23.7.17

Ali onde Getúlio entrou para a história

Este Brasil não tem jeito. Em mesa de bar com amigos, encasquetamos com tal afirmação. Todos somos desses que acreditam, pelo menos em tese, que a política é a única forma de superarmos os entraves que estão aí, à vista de todos. Porém, com a lambança feita pelos políticos, fomos parar na sarjeta da desesperança. O Brasil não tem jeito.

Numa tentativa de nos agarrar a alguma coisa positiva, uma das mulheres falou do movimento feminino, da potência que há nele. Rimos um pouco com a história da namorada de um desses reacionários que veio a público dar uma banana pro cara. Por sua vez, o outro homem sentado à mesa se sentia esperançoso ao acompanhar o crescimento de seus netos. Buscávamos algo que estivesse à margem da política de terno, gravata e tailleur e concordamos que o que vier virá das mulheres, dos negros, dos gays ou dos marginalizados de modo geral e comerá pelas bordas a desfaçatez da elite.

Contei-lhes então uma história que me ocorreu dia desses, que reproduzo aqui com a intenção de compartilhar um pouco do meu vacilante otimismo.

Eu e minha mulher fomos andar no Aterro, longe de casa. Para nossa surpresa, no calçadão encontramos alguns amigos, depois, no Museu da República, outro amigo e, em seguida, no Largo do Machado, mais uma amiga, e outras duas, na Marquês de Abrantes. Até parecia uma caminhada pelas ruas da minha pequena Passos, não a de agora com seus mais de cento e dez mil habitantes, mas aquela na qual eu vivia e era ocupada por um quarto da população atual.

No Museu, meu colega de trabalho estava acompanhado de sua esposa e da netinha de uns três ou quatro anos. Antes da história, devo dizer da alegria de ver avós agindo como avós, pois a criança ganhara um picolé, coisa que a mãe não gosta que ela coma. O casal desobedecia a filha. Viva a desobediência dos avós! Minha avó, diabética, me levava ao seu quarto, fechava a porta e, desde que eu jurasse guardar em segredo, me dava doce de caju, os melhores que já comi. Enquanto ela esteve viva, o segredo não saiu da minha boca.

A menina não gostou do picolé de morango, sabor que os avós escolheram na esperança de cometerem uma desobediência menor, afinal morango é fruta, é saudável. A garotinha, três mordidas depois, disse que não queria aquele e, na mesma hora, roubou o do avô, um de chocolate — aquilo que longe muito longe tem parentesco distante com o cacau —, e com ele se distraiu até o fim.

Ao nos despedirmos, eu disse para a menina: “Você é muito gatinha”. Ela olhou bem nos meus olhos e retrucou: “Eu não sou gatinha, sou...” (disse então, com muito orgulho, o nome e o sobrenome.) Ali onde, com um gesto radical, Getúlio entrou para a história, com uma troca de frases simplórias, eu e a neta de meus amigos ficamos assim: eu, quase sessenta anos, um sujeito que tem procurado não ser machista, mas que fracassa, e naquele momento acabara de fracassar; ela, quatro anos, sem a menor ideia dessa discussão toda em torno do feminismo, feminista pronta.

10.7.17

O dia da chegada de Guineto ao céu

Ao Sílvio Sales, que é fã do sambista

Em maio deste inominável 2017, Almir Guineto bateu à porta do céu. Durante a triagem habitual, São Pedro comunicou-lhe que um pouco mais tarde Deus o receberia para tratar de um assunto. Guineto, que já deixara o corpo frio para trás, viu a alma gelar. Medo. Medo de Deus. Estranho medo, mas justificável, ninguém chega ao céu com o escore de pecados zerado. Ciente de seus pecadilhos, o sambista do Salgueiro cismou que seria despachado para o inferno. Melhor seria se São Pedro não houvesse cochichado ao pé do seu ouvido, ainda que, por não ter tido som algum, não se escutara exatamente um cochicho, e, além do mais, alma não tem ouvido nem nada que se assemelhe ao corpo.




