19.9.16

Quando dei o bolo no pessoal da igreja

Um amigo costuma dizer que eu, na juventude, fui coroinha. Penso que ele quer com afirmação tão surpreendente relacionar meu jeito manso com a disciplina da religião, isso, claro, se não estiver com pensamentos maliciosos, o que é bem provável. O fato é que nunca fui coroinha. O mais próximo que cheguei de uma função religiosa foi certa vez ter ido à Igreja de São Francisco, na minha cidade, e me enturmado com o grupo de jovens. Eu tocava violão e ensaiei um número para a missa de domingo, mas não fui à missa e nunca mais apareci por lá.




Já contei noutra crônica que o catecismo me fez mal, todos os potenciais castigos divinos me afastaram Daquele e de qualquer outro Deus. Virei esse sujeito no meio do caminho entre o agnóstico e o ateu. Estou bem, mas, contraditoriamente, costumo dizer “graças a Deus”, “fique com Deus”, “Deus te acompanhe” com fé absurda num Deus protetor.

Daquele encontro com os jovens da Igreja de São Francisco guardo a música que eu tocaria. É aquela que diz o seguinte: “Para mim a chuva no telhado / é cantiga de ninar / mas o pobre meu Irmão / para ele a chuva fria / vai entrando em seu barraco / e faz lama pelo chão.” A letra não clama por uma ação solidária, simplesmente questiona o sujeito que se deixa ninar pela música da chuva sobre a possibilidade de viver tranquilo enquanto os pobres podem acabar desalojados por um temporal. Cantaríamos, na certa um pouco contritos, depois iríamos para a pelada do domingo ou, já naquela época, para a paquera ao redor da praça.

Quando dei o bolo no pessoal, não me importei com isso. Depois de uns anos é que comecei a me perguntar o porquê. Acho que aquele menino que eu era não se conformou com o fato de que a religião pedia a compreensão da diferença gritante entre uns e outros, todos filhos de Deus, mas nada além disso. Compreenda, sofra até e pronto. Parte da Igreja católica se revoltou contra isso. É mais ou menos dessa época a forte presença da Teologia da Libertação, cuja atuação se dava no sentido de, além de confortar, transformar a vida das pessoas, dos pobres em primeiro plano. Revolucionário demais. Não demorou muito, marginalizados, vários teólogos da Libertação acabaram expulsos da Igreja. Esse atrito está aí até hoje, um papa puxa pra cá, outro pra lá. Eu não voltei a nenhuma igreja e, se um dia voltar, vou em busca daquela parte combativa, que luta pela justiça na terra tanto quanto acredita na justiça divina.


É um longo caminho, mas cheguei a essas memórias depois de assistir a “Aquarius”, o filme de Kleber Mendonça Filho que está aí na ordem do dia, muito por conta de ter sido associado ao “#nãovaitergolpe” e, por extensão, ao “#foratemer”. Ao fim da sessão, grande parte da plateia entoou um grito contra o atual governo. Tudo bem, o momento exige posicionamento, só acho que, para a análise do filme — seja do ponto de vista de sua contribuição artística, seja da perspectiva do prazer de assisti-lo —, essa ligação mais prejudica que ajuda. Isso não importa, agora não importa. Então volto ao meu raciocínio.


As músicas, no filme, são o canal por onde passa a emoção da personagem principal — Clara é uma mulher arraigada a alguns valores: o disco de vinil, o apartamento do qual não quer sair, depois de todos os vizinhos já o terem feito, para que suba um espigão moderno em seu lugar. Conduzido de forma crua e enxuta, os poucos transbordamentos narrativos ocorrem quando Clara ouve sua trilha sonora, que começa com Taiguara, vai de Roberto Carlos a Villa-Lobos, passa por um pouco conhecido Ave Sangria e atinge seu ápice emotivo em Gilberto Gil cantando “Pai e mãe” (“Eu passei muito tempo / aprendendo a beijar / outros homens / como beijo meu pai”). Sabe-se lá qual sinapse ocorreu para que eu me lembrasse daquela música que eu cantaria na missa de domingo e, depois dela, do bolo dado no grupo de jovens tão empenhados com a igreja. De todo jeito, a “ética” toda própria de quem é dono da grana deve explicar de algum modo o meu caminho.

8.9.16

Resenha de crônica - um texto de Eustáquio Grilo (1)

Nunca escrevi uma resenha. Vou tentar agora, mas nem pensar em um livro inteiro. Tentarei a resenha de uma crônica.
-- Ficou doido? --- perguntou-me um amigo, o Tõe.
Uai, por que não? Digo para mim mesmo, dispensando o travessão.
Tõe não responde. Apenas me desqualifica: incapaz.
Nem tanto: tenho noção do que é uma resenha de livro. E nunca li uma resenha de crônica. Parece-me evidente que resenha de livro seja bem pequena em relação ao tamanho do livro. A manter a proporção, resenha de crônica mal teria direito a dois parágrafos.
Mas ... Antes de começar a escrever, já sei que provavelmente será mais longa. A razão é simples: uma resenha de livro é necessariamente sintética. Mas quando a gente a lê, é quase sempre uma descrição. E também uma análise breve.
Assim ... jeito é tentar e ver no que dá. E depois ser humilde para aceitar a crítica. Incapaz ou não, vamos lá.

