22.1.18

As muitas infâncias


Para o Daniel Ribas

Dia desses, fui convidado para um bate-papo com crianças, mas, infelizmente, a conversa foi cancelada. Deveria falar como me aproximei da literatura, acrescentando como a questão da violência interfere na relação livro-infância. Fiz umas anotações-guia, e são elas que, de modo geral, divido com vocês. Ah, sim, a linguagem é adulta, na hora do vamos ver, manteria outro nível, mas jamais, em hipótese alguma, falaria como se estivesse diante de animais, gorjeando onomatopeias para bebê dormir.

Cresci num mundo muito diferente do de hoje. Não havia internet nem celular; havia televisão, mas, durante muito tempo, não na minha casa. A primeira TV que tivemos foi em 1970, um pouco antes da conquista da Copa. Eu tinha nove anos.

O que fazia uma criança sem TV, internet e celular? Fora de sala de aula — o número de crianças que não frequentava a escola era grande —, a molecada brincava na rua, nos quintais. Brincava de pique esconde, de mamãe da rua, de balança caixeta, de bolinha de gude; jogava futebol; fazia guerra de mamona; pulava córrego com vara de bambu; roubava fruta dos vizinhos. Nos domingos, ia à matinê e, no fim de todos os dias, cansada, dormia cedo.

Poucas faziam um trenzinho a mais: liam um livro na hora de dormir. Liam espontaneamente, porque ajudava a desacelerar dos dias de tanto corre-corre e pula-pula. Eu lia? Só por volta dos doze anos, a leitura foi se tornando uma atividade corriqueira, que eu buscava. O que, muito cedo, eu fazia era imaginar coisas, fazer versinhos, músicas. Bolava números de circo (acrobacia, palhaçada) e convidava os vizinhos para ver. Na porta de casa, armava um jogo de argola, que muita gente parava para jogar. Investia o lucro em sorvete e figurinhas. Colecionar figurinhas era a coisa mais importante do mundo, e, graças a elas, uma vez ganhei um fogão. E o que uma criança fazia com um fogão? Nada, ué, dava pra mãe, e a mãe vendia.



O querido Carabolante mandou a turma de doze anos ler um livro de gente grande: “Capitães de areia”, de Jorge Amado, que conta a história de uns meninos de rua, muito diferentes do que eu era, ainda que fossem da minha idade. Putz, como aquilo me fez bem! O livro me acompanhou pelos dois ou três meses que gastei para lê-lo e depois fazer o trabalho. A partir de então, ler passou a ser uma atividade que se encaixava perfeitamente nas demais. É verdade que, entrando na adolescência, uma novidade — forte concorrente da rotina estabelecida — apareceu na minha vida: as meninas, quer dizer, a atração por elas.

Brincando até não poder mais, lendo livros que contavam histórias ao mesmo tempo diferentes e parecidas com as minhas e metido em paqueras, acabei, entre uma pelada e um mamãe da rua, entre “O escaravelho do Diabo” e “Lucíola”, rascunhando uns versos, uns versinhos de amor, feitos para impressionar.

Encontrei na leitura — e na escrita — terreno para alimentar a minha já robusta imaginação. Por que fui assim? Por que a fantasia sempre me atraiu? Não sei explicar, mas quem é que sabe tudo de si?

O mundo é violento desde sempre. Às vezes, a violência está mais distante, às vezes mais próxima. Na minha infância, numa cidade pequena, violência era briga de rua, eram os meninos mais fortes se impondo. Eram os meninos da periferia fazendo valer seu destemor contra a boa vida dos bem-nascidos. Era isso e mais algum crime raro, quase sempre de fundo passional, restrito ao mundo adulto. Violência, violência mesmo estava lá no Oriente Médio, eu via na TV. Estava também nos porões da ditadura, mas eu não via na TV. Hoje a violência é na esquina — de grandes ou de pequenas cidades —, por isso a infância foge da rua. Poderia ser um estímulo à leitura, mas parece que os jogos eletrônicos têm falado mais alto.

12.1.18

10 01 — do ano da graça de 2018

Não acredito em numerologia, nessas coisas, mas ontem, 10 do 01, foi um dia interessante, vai que tem a ver com a data espelhada, não é? Pois bem, o dia começou da seguinte forma: ouvi a conversa entre aqueles que chamei de revoltados da aurora (dois senhores, na primeira hora da manhã, enquanto levavam seus cachorros para as necessidades matinais, ameaçavam destruir a assembleia e o congresso na porrada) e li, num cartaz-propaganda de um leitor de búzios, a promessa de, depois de uma consulta, o cliente “ter êxito em seus problemas”.

Trabalhei, como sempre trabalho. No fim do dia, resolvi ir ao cinema. Seguindo a dica de meu amigo e xará, o poeta Alexandre Marino, fui ver “The Square — a arte da discórdia” (Ruben Östlund). Sobre o filme, digo que é importante, senão fundamental, vê-lo nesse momento. O crítico José Geraldo Couto, na primeira vez que falou do filme (no site do IMS), fez elogios rasgados, na segunda, recuou um pouco, viu certo didatismo no filme, uma tentativa de açambarcar todas as questões pungentes dos dias de hoje. É até possível que ele esteja certo, mas tudo no filme é colocado de forma intensa, verdadeira, então, a meu ver, esse didatismo se perde ou perde a importância.

