29.12.16

Sete sonhos na estante

I

É uma bola, vê-se de longe, e cai em minha direção. Há uma tensão clara no olhar dos que estão por perto. Meus pais entre eles. Meus irmãos também. A menina que eu amo larga a minha mão e foge do que está prestes a acontecer. Por que o pânico? Tenho a responsabilidade de fazer como os jogadores: matar a bola no peito e deixar que escorra pelas pernas até alcançar meu pé direito, o bom. Não sou nenhum Pelé, mas posso cumprir essa missão inesperada. Quando a bola chega perto, muito perto, vejo que se trata de uma bomba. Não posso correr, todos confiam em mim, depositaram suas vidas em minhas mãos (no peito, no pé). A bola atinge meu peito, e o impacto é tão grande que o chão se abre e me engole. Quando a bomba quica no buraco e volta ao ar, passo a fazer balõezinhos com ela. O movimento leve que se segue parece o de um balão de gás subindo e descendo. Mas, de repente, a bomba explode.
(O despertador das seis e meia toca.)

II

Os pássaros voam de costas, os cavalos trotam ainda que lhes faltem as patas.
(Um grito, sem origem, perturba a madrugada.)

III

Aquela menina que nunca sequer me notou fixa o olhar no meu. Ficamos uma eternidade assim estáticos, olho no olho. De repente, de suas órbitas oculares começam a sair imensos papiros. O que sai do olho esquerdo é vazio, um papel antigo, grosso e fosco. No da direita, há uma frase que aos poucos vai se revelando. “Agora é tarde”, é o que está escrito. Antes que eu lhe diga alguma coisa, a menina dos meus sonhos se vira e sai correndo. Vou atrás dela, e os dois ficamos presos a uma corrida que não nos tira do lugar. Tenho então uma ideia aparentemente brilhante: estendo os braços para agarrar a garota. No entanto meus braços vão se tornando grandes, elásticos e saem do meu controle. A menina se vira para mim, e vejo que ela não é aquela que nunca sequer me notou.
(Da mesa do almoço, sob censura frouxa da mãe, ouvem-se as piadas picantes do irmão.)

Foto tirada em evento do "Coletivo Entre-Tempos" e trabalhada por mim.


IV

Stela e eu entramos em um abatedouro. Antes que eu estranhe a situação, chifres crescem na minha cabeça. Stela muge. Os homens encarregados de nosso sacrifício se apiedam de nós e começam a rir. Feito Ferdinando, o Touro, esfrego a pata no chão. Cai uma chuva quente. Stela berra que é ácida.
(Sem cobertas, a noite é fria.)

V

Tenho a pele azul, e as pessoas, no Beco dos Aflitos, me comparam a um pelicano.
(Um cutucão para interromper o ronco.)

VI

 Quando vou entrar no palco, as luzes se apagam. Roberto Carlos passa por mim e diz daquele jeito dele: “que coisa, bicho”, depois mete o dedo no interruptor, entra no palco e o mundo acaba.
(Às quatro da tarde, dorme-se a sesta ou a noite sem fim.)

VII

Eu e Deus jogamos porrinha. Ganho. Deus chora.
(O sono dobra o cabo dos dias.)

26.12.16

Natal com Machado

Comecei a escrever crônicas na passagem do século XX para o XXI, convidado pelo amigo e escritor Marco Túlio Costa, que, naquela época, ajudava a reerguer um antigo jornal de Passos. (Portanto, se há um culpado, é ele.) Apesar desses dezessete anos, este é meu primeiro texto que sai justamente no dia do Natal. É verdade que escrevi uma crônica natalina, e nela contei de uma ceia, na casa da tia Yole, quando vi as renas e o Papai Noel cruzarem os céus. Essa visão, ao contrário do que se pudesse esperar, me fez descrer de vez da figura do velhinho de barba branca. Vi para descrer, o que São Tomé diria disso?


Natal singelo numa rua de Botafogo, Rio de Janeiro

Nada dessas coisas importa mais, hoje escrevo para ser lido na mais celebrada festa cristã. Quero fugir das platitudes, do senso comum, o que não é, adianto, fácil. Eventos repetitivos nos levam a buscar repetidas formas de lidar com ele. Feliz Natal! Que Cristo nasça e renasça em seus corações. Que o bom velhinho não se esqueça de você. O meu amigo oculto é vesgo, mas enxerga longe. Tudo isso embalado pela Simone, que, ao cantar a versão traduzida de “Happy Xmas (War is over)” do John Lennon, viu-a transformada em canção para estimular o comércio, destituída da mensagem pacifista. 

Não pretendo seguir o caminho oposto, aquele no qual muita gente procura macular o espírito da festa, trazendo à tona tudo de desumano que brota no meio de nós. 2016 é um ano propício a isso, haja vista o número de pessoas que têm fugido de seus lugares de nascimento para tentar, sem estrutura alguma, a vida em outro país — são sírios, são moçambicanos, a lista é grande. Sem contar nossas tragédias caseiras, muitas evitáveis, como essa que acomete o jovem negro, vítima preferida da guerra contra o tráfico. 