Meu amigo Alexandre Brandão escreveu uma crônica sob o título “Um minuto de fúria”.
Ele começa por gabar-se de ser bastante ignorante. Fiquei contente: eu me considero muito ignorante, muito mais que bastante.
Ri à beça do primeiro parágrafo. No qual ele assume-se cria da ditadura e culpa a educação formal. É claro que discordo: o problema da educação formal não é ser educação nem ser formal. É ser ruim. No nosso caso, sou um pouco mais velho que ele, estudei Latim no ginasial. Por fora estudei Grego. Acho que seria divertido comparar as bondades e ruindades. Feita essa ressalva, entendo que ele diga “minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça”, embora eu duvide um pouco da preguiça, pois ele trabalha e sempre trabalhou muito. Mas, se acha que podia ter trabalhado mais ... Bem, não me cabe discutir. Ou cabe, mas pessoalmente, com pelo menos uma cerveja, que ninguém é de ferro.
Ele conclui o segundo parágrafo com a sentença “Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara que tem a omoplata deslocada.
Meu idílio e meu exílio. Mon dieu. Ainda bem que não somos concorrentes em concurso algum. No concurso da vida eu teria de baixar a cabeça e render-me. Ou em qualquer outro. O bom é que agora tenho uma expressão para me definir: O violão é meu idílio, a música meu exílio. E com uma grande vantagem: não tenho a omoplata deslocada. Além de derrotado eu fiquei com uma dívida de gratidão.
Eis que, no terceiro parágrafo, ele declara que não é intelectual. Ora vejam. Como pode dizer que não é intelectual um cara que escreve: “Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio”? Vejam só: supondo factualmente verdadeira a frase, fico morrendo de inveja pois, por mais que tivesse um silêncio a nocautear eu, pobre de mim, jamais teria percebido que nocautear era “o” verbo. E, pior, gravíssimo, que o silêncio era o nocauteando. E ainda, ora vejam, que a literatura era o golpe capaz.
Por outro prisma: supondo não factualmente verdadeira a frase, eu receio que jamais chegaria a perceber uma tão linda metáfora, sem a ajuda dele.
Ou seja: em matéria de nocaute, o Alexandre foi quase sádico: nocauteou-me depois de nocauteado.
E foi assim, já renocauteado, que completei a leitura do terceiro parágrafo. Uma surpresa atrás da outra. Sinto-me tentado a acusá-lo de excesso de humildade. Mas deixo este juízo para outros leitores. Registro aqui só uma dúvida: se ele fosse muito bom de conversa será que não teria menos tempo para escrever?
O quarto parágrafo consegue comover com zero pieguice.
O quinto humilha com zero empáfia.
Acho que se euzinho tivesse furado o ar com uma faca-de-ponta, teria visto um deusilusão cair, desmilingüindo-se como um balão.

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(1) Eustáquio Grilo, passense feito eu, matemático formado pela UFMG, é catedrático de violão, tendo criado os cursos de bacharelado em violão da Universidade Federal de Uberlândia e da Universidade de Brasília. É, além de instrumentista e professor, compositor, arranjador e pesquisador. Há um concurso de violão que leva seu nome: Concurso Eustáquio Grilo. Para que não fique apenas na minha conversa, escute aqui, aqui e aqui um pouco desse cara por ele mesmo, no programa Talentos.

5.9.16

Um minuto de fúria

Não é por querer me gabar não, mas sou bastante ignorante. Quando busco alguma boia para me salvar não só do orgulho de ser ignorante, mas também do fato em si de sê-lo, culpo a educação formal. Sou cria da ditadura. Não é pouca coisa, mas, no duro da cebola, das continências e incontinências da vida, não dá para ficar nessa. A educação não ajudou, mas, ora, o esforço próprio é tudo. Portanto, crítico dos meus ais, afirmo que minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça.

Dito isso, vamos ao corolário de tamanho teorema nudes. Não posso ser considerado intelectual, apesar de brotar por aí um monte de intelectuais apedeutas, alguns mais que isso, burros. Controvérsias bricabraques à parte, passo longe de ser intelectual porque, apesar de minhas leituras e de algum conhecimento aqui e ali, não manejo bem as ferramentas do embate de ideias. Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara pacato que tem a omoplata deslocada.

Escritor não é intelectual? Eu não sou, bebé. Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio. Não sei conversar, eis a verdade. Se fosse bom de conversa, não seria um mau prosador. Cheguei aí também para fugir de outra característica, a covardia. Sou covarde até. Um sujeito assim, ruim de conversa, nem feio nem bonito, covarde e bem desmemoriado não pode ir longe. E eu sempre quis ir longe. Não que almejasse grandes viagens, mas bastava perder-me em mim.

Escrevo para ir longe, para, sem deixar ao relento, desvelar um nada dos meus segredos dos quais não tomo consciência. Fiz pouca terapia, em momentos de sofrimento tópico, como foi o caso de quando tive de parar de beber. Foram vinte anos sem uma gotinha de nada. Não foi fácil, pois a bebida concorria fortemente com a escrita. (Dois desterros: um tinto, outro seco.) A escrita ganhou pela desistência forçada da outra. Acontece, a gente vê até nos esportes, um ganha porque o outro não entrou em campo. É uma vitória esculhambada, mas uma vitória.

Cobro muito de mim, estejam certos. Toda manhã, dou-me uma estocada, quero ouvir minha opinião sensata sobre a beleza do texto de Julian Barnes que leio agora, “Altos voos e quedas livres” (Rocco). Quero saber qual diálogo posso propor aos contos simples e marcantes do Luiz Roberto Guedes em “Miss Tattoo, uma quase novela” (Jovens Escribas). Mas nada salta à luz da razão. E eu, esse ignorante, tomo a faca e furo o ar na ilusão de ver deus cair morto aos meus pés.