21.3.16

Crônica em linha pontilhada

Álvaro Campos, um dos habitantes na pátria Fernando Pessoa, escreveu “Poema em linha reta”, um de seus mais famosos. O poema começa assim: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada, / todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.” A essa visão heroica de seus conhecidos, Campos antepõe a de si mesmo (“E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil”). Fazendo esse jogo entre vencedor (eles) e derrotado (eu) ao longo de todo poema, lá pelas tantas, Campos se questiona: “Arre, estou farto de semideuses! / onde é que há gente no mundo?” E acrescenta: “Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?” Apesar dessas perguntas, Campos diz que seus conhecidos, mesmo diante do fato de não terem sido amados por suas mulheres, de terem sido até mesmo traídos por elas, não se tornam ridículos, enquanto ele, mesmo sem traição sofrida, é ridículo e vil, “vil no sentido mesquinho e infame da vileza”.

Um sentimento parecido ao de Campos me toma diante das certezas tão absolutas de meus conhecidos (muitos deles amigos) em relação ao momento político por que passa o Brasil. De um lado, há aqueles que enxergam uma maquinação muito bem orquestrada entre a justiça e a imprensa de modo a jogar na boca do lobo o projeto de retirar uma imensa gama de desvalidos da condição de famintos. De outro, os que têm certeza mais que absoluta de que foi tudo um jogo de cena, que o governo dos últimos doze anos só pensou no enriquecimento de seus membros. Os primeiros pedem a inclusão de outros governos no faro da justiça (governos federais anteriores, governos estaduais de agora). Os segundos, no extremo, defendem que se esfaqueiem os partidos e os deixem descarnados na rua.

Eu, o vil ignorante, penso dentro do meu quadrado. As coisas vinham bem. Um governo deu uma ajeitada no capitalismo bárbaro brasileiro, domou a inflação (uma desgraça que ataca principalmente os mais pobres, sem defesa contra a perda de poder de compra da moeda), criou a lei que determina o controle dos gastos públicos, se desfez de empresas que a iniciativa privada lida melhor com elas (eu sei que há polêmicas sobre as privatizações, mas estou contando a história de uma perspectiva boa). O outro, aproveitando a organização anterior, atacou um problema ancestral, ferindo a pobreza e a fome. Uma evolução que poderia seguir adiante. Um governo mais preocupado com o funcionamento do capitalismo, outro impondo ao capitalismo a inclusão de todos. O espectro ideológico nessa sucessão se daria entre um partido mais à direita — mas que não ultrapassaria a barreira do centro — e outro mais à esquerda — que não chegaria ao extremo, aquele no qual se buscaria rever as privatizações e coisas parecidas. Um cenário dos sonhos.

A visão menos poliana é a que diz que o primeiro governo roubou, o segundo roubou, o terceiro roubou e o quarto vem roubando. O caos. Um caos que não encontra saída. Quer dizer, não encontra saída dentro da política e, por isso, esse caos vira uma coisa inqualificável, grande, muito grande.

Estamos mais para o primeiro ou para o segundo cenário? Me arrisco a dizer que o governo atual não é bom (o que não tira sua legitimidade), quer se olhe do ponto de vista de quem prepara o ambiente para a economia privada deslanchar, quer se olhe do ponto de vista de quem inclui os desvalidos (a inflação, volto a dizer, é uma sangria na vida dos mais pobres). Isso sem dizer do desastre de suas costuras políticas e da desfaçatez da oposição. Sendo assim, com um governo sem atitude e uma oposição que aposta no quanto pior, melhor, estamos mais para o caos. E, no caos, prolifera a voz dos que defendem a necessidade de governar com medidas de exceção, normalmente cerceando a liberdade. Em tese, dizem, por um tempo curto, na prática, por uma noite interminável.

A partir de minha ignorância e vileza pergunto: o que estamos fazendo com nossa democracia? Os não tão cheios assim de verdades, por favor, me respondam (ou me ajudem a encontrar uma resposta). Os outros, por favor, se forem responder, poupem minha mãe.

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