30.5.16

Leitura incendiária

“...haviam sentido um cheiro de animal tão forte que pensaram que, a qualquer momento, se defrontariam com uma pantera, mas o que surgiu do meio das árvores, com incrível velocidade, foi uma mulher, uma mulher selvagem inteiramente nua” (Anaïs Nin, O modelo)



Luís Giffoni, escritor mineiro de boníssima cepa, defende em uma crônica recente — Leitura e saúde[1] — que a leitura, entre as formas que utilizamos para nos aproximarmos das várias manifestações da arte, é a que mais beneficia o cérebro, haja vista que “a leitura atua em duas nobres regiões do cérebro, situadas no meio e na parte de trás da cabeça, ligadas à imaginação e à visão, enquanto os filmes e a televisão agem apenas na parte posterior, vinculada ao córtex visual”. Giffoni é um cara curioso e, graças a isso, culto. Suas crônicas mostram como ele se empenha em, mais do que se entregar ao zunzum das ruas, escarafunchar o que ouve, questioná-lo, entendê-lo. Assim, se é ele quem está falando aquilo que eu sempre intuí, minha intuição vira certeza e, então, reforço: ler é uma medida profilática, um escudo contra as doenças.

Na mesma crônica, Giffoni comenta que, ao ler, todos nós rodamos um filme na cabeça. É o ápice inventivo motivado pela leitura. Esse filme próprio, muito particular, deve ser responsável pelo fato de geralmente as adaptações cinematográficas soarem frustrantes, aquém dos livros. Claro, um diretor leva para a tela a fantasia dele, e ela se choca contra a minha. Além do mais, escolhe uma atriz, um ator e um ambiente para ocuparem o lugar daquilo que eu havia imaginado de uma maneira não muito clara, ainda que por mim reconhecível em qualquer circunstância. Logo, aquele esboço de um homem misterioso, ambíguo, de repente se converte, nas mãos de Hector Babenco, em William Hurt. Falo da adaptação de “O beijo da mulher-aranha”, romance de Manuel Puig. A despeito do resultado —  no caso desse livro, positivo, com uma atuação impactante do ator americano —, o embate entre o meu filme e o que está na tela é grande, travamos uma verdadeira luta movida a golpes baixos. Nocauteado, reconheço o filme do outro, até mesmo passo a desfrutar dele. Com ressalvas, sempre.

Uma leitura erótica eleva à enésima potência essa experiência. O filme desce ladeira e vai encontrar nos recônditos do corpo o palco onde é exibido. Ardo quando leio, ou ardo de ler. Se não tenho com quem festejar tamanho ardor, se não sou mais um menino para me bastar a mim mesmo, torno-me uma verdadeira labareda do inferno e posso queimar o mundo todo, pois não há, além de mim, quem, por pecador, não mereça ser queimado. Um chamado para o almoço, um convite para o chope, uma fuga para a internet aplacarão esse calor, e deixarei ali, próximo da cama, o livro, não mais o livro, mas um corpo que precisa do meu.

Escrevo sob o impacto de “Pequenos pássaros – histórias
Anaïs Nin.
eróticas” (LpM pocket), contos de Anaïs Nis. Nascida no início do século XX e morta na segunda metade da década de 1970, a escritora não viu esses contos publicados, o que não se deveu a nenhum recato, pois ela publicou vários livros de alta carga erótica. Se me lembro que Anaïs foi amante de Henry Miller, 
outro mestre do erotismo, autor da trilogia “A crucificação rosada” (ou Sexus, Plexus e Nexus), consequentemente suponho que em seus encontros celebraram acima de tudo o corpo. Se me lembro também que Anaïs circulou nos grupos de vanguarda artística e científica, concluo que era uma mulher avançada e que sua visão erótica deve-se, pelo menos em parte, ao fato de ela ter-se distanciado da figura feminina de seu tempo. Esse distanciamento fez com que soubesse dar voz ao que é quase indizível, o prazer.

Com que imprecisa precisão Anaïs conta suas histórias! Se me afastasse, seria possível falar que as carícias se repetem, que os papéis (masculino-feminino ou feminino-feminino) não fogem de um determinado padrão, porém não consigo manter-me longe. Caio preso às pernas umedecidas de sua escrita. Nessas circunstâncias, deixo-me levar, não há alternativa. Saio de uma história para entrar em outra no gozo de um desejo excessivo. Conte-me mais, Anaïs, mais. E também menos para que eu possa andar de bonde com o que não é razoável. Leio Anaïs como acho que ela escreveu, potente.

Não conheço o texto na língua original, mas arrisco a dizer que o tradutor, Haroldo Netto, fez um trabalho brilhante. A leitura flui, melodiosa, o que, em se tratando de erotismo, é fundamental, caso contrário seria o equivalente a um coito interrompido por uma urgência externa, que esmurra a porta. E quem quer uma coisa dessas durante o carnaval tão pouco que reservamos a nossas carcaças?

Ler é (também) uma orgia!




[1] Leia aqui.

