29.3.17

Tangos de cera







Este poema foi apresentado em uma oficina ministrada por João Gilberto Noll, e ele gostou. Então, mesmo que eu mantenha sérias dúvidas sobre ele, o poema, publico-o como uma homenagem ao Noll, que hoje, dia 28 de março de 2017, faleceu aos 70 anos.

19.3.17

Trouxa não sou e tolo ele não é

Em 1982, Blade Runner estreou nos cinemas brasileiros. Eu tinha vinte e um anos, era um garoto articulado, assistia a filmes incompreensíveis e os entendia muito bem, o que não aconteceu com esse de Ridley Scott. Uns anos depois, fui revê-lo e, aí sim, a ficha caiu. Aquela ficção acerca do futuro — agora muito próximo, pois a história se passa em 2019, na cidade de Los Angeles —, na realidade e de forma muito sintética, falava do atrito entre nossas forças humanas e desumanas. Não vou comentar o filme, minha intenção é falar de um fato não entendido em certo momento, mas que, num futuro próximo ou distante, torna-se claro, transparente, até óbvio.

Eu gostava de uma menina, vivia me insinuando para ela. Na piscina da casa do Zeca, ela me chamou de pateta. Engoli seco, dei umas braçadas na água e achei que, apesar da ferida enorme, seria capaz de levar a vida adiante. (Ah, a intensidade da juventude!) Ainda na mesma tarde, na roda de amigos, a garota comentou que seu personagem de gibi preferido era o Pateta. Tão evidente, não é? Pois eu, amargando o golpe do desprezo, não me dei conta de que ela, se não dizia me amar, pelo menos deixava no ar uma chance, uma maldita chance desperdiçada.

Se cobro um pouco mais da memória, encontro outros momentos feito esses, nos quais precisei de uma segunda chance para me livrar da ignorância (o filme) ou, pior ainda, nem notei a segunda chance (a paquera).

Mais uma história. Encontrei um ambiente hostil numa nova área em que fui trabalhar. Um amigo, antevendo o problema, encorajava-me e apostava na minha personalidade gelatinosa, capaz de fazer com que eu ignorasse as ameaças e as bolas nas costas que receberia. Ele estava errado. Num período de uísque e arrastados serões, vi brotar meus mais perenes e doloridos calos.

Como se diz, o tempo é uma escola e nela aprendemos a cantar fagueiros aquela música do Arnaldo Baptista: “Sou malandro velho, não tenho nada com isso”. Um parêntese. Arnaldo Baptista fez essa canção — “Cê tá pensando que eu sou loki?” — bem jovem. Um tempo depois, se jogou por uma janela e quase não experimentou a velhice. Hoje, por sorte, pela medicina, por um amor que foi cuidar dele no hospital e nunca mais o abandonou, o talentoso mutante beira seus setenta anos. Posso estar enganado, mas a aventura aérea enfiou Arnaldo numa espécie de juventude eterna, bom lugar para quem, com menos de trinta, era malandro velho e não se responsabilizava por nada daquilo.




Saio do parêntese. Sintetizo o que disse até agora: sou bobo, mas trouxa deixei de ser. Alguns mais, outros (como eu) menos, todo mundo passa por essa evolução, como provam as muitas associações feitas entre a velhice e a sabedoria. Mas, cuidado! Há, de um lado, o que não aprende de modo algum (o tolo) e, de outro, o que aprende tudo, mas, por maldade, se faz de incapaz (o tinhoso). Um exemplo? O senhor que, no Dia Internacional da Mulher, bradou valores do século XIX ao saudar a importância da mulher caseira, que, fora do lar, no máximo, ajuda o país economizando na compra do supermercado. Então, tolo ele não é.

