8.9.16

Resenha de crônica - um texto de Eustáquio Grilo (1)

Nunca escrevi uma resenha. Vou tentar agora, mas nem pensar em um livro inteiro. Tentarei a resenha de uma crônica.
-- Ficou doido? --- perguntou-me um amigo, o Tõe.
Uai, por que não? Digo para mim mesmo, dispensando o travessão.
Tõe não responde. Apenas me desqualifica: incapaz.
Nem tanto: tenho noção do que é uma resenha de livro. E nunca li uma resenha de crônica. Parece-me evidente que resenha de livro seja bem pequena em relação ao tamanho do livro. A manter a proporção, resenha de crônica mal teria direito a dois parágrafos.
Mas ... Antes de começar a escrever, já sei que provavelmente será mais longa. A razão é simples: uma resenha de livro é necessariamente sintética. Mas quando a gente a lê, é quase sempre uma descrição. E também uma análise breve.
Assim ... jeito é tentar e ver no que dá. E depois ser humilde para aceitar a crítica. Incapaz ou não, vamos lá.

Meu amigo Alexandre Brandão escreveu uma crônica sob o título “Um minuto de fúria”.
Ele começa por gabar-se de ser bastante ignorante. Fiquei contente: eu me considero muito ignorante, muito mais que bastante.
Ri à beça do primeiro parágrafo. No qual ele assume-se cria da ditadura e culpa a educação formal. É claro que discordo: o problema da educação formal não é ser educação nem ser formal. É ser ruim. No nosso caso, sou um pouco mais velho que ele, estudei Latim no ginasial. Por fora estudei Grego. Acho que seria divertido comparar as bondades e ruindades. Feita essa ressalva, entendo que ele diga “minha ignorância tem um quê de má-formação e outro de preguiça”, embora eu duvide um pouco da preguiça, pois ele trabalha e sempre trabalhou muito. Mas, se acha que podia ter trabalhado mais ... Bem, não me cabe discutir. Ou cabe, mas pessoalmente, com pelo menos uma cerveja, que ninguém é de ferro.
Ele conclui o segundo parágrafo com a sentença “Não fossem a prosa e a poesia, meu idílio e meu exílio, eu seria apenas o cara que tem a omoplata deslocada.
Meu idílio e meu exílio. Mon dieu. Ainda bem que não somos concorrentes em concurso algum. No concurso da vida eu teria de baixar a cabeça e render-me. Ou em qualquer outro. O bom é que agora tenho uma expressão para me definir: O violão é meu idílio, a música meu exílio. E com uma grande vantagem: não tenho a omoplata deslocada. Além de derrotado eu fiquei com uma dívida de gratidão.
Eis que, no terceiro parágrafo, ele declara que não é intelectual. Ora vejam. Como pode dizer que não é intelectual um cara que escreve: “Cheguei à literatura para nocautear meu silêncio”? Vejam só: supondo factualmente verdadeira a frase, fico morrendo de inveja pois, por mais que tivesse um silêncio a nocautear eu, pobre de mim, jamais teria percebido que nocautear era “o” verbo. E, pior, gravíssimo, que o silêncio era o nocauteando. E ainda, ora vejam, que a literatura era o golpe capaz.
Por outro prisma: supondo não factualmente verdadeira a frase, eu receio que jamais chegaria a perceber uma tão linda metáfora, sem a ajuda dele.
Ou seja: em matéria de nocaute, o Alexandre foi quase sádico: nocauteou-me depois de nocauteado.
E foi assim, já renocauteado, que completei a leitura do terceiro parágrafo. Uma surpresa atrás da outra. Sinto-me tentado a acusá-lo de excesso de humildade. Mas deixo este juízo para outros leitores. Registro aqui só uma dúvida: se ele fosse muito bom de conversa será que não teria menos tempo para escrever?
O quarto parágrafo consegue comover com zero pieguice.
O quinto humilha com zero empáfia.
Acho que se euzinho tivesse furado o ar com uma faca-de-ponta, teria visto um deusilusão cair, desmilingüindo-se como um balão.

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(1) Eustáquio Grilo, passense feito eu, matemático formado pela UFMG, é catedrático de violão, tendo criado os cursos de bacharelado em violão da Universidade Federal de Uberlândia e da Universidade de Brasília. É, além de instrumentista e professor, compositor, arranjador e pesquisador. Há um concurso de violão que leva seu nome: Concurso Eustáquio Grilo. Para que não fique apenas na minha conversa, escute aqui, aqui e aqui um pouco desse cara por ele mesmo, no programa Talentos.

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