23.5.16

Perguntas à toa

Fazendo perguntas ao modo de Neruda

Você poderia me dar um silêncio de seu tempo?
Por que os cegos fecham os olhos ao recordar?
De vinte em vinte a gente ultrabraça o intocável?
Com quantas palavras é possível navegar um minuto?
Por que o riso fuma maconha?
Vovó contraiu o diabetes num beijo mal dado?
O que não estou vendo é uma chuva que brota do chão?
Quando me distraio eu roubo a alegria dos beduínos?
O dia brigou com a morte?
Aquele relógio estava desesperado?
A cor da ilusão esgana?
No céu, a terra é um esquecimento?
Os urubus salgam os próprios voos?
Se uma palavra for elevada ao quadrado nós nos entenderemos menos ainda?
Posso morrer depois de passar o café?
Você está rindo pra onde?
É possível acender cigarro em ovo?
As gotas invejam a enxurrada?
Alguma mulher pelada tentou entrar numa revista esquecida no banheiro?
O que pensa o escocês que só me viu em sonhos?
Dois e dois reconhecem algo além da matemática?
Do lado de lá dói?
O que o cansaço diria ao tempo?
Você poderia me dar um minuto do seu temperamento?
A função social do homem é prender o choro?
Qual o melhor remédio para não se curar de nada?
A histeria conhece os canais de Veneza?
Por que o mar não nos conta tudo?
Todas as palavras são inconstantes?
A sujeira tem saudades do esfregão?
O que meu pai fez com o não de minha mãe?
O sol também sabe?
O buraco da fechadura mede o poder que transfere aos olhos do curioso?
Se essa rua fosse minha eu seria menos órfão?
Chegaremos a tempo de adiar a noite?
De onde vieram as incertezas das perguntas?


Pablo Neruda, aparentemente num momento de indagação.

16.5.16

Vendendo desprodutos

Nossa lama de chocolate meio samarco vale como xarope bhp-billitônico e é indicada para devastar vidas inocentes. Efeitos colaterais? Quem pobre estava mais pobre fica se e quando sobrevive. Nada de muito grave.

Aritmética do marido da mulher prendada: soma e subtraia ministérios até acalmar as águas dos rios do interesse — e não se importe se dois menos um for um falso três. A matemática pura e insofismável é coisa pros outros, os que pedalam. Sob nosso auspício e noves fora isso e aquilo, monte um ministério masculino, o que não se vê desde a ditadura, e seja invejado por todos.  

Plantamos na imprensa falada, escrita e televisionada a tese de que agora é parlamentarismo ou a crise não chega ao fim. Visamos a outros clientes que não os tucanos, oferecendo-lhes preços e condições de pagamento ímpares.

Nosso plano médico permite aos clientes adoecer aqui e ir se curar em hospitais na Síria. Papa fina, mas, como não somos os únicos no mercado, a mensalidade — nosso diferencial — é do outro mundo.

Entregamos quentinhas no Brasil inteiro. Prato do dia: cuscunha temerado ao aceite de impeachment. Acompanha dessa água não beberei, com gotas de limão calheiro.

Assaltante age às escuras. Um deles deu um bote na filha do governador do Rio de Janeiro, mas, se tivesse encontrado no carro o pai da moça em vez dela, coitado do assaltante, o chefe do executivo está sem dinheiro, raspando o bolso de qualquer um que se aproxime dele. Fica o alerta: Assaltante consciente, não conte com a sorte, temos app identificador de vítimas para pronta-entrega!

Vende-se bicicleta voadora para ciclovias interditadas. Ligue para 1717171 e diga a senha “E.T. phone home”.

Traficantes, tenham um mínimo de responsabilidade social: Não vendam seus baseados na porta das escolas de São Paulo. Lá, os meninos estão sem merenda e, na larica, podem tornar-se violentos. Sigam esta máxima: Vender menos hoje para vender mais amanhã. Isso é empreendedorismo. Podemos lhes ensinar muito mais.

Comercializamos frases para uso em momentos de júbilo republicano. Uma amostra para dias de impeachment e que tais: Voto sim — ou não, fica a gosto do freguês — pensando nas colombinas edulcoradas da minha infância. Temos frases sintéticas para políticos apoéticos. Antes da consulta, 50% na mão. Ao fim e ao cabo, não podemos esquecer dos 10% da propina usual.

Apagamos palavras de dicionários. Temos apreço pelas começadas com G.

Campanha cívica: não confunda boi sonado com o deputado fascista.

Contra cuspes e escarradas, caras de pau a menos de um tostão.

Temos bicicletas sem pedal, muito apropriadas para quem é irresponsável ou é tratado como tal. Estoque baixo.

Troque seis por meia dúzia. Oferecemos os disfarces.

Aprenda a falar impeachment sem sotaque com o método Celso de Mello, certificado pela própria rainha. Manteremos uma promoção espetacular até que a Inglaterra se decida se fica ou se sai da União Europeia.

Temos lulas congeladas desde quando os mares não eram poluídos. Vitaminas e sabores preservados. Na compra de duas, ganhe um livro de receitas escrito por um amigo.

