25.12.17

Repertório

O editor da Rubem é um jovem, o Henrique Fendrich. Nem bem sei como um dia ele me convidou para escrever em sua revista eletrônica, o fato é que eu aceitei, e minhas crônicas por ali passeiam há mais de cinco anos. Encontrei em Henrique um conhecedor da crônica brasileira, um senhor conhecedor, melhor dizendo. Ele, que também é cronista dos bons, realmente leu tudo, o que deveria garantir-lhe um espaço nas festas literárias, nos saraus do Sesc, em júris de concurso, mas, até onde alcanço do seu dia a dia, isso não acontece. O jornalista Henrique vive de trabalhos avulsos em Curitiba. Oh, Brasil!

A erudição do jovem editor, vez por outra, levanta do pó do esquecimento algum ou alguma cronista. Recentemente foi a vez de Marisa Raja Gabaglia, escritora que escancarava o peito, virava-se do avesso. Não conheço absolutamente nada do que ela escreveu, portanto foi no perfil feito pelo Henrique que encontrei a seguinte frase: “Sonho com a família perdida como se a pudesse recuperar. Sonho com a família como os cegos sonham com a luz.”

Em meados de dezembro, passei uns dias na companhia do meu amigo Marco Túlio Costa — um Escritor, disse noutra oportunidade e repito em quantas julgar necessário. Acontece que o Túlio não é só um escritor, é também um sujeito que vira e mexe arruma um projeto para atuar como voluntário. Seu livro “A árvore do medo” (Editora Formato), por exemplo, foi escrito a partir de suas oficinas com crianças carentes da cidade de Passos, onde vive. Ultimamente, ele trabalha com a Associação dos Deficientes Visuais. Nesses dias que passamos juntos, meu amigo me contou várias histórias da turma que acompanha, histórias divertidas, pois aqueles cegos são alegres e contornam com humor suas limitações. Túlio perguntou a dois cegos de nascença se eles sonhavam e com o que sonhavam. A resposta é que sonhavam com sons e tatos.

Marisa Raja Gabaglia, ao dizer que sonha com a família da mesma forma como os cegos sonham com a luz, está idealizando o sonho dos cegos ou simplesmente está dizendo — ela, que abriu mão da sua — que, na verdade, não sonha com família alguma? A julgar pelo levantamento da vida da escritora, esse do Henrique, a frase está apoiada na ilusão de que os cegos sonham com a luz, pois Marisa era carente do convívio familiar.

Certa vez, ouvi o Túlio (onipresente por aqui) aconselhar algumas professoras do ensino médio a não se preocuparem com o que o escritor quis dizer; como leitores deveríamos nos perguntar o que aquilo escrito sabe-se lá por quem significa para nós. Acabei de dar esse tropeço, mas até certo ponto justifico-o. Não houvesse eu sido alertado para a espécie muito singular de que é feito o sonho de um cego (pelo menos aqueles que nasceram assim), a frase de Gabaglia teria uma única leitura. Tendo ganhado repertório, a leitura se multiplicou e desse modo tornou-se mais interessante. Ah, como isso é bom. E como leva uma vida inteira nosso processo de alfabetização.

11.12.17

Papo reto

Você que sabe que a terra é plana; que Paul McCartney morreu antes de os Beatles fazerem sucesso; que Elvis está vivo, vivíssimo. Você — o mesmo ou outro parecido com o primeiro — que não tem um pingo de dúvida de que a ida do homem à lua foi apenas um truque dirigido por Kubrick, a mando dos estúdios de Hollywood; que advoga que tomar óleo de coco, chá de boldo ou urina de homem ou mulher virgens cura até falta de dinheiro. Também você — reforço: o mesmo ou outro parecido com o/os anterior/es — que tem absoluta certeza de que Deus fala e atua por meio do pregador da esquina; que acredita fervorosamente na boa vontade daqueles homens circunspectos que, por meio de um discurso empolado, oferecem solução para tudo, particularmente para o fim da sua pobreza, que não depende da redução da riqueza deles. Você que toma uma colher de azeite para evitar a ressaca; que bebe diariamente, mas é só uma social, nada demais. Você que diz que ter fé é acreditar cegamente, sem questionamento, em tudo — esquecendo-se ou desconhecendo o fato de que muitos santos, inclusive Moisés e Jesus, exercitaram a dúvida até o limite. Você que é democrata, mas defende a violência como o melhor antídoto contra a violência; que é avançado, mas sente saudades do tempo em que os homens eram homens e as mulheres eram mulheres. Você que, solidário às mulheres, defende com unhas e dentes que o problema da violência contra elas está na minissaia que usam. Você que vê, no Brasil de Lula (e no de Temer, diga-se) e até mesmo nos Estados Unidos de Obama, a evidência da ascensão do comunismo. Você que não é racista, mas — é o que você diz — francamente tudo tem limite. Você que não é homofóbico, mas, ora, meu Deus, você se espanta, tudo tem limite. Você que já andou no lombo de mula sem cabeça. Você que já viveu de tudo e aprendeu que o esforço sempre é recompensado, ainda que não seja exatamente isso que lhe aconteceu. Você que não se deixa enganar. Você que não muda de opinião. Você que acha bobagem essa coisa de livro, de filme, de teatro, de pintura; que acredita que o mundo está como está porque ninguém quer trabalhar. Você que fuma, mas não traga.




Pois bem: é com você que estou falando e quero lhe dizer uma coisa: você está mal, muito mal. Porém sou obrigado a reconhecer: você ganhou, o mundo é seu, e você não fará bom uso dele — aliás, você, dono do mundo não é de hoje, nunca fez bom uso dele.