Não quis escrever platitudes, e eis que estão escritas. Não quis escrever sequer duas linhas que borrassem a festa, e eis que estão escritas. Preciso buscar uma compensação a meu deslize e a minha incapacidade de trazer algo novo para sua leitura. Já sei, um poema, um pequeno poema, e pronto. Escolho este de Machado de Assis por identificação, pois me parece que ele também penou para escrever qualquer coisa sobre o Natal. 

Aonde chegamos? A Machado. Ótima companhia.

(Ah, antes que eu me esqueça, feliz 2017. (Se for possível.))





Soneto de Natal
            Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,
noite cristã, berço no Nazareno, —
ao relembrar os dias de pequeno,
e a viva dança, e a lépida cantiga,

quis transportar ao verso doce e ameno
as sensações da sua idade antiga,
naquela mesma velha noite amiga,
noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto... A folha branca
pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
a pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
só lhe saiu este pequeno verso:
“Mudaria o Natal ou mudei eu?”


Ilustração retirada do site de Antonio Miranda.

12.12.16

Os porcos

Apesar de o calendário chinês dizer que 2016 é o ano do macaco, no Brasil estamos quiçá na era do porco. O campeão da primeira divisão do futebol é o Palmeiras, cujo mascote é o porco. Um dos fiéis amigos do homem que ocupa o Palácio do Planalto, o ex-ministro que tentou impor-se a outro ex-ministro e com isso garantir o sucesso de um negócio privado, era chamado pelo Renato Russo, quando ambos eram adolescentes, de porco. E porco também foi como Fidel Castro se referiu a Carlos Lacerda, na época do golpe de 1964, conforme texto compartilhado numa rede social pelo historiador Carlos Fico.

O porco virou mascote do Palmeiras depois de ter sido, durante anos, a forma jocosa com que os adversários destratavam o time. Ou seja, o Palmeiras construiu um castelo com as pedras atiradas contra ele e fez do porco seu símbolo, desenhando-o não como um bicho bonachão e lento, fácil de ser vencido, mas sim como um verdadeiro super-herói, de semblante atlético e guerreiro. Jogada de marketing ou não, o fato é que deu certo, a torcida se reconhece no porco, e o Palmeiras, que andou pela segunda divisão, tornou-se o campeão de 2016, maldito ano estranho, inclusive para o futebol, que termina a temporada chorando a tragédia sofrida pela Chapecoense.

Em torno de Carlos Lacerda, o porco de Fidel, há polêmica de sobra. Governador obreiro (dele são o Aterro e a adutora do Guandu), político golpista (além de protagonista em 1964, havia tentado, anos antes, impedir a posse de Juscelino), administrador autoritário (removeu, na força bruta, várias favelas da zona Sul), foi ainda figura marcante no suicídio de Vargas. Enfim, um sujeito, feito o próprio Fidel Castro, complexo. Perto dele, o não amigo de Renato Russo, agarrado a escândalos desde a época dos anões do congresso, não passa de um porquinho-da-índia, o roedor que não é nem porco nem da Índia e que, mesmo sendo fofo a ponto de Manuel Bandeira declarar que sua primeira namorada havia sido um deles, rói até os alicerces da casa, caso fique solto e sozinho.

Quando penso no porco, porco, lembro-me dos Natais da minha infância. Neles, a leitoa era a peça de resistência, o mais esperado dos pratos. Pois bem, os fornos residenciais não davam conta de assá-la, então recorria-se às padarias, por sua vez com capacidade limitada para atender a demanda. O plano B consistia em levar a leitoa ao Bidu, no restaurante que ficava na zona, lugar que, de repente, deixava de ser não franqueado a senhores casados e pais de família para se transformar na salvação da festa cristã. Quanta senhora de respeito, em alto e bom som, ordenava ao marido que fosse até a zona e pedisse ao Bidu que caprichasse. E os pais, cumpridores de sua tarefa, aumentavam um ponto ao recado: "Bidu, capricha... Mas não tenha pressa”. Os Natais eram festas alegres graças aos porcos, ao Bidu e às putas, que muitos pais só apreciavam com os olhos e outros, com o corpo todo.

Wagner Tiso, Pink Floyd, Hermeto Pascoal fizeram músicas pensando nos porcos. Tiso, em “A morte do porco”, fez uma melodia triste, como é a própria morte desse animal que não se cala diante do abate. “Pigs”, do conjunto inglês, levanta-se contra os homens-porcos, ricos e poderosos, que, ao contrário das aves de Gonçalves Dias, aqui grunhem como grunhem lá. Já Pascoal sapeca uma “Porco na festa” e nela estribilha: “o mocotó tá duro pra danar/vou pedir de novo pra cozinhar”. Os porcos estão na literatura (“Os três porquinhos” e “Porcos com asas”), no cinema (“Montenegro ou porcos e pérolas” e “Babe, o porquinho atrapalhado”). O cofre da poupança miúda tem formato de porquinho. O artista belga, Win Delvoye, tem causado escândalo ao expor porcos tatuados cujas peles são vendidas a preços exorbitantes para grifes famosas. Não estranharia se certos amantes chamassem uns aos outros de porcos.

Porco é um bicho só para muitas coisas.