27.11.17

Mais uma derradeira carta de amor


Amor, tivemos uma recaída e agora, de novo, temos de enfrentar o fim. Não é o primeiro, oxalá, seja o último.


Ao contrário das outras, esta carta anuncia que não, não cortarei os pulsos.

Não, não vou pular do décimo andar. Não subo mais tão alto, aprendi a desfrutar das delícias ao rés do chão, depois, você sabe do pânico de altura que passei a ter. Nem mesmo o tombo me atrai. Logo eu. Você dirá: logo você. Sim, logo eu.

Nas outras despedidas, além de ameaças, falei um monte de verdades embrulhadas num rancor danado de sem-vergonha. A vantagem da recorrência é que, na segunda vez, aprimora-se a primeira, na terceira, a segunda, e assim por diante. O que não dizer então de nós, que estamos em nossa décima? Décima? Ah, os numerais! Ah, a contabilidade do destroço!

Então começo esta carta sem dedo em riste, sem revólver que ora aponte para sua fronte, ora para o meu ouvido direito. Porém não pretendo escrever uma carta lírica, a última das últimas em tom passional. Nada disso, é uma carta protocolar.

Devolva-me o Neruda que eu te tomei, li, mas voltei a colocar no seu criado-mudo. Tudo bem, não é um caso de devolução, mas, por favor, reconheça que o chileno e suas estrelas ficarão melhor na minha companhia.

Não carregarei mágoas sobre todas aquelas coisas que você, três doses acima do habitual, costumava dizer na casa de seus pais. Mas, se puder e sóbria, desminta a história de que fui um menino cruel, que matei peixes apenas por matar. Você bem sabe que eram pombos, esses ratos alados.

Tem aquele amuleto que você — por razões tantas vezes confessadas, mas que eu jamais compreendi muito bem — gostava de ter ao alcance dos olhos durante o sexo. Pois bem, num momento de incontida raiva, eu o enfiei numa das minhas quatro malas e não sei quantas caixas. Mal lacrei estas e passei o cadeado naquelas, fui tomado por um arrependimento enorme. Eu jamais faria isso, eu não farei isso. Assim, não revire a casa atrás de seu orgástico amuleto, está comigo, mas não ficará por muito tempo, é só eu me arranjar na nova moradia, que ainda não sei qual é.

Não temos conta conjunta, não temos poupança nem letras do tesouro. Se tanto, em sua escrivaninha deve ter uns cem dólares restantes de nossa última viagem. Isso facilita nossa separação, não há coisas concretas — e duras — para cuidarmos. Em compensação, não sei bem ainda o que farei com minhas lágrimas (filhas de dores profundas), que só fui conhecer depois que passamos a ser, além de amantes, amigos. Minha oculista, sem saber de nada, disse que meus olhos estavam menos secos, que pareciam mais saudáveis. Não, não pense que uso de um artifício raso ou de manipulação para adiar nosso fim. Longe disso, mas, de todo jeito, vamos ver como eu me saio na próxima consulta. Aliás, se puder, veja em sua agenda se é mesmo na próxima semana. Desde já, obrigado.

Começo a ficar sentimental, isso não é bom. Você me disse várias vezes que eu não sei lidar com essas exacerbações, que sou melhor quando contido. Assim, para fugir de um vexame, começo a me preparar para, levando as malas e deixando esta cartinha, cair fora de sua vida.

Fique bem, não se esqueça de fechar a janela da área à noite. Sempre tem a chuva e, de uns tempos pra cá, os morcegos.

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