8.1.18

O inadiável

Acorda com a sensação de que está atrasado, de que espera por ele uma urgência não revelada.

Faz o asseio matinal sem apuro. Engole o pão e bebe apenas meia xícara de café. Não arruma a cama. Não troca uma ideia com o porteiro. Enfia-se no carro.

Enfrenta o trânsito com fúria. Faz ultrapassagens pela direita e pela esquerda, avança sobre a pista exclusiva dos ônibus, pouco se importando se, na primeira, na segunda ou na terceira vez, a câmera o flagre e multe seu excesso. Espreme um ciclista contra o meio-fio. Fura sinais e, quando não o faz, buzina — se depende de que outro carro, a sua frente, dê a arrancada — ou, se é o primeiro parado no sinal, engata a marcha e toca ainda que algum pedestre esteja terminando de atravessar a rua. Xinga o pedestre. Lamenta a falta de civilidade dos moradores de sua cidade. E acelera mais ainda.

À entrada do prédio onde trabalha, fura a fila dos automóveis que se encaminham para o estacionamento. Para de forma irregular na primeira vaga que encontra e nem se importa com as advertências do encarregado. Pega o elevador. Sai do elevador. Toma o outro elevador. Lê, no monitor de TV, que são 7h39m. Chegou cedo, a tempo (de quê?).

Dá bom-dia aos poucos que estão no escritório. Recebe, em troca, olhares desconfiados, irônicos talvez. Deve ser a hora, ele nunca chega tão cedo, é da jornada das 10h às 19h. Mas hoje é diferente, precisa se organizar.

Onde estão seus pertences? Suas canetas? Seus papéis de rascunho? A calculadora? O chefe ainda não chegou. A secretária tampouco. Depois se encarregará de saber o que aconteceu. Liga o computador. A senha é recusada. Uma, duas vezes. Se errar a terceira, terá problema, terá de pedir uma nova senha e não conseguirá uma tão cedo, os responsáveis por isso não teriam motivo para estar no escritório antes das 8h. Resolve tirar da bolsa uma caneta, um papel de rascunho, o celular para usar a função calculadora. Suspira.

— E aí, aposentado? Esqueceu o que por aqui? — Eleutério, em tom jocoso, deixa a frase no ar e dirige-se à sua mesa de trabalho, lá na ponta extrema do salão.

Na sexta-feira anterior, havia saído no Diário Oficial, hoje é seu primeiro dia útil de aposentado, ele não se deu conta, ao contrário, acordou com aquela sensação de trabalho por fazer, de rotina a cumprir. Sente vergonha. Recolhe o que espalhara pela mesa, desliga o computador. O que dirá ao chefe? À secretária? A todo mundo?

Acomoda-se na cadeira. Infla o peito de ar. Fecha os olhos. E morre.

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