2.3.17

Efemérides (quase familiares) de março



Rosa de Luxemburgo nasceu num 5 de março, assim como, citando um dos nossos, Heitor Villa-Lobos (que viria a morrer num 17 de novembro, dois anos antes de eu nascer e no mesmo dia do nascimento de meu amigo Átila). Ambos no século XIX. No século XX, a data trouxe ao mundo Patativa do Assaré, em 1909; e Pasolini, no ano em que o modernismo brasileiro havia mostrado, durante o mês de fevereiro, na Semana de Arte Moderna, a que veio. Listei nomes conhecidos da cultura, mas, nesse mesmo dia, em 1961, nascia, na minha cidade, meu primo Jânio, cujo nome, claro, era uma homenagem ao presidente que, em agosto daquele ano, pediria o boné e deixaria o Brasil naquele fuzuê que descambaria, logo depois, no Golpe de 1964. Cumpre dizer que também num 5 de março morreram Josef Stalin e, como contraponto, nosso invejável Jorginho Guinle.
Datas são datas e, do ponto de vista estatístico, nenhuma é melhor que outra, ou seja, nascem e morrem grandes e pequenas figuras todos os dias. Mesmo assim, dia importante ou não, continuo com este 5 de março. Foi num deles, depois de sair da festa dos 19 anos do Janinho, que embarquei no ônibus das 23 horas com destino a São Paulo. Dentro do veículo estavam três amigos. Juntos fomos o inferno dos outros: cantamos (eu levava o violão), fumamos e bebemos. Coisa de jovem. No meu caso, de um que enfrentaria uma nova cidade em sua vida, o Rio de Janeiro, onde, depois de tomar o Cometão São Paulo-Rio, estou há 37 anos, tendo vivido, nesse período, dois anos na capital paulista. Ergo taça e comemoro.
(Leitor, por favor, pense assim: “Bem, o Xandão está por aí, não sei se venceu, mas está por aí, tem sua mulher, tem seus filhos, enfim, e de novo, está por aí.” Depois, faça uma oração ao pessoal daquele ônibus (não se esqueça do motorista), gente incapaz de reclamar da falta de noção de quatro jovens com a corda toda e prontos a abraçar o mundo.)
Quem nasce em março é marciano? Não sei, mas muitos são do signo de Peixes, tido como de pessoas aéreas, desligadas. Dos nove netos de meus pais, quatro nasceram no terceiro mês do ano gregoriano — um deles, às vésperas do carnaval de 2000, no dia 3, meu filho mais novo —, e a única mulher entre os quatro se casou com um bom rapaz de Lyon do mesmo mês. Um dos netinhos de Joaquim e Haydée veio à luz num 8 de março, Dia das Mulheres, essa data política tão cobiçada pelo comércio. Apenas meu afilhado, na lista anterior, não é de Peixes, é de Áries, signo do qual sei menos que pouco. Deste sobrinho, o que chama a atenção é o fato de ele morar na Austrália, sei lá se tem a ver com a data do nascimento. Para ver como minha família tem compromisso com o mês, dos seis bisnetos, um também é de março.
Avançando sobre os nascidos em março, destaco a bisavó dos meus filhos, a serena Vó Olga, a dona Yedda — que, no alto de seus mais de noventa anos, me disse que fazia questão de comer pepino porque temia que, chegada a velhice, algum médico a proibisse — e três amigas da adolescência. Todas são arianas, mas nenhuma viveu ou vive em nada parecido com Austrália, o que me parece bem razoável, pois ô, país distante. Quase me esqueço de outros marcianos: a Jéssica e o Guilherme da Nilza, jovens bons de uma mãe maravilhosa; a parceira de escrita e leitura Nilma Lacerda; e o terrível Paxá, meu xará e aliado em algumas estripulias nesse mundo meio bossa nova meio rock’n’roll. Tem mais um monte: o Téo; a Andrea Canto; meus primos, os irmãos André e Tiago; a Stella Maris (por seus livros, colecionadora de Jabutis); a Ana Cristina Melo (escritora e editora de sete fôlegos); a Lilibeth; a Maia; o Broa; o Danilo (a quem devo um pandeiro, anotem aí, por favor). A lista é grande.
A última memória do mês de março é daquele maldito “evento” ocorrido em março de 1964. Não deveria figurar em crônica alegre e familiar, ainda que já tenha feito referência a ele ao explicar a razão de meu primo chamar-se Jânio. Assim, não repito, aponto apenas que para alguns o dia D daquele absurdo político brasileiro foi o primeiro de abril, data que, associada à mentira, não seria levada a sério, por isso empurraram o acontecimento para o último dia de março. A seriedade bárbara dos senhores de coturno e seus apoiadores, todavia, não deve ser colocada na conta de março ou de qualquer outro mês. Era coisa dos homens. Sempre é coisa dos homens, “a raiva e a fome é coisa dos home”, como Aldir Blanc, um setembrino, escreveu e João Bosco, um julino, musicou.