de uma esfera, palavra ligada à ideia de divisão da terra entre sul e norte, no corte estabelecido pela linha imaginária do Equador. Palavra que também tem uso na anatomia, nomeando os lados direito e esquerdo do cérebro. Ela sozinha, ocupando com pouco estardalhaço parte mínima do hemisfério norte da página em branco, poderia levar a várias suposições sem afirmar, de fato e de concreto, nada. O mesmo ocorreria caso a palavra fosse despertador, amplexo, ventríloquo, indumentária, fosfato, logopedia. 

Estou dizendo que uma palavra-andorinha só não faz uma crônica-verão? Sim e não. Poucas fariam. A que tenho em mente, sem ombrear com Deus, talvez pudesse ser uma delas. Sua força, desimportante que a palavra é, está no fato de carregar uma mensagem. Qual? De que, apesar de seus méritos, o passado chega esfarelado ao presente. Com isso, creio, deveríamos enterrar o sentimento nostálgico, tratando de, a partir do conhecimento profundo do passado, pagar nossas dívidas históricas — o acúmulo de injustiças cometidas ao longo do tempo. Olha aí a escravidão, ainda uma ferida aberta. Olha aí o maltrato ao meio ambiente, outra ferida aberta. 

Exagerei, sim, exagerei muito. A palavra, desconhecida de muita gente, não teria repercussão tão forte. Por um lado, como já disse, a coisa que ela nomeia circula em ambientes cada vez mais restritos e, por outro, graças aos regionalismos, aqui se dá um nome, ali se dá outro. Minha palavrinha, aceito, só faria sentido para mim. Logo, o fato de eu ter abortado a crônica de uma palavra só mostra que tomei com louvor uma lição do ofício de cronista, a de não falar apenas com meus botões ou para os meus botões. Mamãe, orgulhe-se, sou macaco velho, mas ainda aprendo.

Chego ao ponto em que preciso decidir entre deixar a conversa como está, sem pé nem cabeça, ou, enfim, dizer a palavra que quase desfruta de seus quinze segundos de estrelato, numa crônica pretensiosa e fadada ao fracasso. Dizê-la e sair de cena? 

Imagino que o leitor esteja aí — se ainda está — balançando a cabeça. Em alguns o gesto seria um pedido para que acabe logo essa droga, que já não lhe interessa saber de palavra alguma, nem isolada nem reunida. Nos outros, os mais suscetíveis, uma sinalização de que estariam dispostos a conhecer o que custo a anunciar para depois julgar minhas intenções. 

Como os últimos parecem mais amistosos, sussurro-lhes a palavra: gominha.