Comprei o ingresso e dei um pulo na livraria que fica a um quarteirão dali. No caminho, esbarrei em dois escritores numa ilha que separa as calçadas da rua. Brinquei com eles dizendo: “poxa, já somos poucos e vocês ainda ficam aí, expostos ao perigo.” Rimos, e eu tratei de seguir para a livraria, sabia muito bem o que queria lá. Há algum tempo, numa conversa com a Suzana Vargas, ela me disse que havia conhecido e ganhado um livro do Marcelo Maluf. Me aconselhou fortemente a lê-lo. Depois, no Face, o Eugen Weiss, respondendo a uma enquete sobre quais seriam os bons escritores da atualidade, tascou um Marcelo Maluf. Então eu ia à livraria para comprar um Maluf, este, não o outro, aquele. E fui. Lá, o poeta, cantor e livreiro, Leonardo Marona, botou a livraria de cabeça para baixo (exagero) para achar o “A imensidão íntima dos carneiros” (Editora Reformatório). Eu e Leonardo, antes de qualquer coisa, ficamos embasbacados com o título, e, agora, avançado na leitura, posso dizer que o livro é bom, aliás, bem bom.

Voltei ao cinema, encontrei dois amigos, sentei num cantinho, comecei a ler a minha recente aquisição. Entrei pra sala, fui desligar o celular e, antes, resolvi dar uma espiada no Face. Para minha surpresa, o querido Marco Túlio Costa acabara de publicar um texto sobre o meu “O bichano experimental” (Patuá). Coisa linda. Respondi a ele o seguinte: “Eu aqui esperando o filme começar, numa sala lotada, onde devo ser discreto, e leio isso. Não posso gritar, nem chorar. O que me resta senão sentir-me um bichano feliz, ronronar baixinho e firmar um compromisso de, saindo daqui, tomar um chope e propor um brinde aos deuses? Valeu, grande Marco Túlio Costa." Ao sair da sala, encontro meus amigos Shirley e Átila. Cada um deles carrega uma garrafinha de cerveja. O Átila me dá a dele, já vai entrar no cinema (para assistir ao “The square”) e é com essa garrafa que cumpro o prometido e brindo aos deuses as palavras sobre o livrinho. Depois, fui pra casa comer macarrão com salsicha e, sentado no computador, ficar ouvindo o Catho, esse jovem cantor de quem nunca ouvira falar.

8.1.18

O inadiável

Acorda com a sensação de que está atrasado, de que espera por ele uma urgência não revelada.

Faz o asseio matinal sem apuro. Engole o pão e bebe apenas meia xícara de café. Não arruma a cama. Não troca uma ideia com o porteiro. Enfia-se no carro.

Enfrenta o trânsito com fúria. Faz ultrapassagens pela direita e pela esquerda, avança sobre a pista exclusiva dos ônibus, pouco se importando se, na primeira, na segunda ou na terceira vez, a câmera o flagre e multe seu excesso. Espreme um ciclista contra o meio-fio. Fura sinais e, quando não o faz, buzina — se depende de que outro carro, a sua frente, dê a arrancada — ou, se é o primeiro parado no sinal, engata a marcha e toca ainda que algum pedestre esteja terminando de atravessar a rua. Xinga o pedestre. Lamenta a falta de civilidade dos moradores de sua cidade. E acelera mais ainda.

À entrada do prédio onde trabalha, fura a fila dos automóveis que se encaminham para o estacionamento. Para de forma irregular na primeira vaga que encontra e nem se importa com as advertências do encarregado. Pega o elevador. Sai do elevador. Toma o outro elevador. Lê, no monitor de TV, que são 7h39m. Chegou cedo, a tempo (de quê?).

Dá bom-dia aos poucos que estão no escritório. Recebe, em troca, olhares desconfiados, irônicos talvez. Deve ser a hora, ele nunca chega tão cedo, é da jornada das 10h às 19h. Mas hoje é diferente, precisa se organizar.

Onde estão seus pertences? Suas canetas? Seus papéis de rascunho? A calculadora? O chefe ainda não chegou. A secretária tampouco. Depois se encarregará de saber o que aconteceu. Liga o computador. A senha é recusada. Uma, duas vezes. Se errar a terceira, terá problema, terá de pedir uma nova senha e não conseguirá uma tão cedo, os responsáveis por isso não teriam motivo para estar no escritório antes das 8h. Resolve tirar da bolsa uma caneta, um papel de rascunho, o celular para usar a função calculadora. Suspira.

— E aí, aposentado? Esqueceu o que por aqui? — Eleutério, em tom jocoso, deixa a frase no ar e dirige-se à sua mesa de trabalho, lá na ponta extrema do salão.

Na sexta-feira anterior, havia saído no Diário Oficial, hoje é seu primeiro dia útil de aposentado, ele não se deu conta, ao contrário, acordou com aquela sensação de trabalho por fazer, de rotina a cumprir. Sente vergonha. Recolhe o que espalhara pela mesa, desliga o computador. O que dirá ao chefe? À secretária? A todo mundo?

Acomoda-se na cadeira. Infla o peito de ar. Fecha os olhos. E morre.