Reciclam-se discursos. Damos sabor democrático àquele desenxabido dos tempos da Arena e do Manda-Brasa esquecido numa gaveta. O cliente escolhe ou uma garantia de sucesso, pagando um adicional, ou um escudo contra chuva de ovo choco.

Oferecemos pacotes de ministros da fazenda. Com uma assinatura bianual, pode-se usar, no primeiro ano, um neoliberal com formação em Chicago e, em seguida, um keynesiano ortodoxo. No segundo, um homem de mercado, mestre no arroz com feijão com viés de favorecimento ao ex-patrão, e um marxista lunático. No Brasil ou fora, entregamos à domicílio ou em domicílio, o que for de acordo com a gramática do freguês.

Pintamos de branco defuntos de jovens negros de modo a inverter as estatísticas que cismam em apontá-los como as maiores vítimas da violência policial. Podemos também desenhar rugas para simular uma idade maior. Dois serviços, duas tarifas.

Levamos cópias de índios para eventos de falsa demarcação de terras. Não falam o tupi, mas arranham o kiriri.

Vendemos poesias boas, parnasianas ou não, para presidentes sem votos. Podemos — se o cliente se dispuser a fazer módicos depósitos em contas nas Ilhas Cayman — montar um business plan para o seu aceite na Academia. O fardão é negociado à parte, num segundo momento.

Não fazemos marketing político, mas gostamos de dinheiro.





2.5.16

Balanço em dias de crise


Nunca molhei a mão de um policial. Não economizo água. Bebi uns gorós antes dos 18 anos. Lá em casa, somos severos em matéria de não estimular os filhos a beber antes do permitido. Não furo sinal de trânsito, mas já furei alguma vez e sei que, em alguns cruzamentos com assaltos recorrentes, o sinal deve ser furado. Costumo atravessar a rua fora da faixa de pedestre. Nem cuspo nem jogo papel ou outra coisa na calçada. Desobedeço a velocidade máxima permitida com alguma frequência. Já me esqueci de declarar seiscentos reais no imposto de renda, o que me custou apresentar-me à Receita e retificar a declaração. Tenho função doméstica bem definida — lavo louças, principalmente — e, se não sou belo, pelo menos recatado eu sou. Hoje não dirijo caso tenha tomado um gole de cerveja, mas já dirigi completamente bêbado. Na infância, roubei fruta no pé. Certa vez, num restaurante, enquanto pagava a conta no caixa, fui assaltado com uma arma apontada para minha cabeça, e, passado o susto, o dono do restaurante me disse que os assaltos aconteciam quando ele não pingava a propina dos policiais. Fui o único a levantar a mão quando a professora perguntou se alguém já... E respondi afirmativamente à mesma pergunta quando feita por meu pai. Fumei, traguei, mas nunca vendi ou revendi. Nunca roubei livros, nem de amigos, mas, confesso: há uns vinte anos mantenho sob empréstimo um do Calvino cujo dono é um irmão, um brother mesmo, como vocês hão de convir de um sujeito que nunca cobrou o livro. Já menti por amor (canalhice). Menti também por covardia. Contei verdades que, se não contadas, não fariam diferença alguma na vida dos envolvidos. Amei mulher do próximo sem ser correspondido, minto, uma vez fui. Tenho orgulho de alguns votos nas muitas eleições da qual tenho participado, mas de outros tenho nojo (o famoso “menos pior”, escolhido numa conjuntura desfavorável). Para não pagar a passagem, pulei de um ônibus em movimento e me machuquei sem gravidade. Não dou esmolas. Trato as mulheres com respeito, mas às vezes quebro o pescoço para acompanhar alguma que tenha achado bonita. Nesses casos, em hipótese alguma, assobio ou falo impropérios. Ouço piadas de anão, negro, mulher, bicha, sapatão, presidiário, burguês, papagaio e português. Rio de quase todas, nunca das de negro. Não sei contar piadas, apesar de ser um pouco engraçado. Alguma vez joguei no bicho, mas nunca fui a desfiles de escola de samba, nem sambando na avenida nem sentado na arquibancada. O Zé Porteiro, que cuidava da portaria do prestigiado Passos Clube, por conhecer a todos, não permitia que eu entrasse nos bailes antes de completar a idade exigida. Nunca falsifiquei carteira de estudante ou outro documento. Não costumo comprar de camelôs, sinto falta da garantia e de outras formalidades no ato de compra e venda. Compro de lojas, mas não sei até que ponto suas mercadorias estão de fato formalizadas. Uso o Uber. Já paguei menos a médico em troca de não receber seu recibo. Nunca pedi um recibo a um médico sem ter usado seus serviços. Vivo há 30 anos uma união consensual desprovida de papéis lavrados em cartório. Guardo segredos. Tenho segredos que não confio a ninguém. Nunca matei passarinho, embora tenha tentado. Nunca me ofereceram propina. Não sou sócio de clubes nem militante de partidos políticos porque desconfio deles e provavelmente porque não confie muito em mim. Apesar disso, sou botafoguense. Jamais roubarei picolé de uma criança.