O sambista foi instalado em seu aposento, uma nuvem imensa, de onde ele conseguia ver a vida, a sua e a de quem quisesse, desde a infância até o derradeiro dia. Depois de matar a saudade de seus dias de criança no morro, riu do futuro do Brasil. Riu de nervoso. Pensou em fazer um samba, mas o som, no céu, não passava de uma sugestão e um samba insonoro não era samba. Será que Deus justificaria sua transferência para o inferno baseado na premissa de que a turma do samba não vive onde não há som? Cartola estaria no inferno? Clementina? Noel? Ou será que Deus, na ditadura do céu, desprezava os negros? Acostumado com o preconceito sofrido ao longo de seus setenta anos, preferia manter um pé atrás, mesmo estando no paraíso. Quis olhar-se no espelho — alma não tem cor? —, mas não havia espelho, havia somente a sombra projetada pelo sol sobre a nuvem, e, na terra ou no céu, do corpo ou da alma, toda sombra é negra. Melhor não se agarrar a teorias espúrias, impossíveis de testar e — melhor ainda, prudente até —, pedir uma força para Iemanjá, Iansã, Xangô. Quer dizer, Nossa Senhora da Conceição, Santa Bárbara, São João. Não era fácil livrar-se dos costumes terrenos, que Deus relevasse a heresia de um recém-chegado.

Visto do céu, o momento de sua morte foi apenas um olho franzido no rosto de um homem alto — um negão que fez sucesso com as mulheres, ah, isso sim —, nem uma expressão a mais. Mais um motivo para um samba. Mais um motivo para se lembrar de como seria duro viver eternamente sem batuques. Quem sabe o inferno? Esticou a alma no macio da nuvem. Já não sentia tanto medo ou, por outra, já não via sentido em ter tanto medo. Era uma alma sob controle.

“Deus te espera”, avisou-lhe o anjo, e, no mesmo instante, o sambista estava diante de Deus. “Guineto! Venha aqui, rapaz.” Almir rasgou o sorrisão de sempre e jogou-se nos braços naquele instante abertos, esperando por ele. “Uma das minhas alegrias, meu filho, foi quando ouvi, ecoando pela imensidão, a voz da Beth cantando ‘Coisinha do pai’. Nesse mundo silencioso aqui do céu, aquela música abrandou um pouco minha solidão.” O compositor não conseguiu segurar a emoção e chorou copiosamente, o que não o impediu de ficar intrigado: se não havia som por ali, como é que Deus ouviu a música? Almir, envergonhado, constatou o óbvio: Ele era Deus.

Deus confessou que o motivo daquele encontro era outro. Guineto suou frio. O Senhor tomou-lhe a mão e pediu-lhe que se acalmasse. Gostaria apenas de agradecer ao moleque do Salgueiro por ter cantado “Saco cheio”. Almir encarou-o com espanto e curiosidade. “Sim, estou cansado, muito cansado e é isso que se diz na música: ‘Deus já deve estar de saco cheio’. Ô, como estou!” O sambista ensaiou um movimento na direção do Pai, mas foi contido. “Não, querido, não se preocupe, é meu fardo”, e continuou: “Você bem tentou dizer aos homens, mas eles, mesmo tendo a faculdade de dialogar, são incapazes de alcançar a verdade. Você não vê? Olhe ali para o futuro: não demora muito, aquele energúmeno lá em Brasília dirá que fui eu quem o colocou num lugar no qual nunca deveria estar. Eu, meu Almir? Eu?” Deus suspirou, passou a mão sobre o corpo imaterial do sambista e aconselhou-o a passear pelo céu. “Logo você encontrará a sua turma: um tal Geraldo Pereira, outro tal Luiz Carlos da Vila, a forte Jovelina Pérola Negra, os seus, você sabe quem são, eu os chamo de as almas levadas do céu. Acredita que, mesmo não sendo possível produzir som nesse cantinho do infinito, continuam a se reunir em rodas de samba e a beber umas cachacinhas que — sabe-se lá outro Deus como — chegam a eles? Faço vista grossa. São os meus mais queridos inquilinos. Vá, vá, eles preparam uma festa para recebê-lo.”